14 Julho 2020
"Três níveis estão sempre implicados no 'rito de comunhão': o da exterioridade da mão, o da fronteira entre interior e exterior, que é a boca, e o puramente interior do coração", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, em artigo publicado por Come Se Non, 11-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, "além da mão, da boca e do coração, a Igreja encontra outros dois órgãos da comunhão: os joelhos e os pés. Em uma Igreja em que a mão dos fiéis não é investida de autoridade, os joelhos correspondem à boca que recebe. Por muitos séculos, essa foi a forma da 'comunhão fora da missa'. Mas, quando a comunhão volta a fazer parte do rito da missa, a renovada função dos 'pés' na procissão ritual corresponde à renovada autoridade da mão".
Ainda recentemente, em posicionamentos de diversas qualidades e autoridades, voltou-se a discutir sobre a “forma” da comunhão eucarística. O que suscitou o debate provavelmente foram os “cuidados sanitários”, que indicaram a “comunhão na mão” como “forma imposta”.
O debate que surgiu disso muitas vezes se tornou muito candente e até exasperado. A tal ponto de se falar de “sacrilégio” ou de “heresia” em relação a essa forma de recepção da comunhão.
Recentemente, Matias Augé fotografou muito bem os limites do debate em uma breve mas afiada reflexão. Algum tempo antes, o Prof. Claudio U. Cortoni havia resenhado cuidadosamente neste blog um livro muito frágil, que manifestava de modo muito claro os limites espirituais e científicos dessas leituras exasperadas da tradição.
Para esclarecer ainda mais esse âmbito, gostaria de propor duas reflexões. A primeira é de cerca de 50 anos atrás, tirada de um livro de J. Ratzinger, na qual ele repropõe algumas reflexões de caráter espiritual sobre a Eucaristia e na qual aparece uma interessante consideração das “diversas formas” da comunhão eucarística.
Depois disso, gostaria de articular, de minha parte, uma breve meditação adicional sobre a relação entre essas diversas formas e sobre o seu impacto complexo na tradição eclesial.
Em um texto dos anos 1980, H.-U. von Balthasar (“Pequeno guia para os cristãos”, Milão: Jaca Book, 1986, ed. orig. 1980, p. 111-114) cita J. Ratzinger para defender a possibilidade de que o “comungar” saia da exclusividade da “comunhão na língua”. Ele escreve assim:
“Escandaliza-se ou escandaliza, como sentenciou Guardini, quem pretende ter razão citando argumentos ‘penúltimos’, isto é, não peremptórios. [...] Além disso, aquilo que os tradicionalistas não consideram é que quase todo o ‘novo’ inserido no missal de Paulo VI deriva das mais antigas tradições litúrgicas, que o seu ponto forte, o Cânone Romano, permaneceu inalterado, que o fato de receber a hóstia nas mãos e em pé era habitual até o século IX, e os Padres da Igreja nos testemunham que os fiéis tocavam devotamente os seus olhos e ouvidos com a hóstia antes de consumi-la. Não deveríamos esquecer, diz Ratzinger, ‘que impuras não são apenas as nossas mãos, mas também as nossas línguas’ – Tiago diz que a língua é o nosso membro mais pecaminoso (Tg 3,2-12) – ‘e também o nosso coração (...) O risco máximo e, ao mesmo tempo, a expressão máxima da bondade misericordiosa de Deus é que seja lícito tocar em Deus não só com as mãos e a língua, mas também com o coração” (J. Ratzinger, Eucharistie – Mitte del Kirche. Vier Predigten, München: Erich Wewel, 1978, p. 45).”
É muito clara, no texto de Ratzinger, uma serena dinâmica de correlação entre mãos, boca e coração, que merece ser submetida a uma análise adicional.
“Tomai todos e comei.” A Igreja sempre se sentiu vinculada a esse duplo imperativo. A ação de tomar implica um investimento da mão; a ação de comer, uma competência da boca. Mas, juntas, e desde sempre, tanto a mão quanto a boca remete para além de si mesmas, ao coração, à mente, à alma, à vida. Portanto, três níveis estão sempre implicados no “rito de comunhão”: o da exterioridade da mão, o da fronteira entre interior e exterior, que é a boca, e o puramente interior do coração.
Pode ser muito útil considerar as relações múltiplas e complexas que ligam profundamente esses níveis diferentes, nunca contraditórios entre si, mas sim polares e em tensão. Tento fazer isso considerando quatro perspectivas para examiná-las.
O fato de que a relação de intimidade com Cristo, com a sua vida e com a sua morte, com o seu corpo e com o seu sangue, com a sua palavra e com a sua ação, passa pela competência das mãos, da boca e do coração nos lembra que o ser humano tem a sua especificidade “na ratio e nas manus” (Tomás de Aquino).
E que o que une a razão (ratio) e o tato (manus) é a linguagem, que tem na boca o seu órgão. A boca fala e a boca come. Come “por natureza” e fala “por cultura”. Mas a “cultura da boca” é possibilitada pelo fato de que as mãos substituem a boca em tudo o que é “servil”. É só no gênero humano que ocorre esse milagre: graças ao “tato fino”, é possível que o ser humano liberte a boca de algumas funções servis – arrancar as ervas da terra, morder a presa a ser dilacerada – para torná-la disponível para a palavra e, assim, acessar a razão.
Ainda no plano antropológico – deveríamos dizer – nós pensamos porque falamos, mas falamos porque as mãos deixam a boca livre para acessar a palavra.
A primeira consideração no plano antropológico nos permite reler a questão da “pureza” de modo novo. Costuma-se dizer: a mão é suja, porque é servil, enquanto a boca é limpa. Na realidade, as coisas são muito mais complexas. Porque a mão se suja muito facilmente e se lava muito facilmente. Lavar as mãos é relativamente fácil, mesmo quando a metáfora das “mãos limpas” [“mani pulite” era o nome da operação italiana na qual a Lava-Jato brasileira se inspirou] torna-se um grande problema.
A boca, por sua vez, pode se sujar muito mais profundamente e, para limpá-la das palavras imundas, é preciso muito mais tempo e procedimentos muito mais complexos.
Isso vale ainda mais para o coração: um coração sujo, uma mente insana, um intelecto distorcido requerem purificações, terapias e higienizações que podem durar uma vida inteira. A exterioridade da mão não é sinônimo de “impureza”, enquanto a interioridade do coração não equivale a pureza.
Comungar é “história dos sujeitos” em relação a Cristo. A tradição da Igreja sempre soube que “tomai e comei” se encarna em “formas de manducação” que podem ser “sacramentais” ou “espirituais”. Comer com a boca ou comer com o coração são “usos do sacramento” – para citar a terminologia escolástica – que têm o mesmo conteúdo. Mas a forma não é irrelevante.
A forma mais simples é a “espiritual”. Mas a sua “pureza”, que implica um investimento corpóreo limitadíssimo, é também o seu limite. Uma comunhão “apenas do coração”, portanto, é, ao mesmo tempo, o máximo e o mínimo da vida eclesial.
Por isso, um relacionamento “sensível” com o “pão eucarístico” – ou seja, uma relação não só “de coração”, mas de mão e de boca – sempre teve a sua autoridade incontornável e fundamental. Para o clérigo, de modo estrutural e ferial; para o simples batizado, de modo extraordinário e festivo. A “comunhão pascal” era o sinal secular disso, raro, mas resistente.
A disciplina eclesial, com suas práticas e suas normas, interferiu ainda mais em tudo isso. Assim, por um longo tempo, a partir dos séculos X e XI, afirmou-se uma prática em que apenas os sacerdotes tomavam, comiam e alimentavam o coração. O povo de Deus era excluído não só do “tomar”, mas muitas vezes também do “comer”. Alimentavam o coração sem tomar e sem comer, exceto uma vez ao ano.
No século passado, a partir de Pio X, a “comunhão frequente” – a partir de 1905 – começou a mudar as coisas. Não só o “alimento do coração”, mas também o “comer com a boca” se tornaram muito mais comuns.
Ainda mais recentemente, o “tomar” na mão recuperou o terceiro momento da práxis institutiva e institucional da Eucaristia. A suspeita em relação a esse enriquecimento da mão, em comparação com a boca e o coração, deve ser superado.
Na disciplina eclesial, é fácil identificar o simples com o puro. Também no caso da Eucaristia, uma “comunhão espiritual”, entendida como plenitude última pode ser facilmente traduzida em uma simplificação clerical. O acesso de todo o povo à plenitude das ações eucarísticas – tomar com a mão, comer com a boca e crer com o coração – é uma grande “escola de oração” (Paulo VI).
Se quiséssemos levar esse raciocínio às últimas consequências, deveríamos dizer que, além da mão, da boca e do coração, a Igreja encontra outros dois órgãos da comunhão: os joelhos e os pés. Em uma Igreja em que a mão dos fiéis não é investida de autoridade, os joelhos correspondem à boca que recebe. Por muitos séculos, essa foi a forma da “comunhão fora da missa”. Mas, quando a comunhão volta a fazer parte do rito da missa, a renovada função dos “pés” na procissão ritual corresponde à renovada autoridade da mão.
Não apenas os joelhos, mas também os pés são capazes de culto e de adoração. Eles podem sê-lo na procissão da comunhão, com a qual a Igreja recebe na mão, come com a boca e crê com o coração que a comunhão entre Filho e Pai, no Espírito, é um dom para todos e a todos transforma em “corpo de Cristo”.
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Mãos, boca, coração, joelhos e pés: as formas da comunhão eucarística. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU