24 Abril 2014
Os santinhos nos bares não mentem. Enfiadas no marco das prateleiras das garrafas – além do ícone do taumaturgo Padre Pio – veem-se sempre os rostos de João XXIII e de Karol Wojtyla. Nunca os de Pio XII, Paulo VI ou do Papa Ratzinger. Não conta a análise histórica dos personagens individuais, cada um de peso. Conta apenas o traço deixado no imaginário coletivo e que dura mais do que os prós e os contras, que podem ser encontrados nos arquivos de cada um.
A reportagem é de Marco Politi, publicada no jornal La Repubblica, 23-04-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Prevalece em todo o relato – a lenda, se poderia dizer, se estivéssemos em tempos homéricos – que João XXIII e João Paulo II transmitiram e que se perpetua ainda hoje no coração e na mente das massas.
No próximo domingo, o Papa Francisco leva à glória dos altares o "Papa bom" e o "atleta de Deus", e só isso, mais do que uma canonização, é uma grandiosa apropriação destinada a caracterizar o pontificado de Bergoglio.
A veneração em massa, que milhões de pessoas (por motivos diferentes) tributam a Roncalli e a Wojtyla, acabará se derramando, no cadinho borbulhante da Praça de São Pedro, sobre o papa argentino, reforçando o seu impulso reformador.
Francisco, unindo em uma única cerimônia João XXIII e João Paulo II, não se deixou encerrar em uma combinação de pastiche: como aconteceu com Wojtyla que, no ano 2000, beatificou o reacionário Pio IX junto com o doce Roncalli.
Francisco, ao escolher celebrar no mesmo dia os dois antecessores – renunciando até a um segundo milagre para a canonização de João XXIII – indica à atenção dos fiéis e do mundo o espírito dinâmico próprio de ambos. Porque o papa argentino está convencido de que a Igreja deve se mover, seguir em frente, deixando para trás estruturas fossilizadas e comportamentos pastorais inquisidores.
Eis, então, que João XXIII se torna uma estrela guia para a determinação demonstrada ao romper os esquemas ideológicos da Igreja-fortaleza, típicos da Guerra Fria. O Papa Roncalli é o pontífice que abandona o espírito de cruzada, que rejeita a demonização pessoal daqueles que pensam de forma diferente (distinguindo entre "erro" e "errante"), que arquiva as excomunhões contra a esquerda, que, na sua encíclica Pacem in terris, se dirige a todos os "homens de boa vontade", que leva a Igreja Católica para fora do jogo obsessivo da contraposição entre blocos militar-político-econômico-culturais.
No imaginário popular, João XXIII é o papa que inventa o "diálogo", a abordagem pastoral de uma Igreja disposta a entrar em comunicação com a humanidade do seu tempo, sem pré-compreensões maniqueísta.
Não se percebem aqui muitos pontos de contato com a estratégia dialogante do Papa Francisco? Com a sua clara recusa de transformar os princípios em armas de batalha contra a sociedade moderna?
Certamente não é por acaso que, durante o conclave de 2005, quando em um par de votações o cardeal de Buenos Aires se perfilou como antagonista de Joseph Ratzinger, o próprio Bergoglio (como acabou vazando) pensou em escolher, no caso de eleição, o nome de "João XXIV".
Porém, no plano doutrinal, Angelo Roncalli era extremamente tradicionalista. Ao mesmo tempo, no Concílio, convocou também um sínodo da Igreja de Roma, em que aos sacerdotes era inculcado que vestissem absolutamente a batina, que não frequentassem espetáculos públicos e, em geral, se comportassem do modo mais antiquado possível. Folhas caducas do pontificado roncalliano.
Na história da Igreja e em geral do século XX, João XXIII permanece pela coragem da convocação do Concílio Vaticano II. E pela determinação demonstrada ao situá-lo nos trilhos certos. Porque Roncalli não era realmente o pontífice bonachão dos relatos populares. Era pastoral, mas também "político".
Pensava no Concílio já antes de ser eleito e, quando inaugurou o evento, logo decidiu conceder plena liberdade para os bispos do mundo para jogar ao mar os documentos pré-fabricados na Cúria Romana e de rediscutir o programa dos trabalhos conciliares. É uma lição de liberdade e de abertura válida ainda hoje e que o Papa Francisco quer relançar no seu pontificado.
Karol Wojtyla, à primeira vista, é muito diferente do papa argentino. Mas, proclamando-o santo, Francisco quer trazer como exemplo o espírito "movimentista" do papa polonês. A atenção aos problemas e à dignidade do homem-trabalhador (palavra que pode parecer antiquada, mas não é), a atenção aos direitos humanos, o diálogo com todas as religiões convocadas a Assis em 1986, a coragem de pronunciar o grande mea culpa no Jubileu do ano 2000 pelos erros e horrores cometidos pela Igreja ao longo dos séculos, a vontade de superar antigas barreiras, entrando em uma sinagoga, em uma mesquita, em um templo budista e de se dirigir com respeito também aos sacerdotes "pagãos" da África.
Com João Paulo II, que lutou duramente contra a invasão do Iraque, Francisco compartilha a condenação sem hesitação das aventuras militares camufladas com slogans de vários tipos. E a ele também o aproxima o julgamento negativo do liberalismo selvagem, que escraviza enormes massas de homens e de mulheres.
Seguramente, são páginas negativas do pontificado wojtyliano a perseguição da teologia da libertação e dos teólogos reformistas pós-conciliares, a dura intransigência em matéria de ética sexual, o fato de ter encorajado na Itália o conúbio entre bispos e política para impedir a legislação modernizante do parlamento. E pesa a opacidade de comportamento dos seus colaboradores mais próximos ao se recusarem a lançar luz sobre a abominação de abusos como os de Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo.
Mas um personagem histórico não é um "santinho". No domingo, Francisco vai relançar o legado de um papa, que levou a Igreja a se mundializar e que, na morte, testemunhou a dignidade do sofrimento e o seu significado. Seja em nome da fé ou de um ideal humano, é igualmente válido. O que importa é a superação do egoísmo, o dar-se aos outros.
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Por que Francisco escolheu o ''papa bom'' e o ''atleta de Deus'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU