Por: André | 28 Abril 2014
Como esse papa, inspirado até o fim da sua vida por uma fé hiper tradicional, pôde, aos 77 anos, abrir uma nova era de mudanças decisivas? A alguns dias da sua canonização pelo Papa Francisco (junto com João Paulo II), retorno ao itinerário de um homem apaixonado pela conversão da Igreja.
Fonte: http://bit.ly/1iWjpMr |
A reportagem é de Jean Mercier e publicada no sítio da revista francesa La Vie, 23-04-2014. A tradução é de André Langer.
“Por favor, não chamem mais João XXIII de ‘Papa bom’. Esta expressão de ‘Papa bom’ é usada indevidamente pelos meios de comunicação para colocar João XXIII em contradição com quem o precedeu e o sucedeu: Pio XII e Paulo VI não eram ‘papas maus’”. Há algumas semanas, o cardeal Loris Capovilla, que foi o secretário particular de João XXIII, sobe o tom... De acordo com a mídia, dada a clichês, o bem humorado e sorridente Angelo Roncalli só pode ser um bom entre dois vilões. Ele sucedeu o austero Pio XII, taxado de ultraconservador, e foi seguido por Paulo VI, culpado pelo crime de lesa modernidade com a encíclica Humane Vitae.
O protesto do cardeal assinalava que a memória de João XXIII é um verdadeiro desafio. Não foi por acaso que Francisco escolheu canonizar conjuntamente esse papa etiquetado de progressista e João Paulo II, considerado conservador. Já em 2000, João Paulo II uniu a beatificação de João XXIII com a de Pio IX, para fazer “passar” a elevação aos altares do pontífice reacionário.
Qualificar João XXIII de papa “progressista” é uma exagerada simplificação. Nascido em 1881 numa família pobre da região de Bérgamo, no norte da Itália, Angelo Roncalli é herdeiro de uma visão hiper tradicional da fé que ele conservará até o fim da sua vida. Seu modelo era o Pio X, conhecido por sua virulência antimodernista. Em seu diário particular, Roncalli extravasa sobre os valores do Concílio de Trento, exaltando as mortificações e os sacrifícios. Na véspera da sua morte, ele se oferece a Deus segundo uma concepção expiatória muito comum na época. “O altar quer uma vítima, eis-me pronto!” Nós podemos nos divertir e imaginar sua reação se tivesse tomado conhecimento dos questionamentos da autoridade na Igreja após 1968, ou algumas experiências vanguardistas dos anos 1970 na catequese ou na liturgia...
Conservador, João XXIII foi tudo, menos um verdadeiro revolucionário. Alguns meses após sua eleição, aos 77 anos, esse papa “de transição” surpreende todo o mundo com sua decisão de convocar um concílio ecumênico. Não se tratará, desta vez, de fulminar condenações ou ditar dogmas, mas repensar verdadeiramente a relação da Igreja com o mundo. João XXIII acredita que é hora de virar a página da hostilidade pavloviana do papado em relação à modernidade. O ‘aggiornamento’ que ele deseja é também uma atualização dos programas fundamentais da Igreja, especialmente na liturgia ou na formação do clero, mas sem agitação febril. A ruptura maior, ele a quer em outro lugar: em uma conversão profunda da relação dos católicos com aqueles que durante muito tempo foram considerados “inimigos”. Desde antes do concílio, João XXIII multiplica os contatos com os judeus e os irmãos separados, ortodoxos do Oriente e filhos da Reforma... Trata-se de acabar com o desprezo e a hostilidade que prevaleceram durante muito tempo, como proclamarão a declaração conciliar Nostra Aetate e os diversos textos sobre o ecumenismo.
Angelo Roncalli exigiu dos católicos uma conversão que ele próprio aprendeu em boa escola durante cinco décadas, nas periferias da Igreja. Em vez de uma carreira tranquila de padre, o jovem padre foi orientado para uma carreira diplomática. Seu primeiro posto foi a Bulgária, onde desembarcará com a idade de 44 anos, em 1925, para representar os interesses da Santa Sé. Ali descobrirá a ortodoxia. Dez anos mais tarde, é enviado para Istambul. Durante a guerra, contribui para salvar numerosos refugiados judeus. Nas primeiras horas de 1945, o vemos como núncio em Paris, onde ameniza os desejos do general de Gaulle de depurar radicalmente os bispos muito próximos ao regime de Pétain. Depois ele testemunhará uma atividade incansável na França, no trabalho com as dioceses francesas. Fato inimaginável hoje, é o chefe da República laica, Vincent Auriol, que lhe entrega suas insígnias de cardeal, em janeiro de 1953. Depois, Pio XII o chamará para fazer dele o patriarca de Veneza, uma cidade operária onde se relaciona com a esquerda, suscitando o descontentamento do Papa.
A preocupação de João XXIII de se envolver nas preocupações terrestres se refletirá na mais célebre das suas encíclicas, a Pacem in Terris, dirigida “a todos os homens de boa vontade”, onde exibe sua visão de uma humanidade reconciliada. Acometido por um câncer no estômago, morre no dia 03 de junho de 1963, num clima generalizado de consternação. Cinquenta anos depois, Francisco decidiu canonizá-lo, dispensando um segundo milagre. Um João tão bom só podia ser um santo João.
Veja também:
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
João XXIII, um conservador revolucionário - Instituto Humanitas Unisinos - IHU