18 Julho 2020
“Os movimentos religiosos integristas também se alimentam do ódio e adotam essa atitude contra o que não corresponde a seus princípios doutrinários e suas morais repressivas. O que acontece? Curam a infelicidade que a repressão religiosa lhes produz com o ódio e, paradoxalmente, nele encontram a sua felicidade, que dizem se prolongar inclusive após a morte. Que perversão e falso consolo!”, escreve Juan José Tamayo, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 15-07-2020. A tradução é do Cepat.
Estamos vivendo uma nova e preocupante situação nas relações entre religião e política: a aliança entre a extrema direita ultraneoliberal, homofóbica, sexista, racista, xenófoba, antiecológica, negacionista da mudança climática e da violência machista, e as organizações cristãs integristas de caráter fundamentalista. É o que chamo de a Internacional-cristo-neofacista - expressão que fez sucesso na teoria crítica das religiões -, que constitui a mais grosseira manipulação do cristianismo e perversão do sagrado, já que apoia os discursos e as práticas de ódio dos partidos de extrema direita em todo o mundo. Diria mais: o cristo-neofascismo se alimenta do ódio, cresce e inclusive se deleita com ele, fomenta-o entre seus seguidores e o estende a todos os cidadãos.
Acredito que podemos afirmar que nasceu uma nova religião, talvez a mais perversa, a mais destrutiva do planeta e da humanidade: a religião do ódio. Neste artigo, tentarei mostrar como se constrói.
Em seu livro, “La obsolescencia del odio”, o intelectual pacifista alemão Günther Anders (1900-1992) considera que “o vulgar e quase universalmente acatado Eu odeio, portanto, eu sou ou Odeio, logo, existo é hoje mais verdadeiro que o famoso cogito, ergo sum de Descartes”. O ódio é “a autoafirmação e a autoconstituição por meio da negação e a aniquilação do outro” (PRE-TEXTOS, Valência, 2019, 34-35).
Em outras palavras, por meio do ódio aos outros, às outras, e da eliminação das pessoas e os coletivos odiados, quem odeia confirma sua própria existência conforme este raciocínio: o outro não existe, portanto eu existo como o único que resta. Ocorre, além disso, que a aniquilação do outro por meio do ódio produz prazer. Por exemplo, o torturador se deleita no ato de torturar: “ódio e prazer acabam sendo uma só coisa”, diz Anders. Quanto mais o ato de aniquilação se estende e mais vezes se repete, mais tende a se ampliar o prazer pelo ódio e o prazer em ser ele próprio.
Se a filosofia africana Ubuntu afirma: “Eu apenas sou, se você também é”, o discurso do ódio diz: “Ele não deve existir para que eu exista. Ele já não existe, portanto, eu existo como o único que resta”. Chega-se assim ao prazer pelo ódio, que constitui ao ápice do ódio.
O ódio não surge do nada, possui um contexto histórico e cultural específico, alguns motivos, algumas causas, alguns porquês. Recorrendo à alegoria de Shakespeare, assumida pela intelectual alemã Carolin Emcke, alguém precisa produzir a poção que provoca a reação do implacável e aceso ódio. São “algumas práticas e convicções friamente calculadas, amplamente cultivadas e transmitidas durante gerações” (Contra el ódio, Taurus, 2019, p. 53), alimentadas pelos fóruns de debate, publicações, meios de comunicação, canções, discursos, reuniões.
Estes meios propagadores do ódio não apresentam, por exemplo, as pessoas migrantes, refugiadas, deslocadas, gays, lésbicas, negras, muçulmanas como o que são: seres humanos, pessoas com os mesmos direitos e dignidade que aqueles que as julgam, gente pacífica, cidadãs e cidadãos normais, respeitosos das normas de convivência, mas como gente atípica, estranha, fora do normal, monstruosa, pior ainda, como delinquentes, bárbaros, violentos, doentes.
Nunca reconhecem seus valores, suas qualidades, sua cultura, seu trabalho, menos ainda sua situação de marginalização social e discriminação cultural. E quando reconhecem, justificam-se dizendo que merecem. Há, aqui, uma redução da realidade, mais ainda, uma construção social da realidade que não corresponde à verdadeira realidade.
Os discursos criados e divulgados por meio destes canais geram padrões enraizados no imaginário social muito difíceis de desconstruir. A construção do discurso de ódio segue o seguinte processo:
Primeiro, identifica-se um inimigo, geralmente coletivo, destacando seus traços negativos: as mulheres, as pessoas migrantes, refugiadas e deslocadas, negras, indígenas, muçulmanas, judias, gays, lésbicas, bissexuais, transexuais. Nada há em seu comportamento que seja incorreto, que incomode o cidadão, mas considera-se que encarnam o mal. Estes coletivos não são a causa do ódio, mas o objeto do mesmo. O ódio não precisa ter uma base real que o justifique, é uma construção humana.
Em seguida, são construídas as razões de tal encarnação e do motivo do ódio:
- As mulheres são discriminadas por ser consideradas inferiores. Exerce-se domínio e violência sobre elas, a partir da masculinidade hegemônica, e inclusive da masculinidade sagrada, e chega-se ao feminicídio como expressão extrema do ódio à sua vida, justamente contra elas que são doadoras da vida.
- Pessoas e grupos de migrantes e refugiados são considerados culpados por tudo: pela insegurança no país que os acolhe, são ingratos, ladrões, bagunceiros, tiram o trabalho dos cidadãos nativos, significam um gasto adicional ao Estado, aproveitam-se dos serviços sociais, sanitários, educacionais, que, como é dito, pertencem aos nativos (“os espanhóis, os estadunidenses, primeiro”). São obrigados a renunciar sua identidade cultural, suas tradições, hábitos e costumes e a assimilar a nossa cultura. Caso contrário, tornam-se um perigo para a sociedade e um elemento desestabilizador. Por isso, devem ser odiados e menosprezados e, caso não se adaptem, são expulsos.
- Os muçulmanos e muçulmanas são apontados como fundamentalistas, violentos, machistas, atrasados, fanáticos, inimigos do Ocidente, contrários à democracia, com um direito de família diferente que permite a poligamia, etc. Não se reconhece nenhum valor neles. Tudo é negativo. Não é possível se relacionar com eles em um plano de igualdade, nem manter empatia, tampouco podemos reconhecer direitos já que os utilizarão contra nós. A identificação e os juízos de valor, sempre negativos, não se referem às pessoas muçulmanas individuais, mas ao coletivo muçulmano.
- As pessoas LGTBI são odiadas porque mantêm relações afetivo-sexuais antinaturais, são pessoas doentes a serem curadas e, do ponto de vista religioso, pecadoras. Na incitação ao ódio às pessoas LGBTI, o discurso homofóbico da maioria das religiões tem um importante papel.
- As pessoas negras são racializadas a partir do supremacismo branco, que coloca todo o aparelho do Estado, especialmente os corpos e forças da chamada “Segurança”, a serviço da repressão contra as minorias negras, chegando ao seu assassinato impiedoso, como no caso do cidadão afrodescendente estadunidense George Floyd, assassinado no último dia 25 de maio, nos Estados Unidos, por um policial branco.
As pessoas odiadas deixam de ser percebidas como indivíduos concretos e se tornam um coletivo abstrato “ficcional”. Odeia-se os coletivos previamente descaracterizados, a quem se difama, desprestigia e despreza.
Uma vez inoculado o ódio, acreditam conhecer aqueles aos quais odeiam e o conhecimento leva a odiá-los ainda mais. Mas estamos diante de um suposto conhecimento e diante de um suposto ódio, porque na realidade não se conhece a pessoa que se odeia. Trata-se de um ódio fantasmagórico, produzido artificialmente, embora resulte muito eficaz.
Uma das características das pessoas e os coletivos do ódio é a sua segurança, sua certeza absoluta. Nunca dizem “talvez”, “é possível que”, “eu acredito”. Caso contrário, não odiariam.
Conforme apontava mais acima, as organizações sociais e os partidos políticos da extrema direita se alimentam, crescem, engordam e até chegam a se deleitar com o ódio. Em relação ao desfrute do ódio, penso que pode ser aplicado a estas organizações a definição de “fanatismo” oferecida pela Enciclopédia, publicada em Paris, entre 1751 e 1772, sob a direção de Diderot e D’Alambert:
“O fanatismo é um zelo cego e apaixonado que nasce de opiniões supersticiosas e leva a cometer atos ridículos, injustos e cruéis. Não só sem vergonha, nem remorso, mas inclusive com uma espécie de gozo e de consolo”.
Os movimentos religiosos integristas também se alimentam do ódio e adotam essa atitude contra o que não corresponde a seus princípios doutrinários e suas morais repressivas. O que acontece? Curam a infelicidade que a repressão religiosa lhes produz com o ódio e, paradoxalmente, nele encontram a sua felicidade, que dizem se prolongar inclusive após a morte. Que perversão e falso consolo!
Tal modo de proceder implica uma contradição com os princípios religiosos, concretamente, no cristianismo, com o perdão e o amor ao próximo, pregados por Jesus de Nazaré e tristemente não praticados por muitos de seus seguidores. Ambos princípios exigem renunciar à vingança, ao “olho por olho e dente por dente”, perdoar as ofensas “até setenta vezes sete” (Mateus, 18, 22), ou seja, sempre, e cumprir o preceito de Jesus: “amai os vossos inimigos” (Mateus 5, 43).
O discurso do ódio não tem nada a ver com a orientação libertadora, igualitária e acolhedora do outro, da outra, das pessoas diferentes, nas religiões, expressa nas diferentes formulações da Regra de Ouro: “Trate os outros como gostaria de ser tratado”.
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O cristo-neofascismo se alimenta do ódio, cresce e inclusive se deleita com ele. Artigo de Juan José Tamayo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU