03 Julho 2020
"Por mais energia que o papa Francisco revele, não é fácil reformar um organismo de tantos séculos como são o papado e a estrutura da Igreja Católica. E situações de emergência como ocorreram nesta pandemia revelam que muitas dioceses e paróquias tomam como prioridade as atividades religiosas do culto e a maior preocupação parece ser abrir as portas e encher os templos de fiéis e não cuidar da vida de todos/as", escreve Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo, assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais, em artigo publicado em seu site pessoal, 30-06-2020.
As Igrejas antigas, tanto as orientais, como as de rito latino (Católica, Anglicana e Luterana), celebram no 29 de junho a festa dos apóstolos Pedro e Paulo. Historicamente, só existe comprovação de um bispo cristão em Roma a partir do final do século II. Quanto ao papado, na forma que tomou na história, vem dos tempos medievais (século XI). Independentemente disso e baseada em tradição que vem dos primeiros séculos, a tradição católica consagra a festa de São Pedro como “o dia do papa”. Antes de 2013, nas paróquias católicas, padres pregavam sobre o papa e pediam obediência ao Sumo Pontífice. Com o atual papa, isso mudou. Católicos que viviam citando o papa, agora não o fazem. Grupos que não costumavam tomar o papa como referência, agora o citam diariamente.
O motivo desta mudança é que o papa Francisco imprimiu outra forma no seu modo de exercer o ministério de bispo de Roma e patriarca das Igrejas de comunhão católica. Retomou o ensinamento do Concílio Vaticano II sobre a centralidade da Igreja local. Para isso, aceita e valoriza cada diocese no mundo com seu rosto próprio e como Igreja de pleno direito. Propõe o diálogo e a sinodalidade como o jeito normal da Igreja ser e atuar. Acima de tudo, insiste em que a missão seja como “Igreja em saída”, “para fora” como serviço à humanidade, na construção da justiça, da paz e da ecologia integral.
No plano internacional e nos meios de opinião pública, sem dúvida, o papa Francisco é o líder mundial mais acreditado e cuja palavra tem mais repercussão na consciência da humanidade. No entanto, desde os tempos modernos, nos ambientes internos da Igreja Católica, nenhum papa sofreu tanta oposição. Nenhum foi tão diretamente detratado por membros da própria Igreja. Mesmo em Roma, cardeais e bispos ligados a grupos poderosos e ricos como Cavaleiros de Colombo, Opus Dei, Comunhão e Libertação e outros, diariamente, vendem a imagem do papa como sendo herege, no plano religioso e comunista, no campo social.
Sem dúvida, ao combater com tanta força o papa Francisco, os grupos tradicionalistas católicos prestam certo serviço à Igreja. Desmitizam a figura do papa. Mostram que o papa também pode ser criticado e que todo católico tem direito à dissenção. Esperemos que, amanhã, se ocorrer que tenhamos um novo papa de tendência mais tradicionalista, estes irmãos que hoje combatem abertamente o papa Francisco reconheçam esse mesmo direito aos que hoje defendem o papa e sua forma de viver e compreender a missão da Igreja. O que é lamentável é quando os atuais adversários de Francisco usam golpes baixos, como quando, durante o Sínodo sobre a família, espalharam que o papa tinha um tumor no cérebro e não estava lúcido para exercer o cargo. E, atualmente, encontram novas formas de isolar o papa dos seus amigos e colaboradores mais diretos.
Sem desmerecer muitos profetas e profetizas que temos nas bases e na condução de algumas Igrejas locais, o próprio fato de que, na atual Igreja Católica, a figura mais profética da Igreja seja justamente o papa, já revela que na Igreja algo não está bem. Primeiramente pelo fato de que toda Igreja é chamada a tornar real cada dia a profecia do evangelho e isso teria de vir das bases e não da cúpula. Em segundo lugar porque, por mais que o papa Francisco tenha se esforçado por transformar o Vaticano e libertar a Igreja do clericalismo e de suas consequências nefandas, por trás dele, há a contradição de uma estrutura eminentemente anti-profética e pouco aberta à renovação. Até aqui, as propostas de Francisco não conseguiram ainda penetrar profundamente no modo de organização da vida e da atuação das dioceses. A maioria se agarra ao estilo clerical e ainda vê as pastorais sociais como algo lateral ou, de certa forma, externa à missão da Igreja.
Por mais energia que o papa Francisco revele, não é fácil reformar um organismo de tantos séculos como são o papado e a estrutura da Igreja Católica. E situações de emergência como ocorreram nesta pandemia revelam que muitas dioceses e paróquias tomam como prioridade as atividades religiosas do culto e a maior preocupação parece ser abrir as portas e encher os templos de fiéis e não cuidar da vida de todos/as.
Embora a história não se repita, é bom recordar as lições que o passado nos deixa. Em 1958, morreu o papa Pio XII e a situação do Catolicismo era de extrema rigidez, centralização romana e estilo de poder imperial. No conclave, os cardeais elegeram Angelo Roncalli como papa de transição. Apenas três meses depois da sua eleição, João XXIII convocou um Concílio Ecumênico para renovar a Igreja. Isso só foi possível porque, nas bases da Igreja, os movimentos bíblicos, ecumênico e da nova teologia tinham plantado as sementes da renovação. Bastou a primeira chuva e as sementes puderam germinar e florescer.
Nos dias, atuais, apesar do longo inverno que a Igreja Católica viveu, desde o final da década de 1970 até a eleição do papa Francisco, as sementes de um novo modo de ser Igreja resistiram. Agora, é tempo de semear.
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Fragilidade e riscos da profecia do papa Francisco. Artigo de Marcelo Barros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU