23 Junho 2020
O Supremo Tribunal Administrativo da Turquia terá que decidir em 2 de julho se a basílica de Hagia Sophia (Santa Sophia) em Istambul pode ou não voltar a ser uma mesquita. A base jurídica é o controverso valor do decreto de 1934 que a transformou em museu, sem ser publicado no Diário Oficial. A reivindicação do nacional-islamismo, após muitas décadas de protestos, poderia se tornar realidade. Muitos sinais convergem para uma decisão de pouca importância prática, mas de alto valor simbólico e na encruzilhada de muitos interesses internacionais.
O comentário é de Lorenzo Prezzi, teólogo italiano e padre dehoniano, publicado por Settimana News, 22-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em 29 de maio, por ocasião do 567º aniversário da conquista otomana de Constantinopla (1453), pela primeira vez, após 87 anos, uma sura do Alcorão foi recitada na basílica. A transmissão na TV foi comentada pelo presidente turco, Recep Tayyip Erdogan: "É muito importante celebrar o 567º aniversário ... através da oração". Em março de 2019, ele disse à agência estadual: "Hagia Sophia não deve mais ser apenas um museu. Seu status mudará. Voltará a ser uma mesquita”. Promessa já feita em 2017 e 2016. Nos protestos mais recentes, o ministro da Justiça, Abdulahmit Gül, disse em 15 de junho que se trata de "uma questão de soberania nacional", aprovada pelo "senso comum".
A catedral foi construída entre 532 e 537 por ordem do imperador Justiniano. Devido à sua unicidade arquitetônica, é considerada uma igreja sem modelos e sem imitação (cf. SettimanaNews, «Hagia Sophia: non uma moschea»). Os arquitetos Isidoro de Mileto e Antêmios de Tralles ousaram até os limites das possibilidades técnicas então praticáveis, dando vida ao principal centro religioso do império e depois do mundo ortodoxo. Quando os otomanos do sultão Mehmet II conquistaram a cidade em 1453, o primeiro gesto do sultão foi rezar na basílica. Gesto que na tradição islâmica transformou ipso facto a igreja cristã em uma mesquita. E, como tal, continuou a viver até 1934, quando o laico Mustafa Kemal Atatürk a transformou em um museu.
Pontuais e previsíveis as reações. O Santo Sínodo da Igreja Ortodoxa Grega declarou em 12 de junho que a basílica "é uma obra-prima do gênio arquitetônico reconhecido como um dos principais monumentos da civilização cristã" e alertou que "qualquer mudança provocará um forte protesto e frustração entre os cristãos do mundo inteiro, prejudicando a própria Turquia”. Convida os administradores turcos à "sabedoria" e ao "respeito", reconhecendo "o status de museu de Hagia Sophia".
Mapa da Turquia (Imagem: Wikipédia)
O arcebispo armênio, Sahak Masalyan, sugeriu a abertura ao culto do prédio tanto a muçulmanos como a cristãos: "Pertencemos a diferentes religiões, mas servimos a um só Deus", "não podemos permitir um novo choque entre cruz e crescente".
O metropolita russo Hilarion, chefe do departamento de relações eclesiásticas internacionais do Patriarcado de Moscou, enfatizou: "Qualquer tentativa de mudar o status de museu de Hagia Sophia produzirá uma modificação e uma violação dos já frágeis equilíbrios interconfessionais existentes". "A igreja é o símbolo de Bizâncio, o símbolo da fé de milhões de crentes no mundo, especialmente para os ortodoxos".
A Conferência das Igrejas da Europa (KEK) protestou em 18 de junho pela manipulação política da leitura corânica transmitida. Os bispos católicos mais prudentemente estão esperando que "Hagia Sophia conserve seu caráter de museu, mas não é nossa tarefa intervir e opinar sobre uma decisão que diz respeito apenas à República Turca", sendo a Igreja Católica local desprovida de status jurídico e, portanto, não legitimada a "aconselhar sobre assuntos internos do país".
Hagia Sophia, Turquia (Foto: Wikimedia Commons)
Na frente política, o vice-ministro grego das Relações Exteriores, Miltiadis Varvutsuitus, estigmatizou a vontade dos turcos, denunciando uma "provocação anticristã" e destacou o crescente isolamento no Conselho da Europa da Turquia. A Unesco solicitou uma consulta internacional.
Segundo uma pesquisa da Areda Survey, 73% dos turcos são a favor da transformação em mesquita. Os contrários são 22,4%, os incertos, 4,3%. Os expoentes nacional-islâmicos, por ocasião da memória da conquista otomana, protestaram em centenas em frente à catedral desde meados da década de 1950. Eles lembram que a passagem para a mesquita já aconteceu muitas vezes, como para a igreja de Akdamar e o mosteiro de Sümela e que outros monumentos, até agora interditados ao culto, foram usados para a oração dos armênios (Surp Giragos), dos judeus (sinagoga de Edirne) e dos cristãos (mosteiro de Aho). Raras, mas presentes, também as vozes que sugerem o retorno à igreja ortodoxa da catedral (a deputada Kemalista armênia, Selina Őzuzun Doga).
Bem mais perigosas as denúncias contra as minorias religiosas de terem apoiado o golpe fracassado em 2016 somando-se com os supostos objetivos de Fethullah Gülen. O jornal islâmico Gerçek Hayat tornou-se seu porta-voz. O patriarca Bartolomeu, o grande rabino I. Kahleva, o ex-patriarca armênio S. Kaloustian, juntamente com a CIA, a Otan, Clinton e João Paulo II (inclusive já morto em 2016) teriam apoiado o golpe contra Erdogan e anti-islâmico. Acusações de que no contexto turco podem se tornar muito ameaçadoras. O patriarca Bartolomeu as denunciou como "totalmente falsas e tendenciosas", "motivo de angústia para cristãos, judeus e muçulmanos e particularmente graves e irresponsável porque atentam contra a unidade do nosso povo". Existe o perigo de agressões violentos como aquelas contra a minoria grega em 1955.
Se a política interna é a favor da mudança de status da catedral, o consenso internacional é menos previsível. A União Europeia dificilmente poderia ficar calada. A Rússia, que foi aliada e concorrente na guerra síria e reconhece para si o papel da defesa das minorias cristãs no Oriente Médio, certamente não poderia compartilhar a escolha. Os Estados Unidos, que também olham para a Turquia um aliado anti-chinês por causa da defesa das minorias muçulmanas uigures, de origem turca e parceira tolerada em função anti-russa na Líbia, não trairão a aliança com o Patriarcado Ortodoxo, peão importante no contexto Ucraniano e seu eleitorado cristão. Acontece que os símbolos religiosos às vezes têm uma relevância política inesperada. Erdogan, como já fez em outras ocasiões, poderia conduzir de volta sua afirmação a uma simples promessa.
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Turquia – Hagia Sophia: o símbolo e sua força - Instituto Humanitas Unisinos - IHU