12 Junho 2020
"Não devemos esquecer que, não apenas para os homossexuais, mas também para os negros, nós católicos aprendemos o respeito, pelo menos em termos jurídicos, com os outros. Fomos à 'escola dos sinais dos tempos' – dos protestantes estadunidenses e dos ateus franceses - e aprendemos. E aqueles que não queriam aprender, há quase 170 anos, na "Civiltà Cattolica" de 1853, podiam escrever frases terríveis sobre negros", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, em artigo publicado por Come se non, 10-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Desde o começo, fiquei impressionado com a citação do papa Francisco, que abre o comunicado da CEI sobre o tema da lei sobre homofobia. Algo não estava certo. Somente retornando à fonte, considerada em sua totalidade, comecei a entender melhor o que havia acontecido com a citação. Mas vamos por partes. Aqui estão as primeiras linhas do comunicado:
"Nada se ganha com a violência e muito se perde", destaca o papa Francisco, colocando de lado qualquer tipo de racismo ou exclusão, bem como qualquer reação violenta, destinada a se revelar por sua vez autodestrutiva. As discriminações - incluindo aquelas baseadas na orientação sexual - constituem uma violação da dignidade humana, que - como tal - deve sempre ser respeitada em palavras, ações e legislações. Tratamentos prejudiciais, ameaças, agressões, lesões, atos de bullying, perseguição ... são tantas formas de atentado à sacralidade da vida humana e, portanto, devem ser combatidos de maneira inequívoca.
Mas, se voltarmos à frase completa do Papa, que é apenas de alguns dias atrás, ela é assim:
“Não podemos tolerar nem fechar os olhos para qualquer tipo de racismo ou de exclusão e pretender defender a sacralidade de toda vida humana. Ao mesmo tempo, devemos reconhecer que a violência das últimas noites é autodestrutiva e prejudicial. Nada se ganha com a violência e muito se perde”.
É claro que o Papa está falando sobre os graves episódios que, após o assassinato de George Floyd, causaram as revoltas nos EUA. Mas a frase final, a única citada no comunicado, não diz respeito à morte de Floyd, mas às reações violentas que se seguiram. No discurso do Papa, a frase cai "no final", enquanto no texto da CEI ressoa no início e chama para si toda a atenção, terminando completamente fora de contexto. Quase mudando de sentido. Parece citada por uma urgência diferente e em uma lógica meramente defensiva.
Mas todo o texto do comunicado parece sustentado por uma "semelhança oculta" - e bastante arriscada - que se revela precisamente pela citação "truncada" das palavras papais. A comparação parece ser a seguinte:
Como é correto denunciar os graves abusos e crimes cometidos contra os afro-americanos, mas não se deve reagir com a violência, porque é sempre uma derrota.
Assim é correto que seja combatida qualquer discriminação, inclusive de natureza sexual, mas uma reação violenta contra aqueles que discriminam leva a afirmar posições negativas, perigosas e até liberticidas.
A "semelhança" é, portanto, entre os defensores dos direitos dos negros em relação às violências e os defensores dos direitos dos homo-transexuais em relação às discriminações e violências.
Mas o "salto lógico", que no comunicado ocorre no parágrafo sucessivo, é quase um "salto mortal". Porque se passa de um "juízo de fato", vinculado ao caso estadunidense, a uma consideração "de direito", até de "suficiente cobertura normativa". Passa-se assim, e com muita facilidade, de uma consideração histórica e cultural para uma consideração normativa, perdendo completamente a perspectiva "pedagógica": aliás, negando qualquer espaço para possíveis intervenções normativas, porque os sujeitos em risco já estão suficientemente tutelados.
Aliás, a perspectiva é invertida novamente, porque uma nova lei, que fosse intervir na matéria, seria até "liberticida", porque tornaria toda uma cultura e tradição "penalmente relevante". E, portanto, pede-se que se atue no plano da cultura e da formação e não no plano legislativo e penal. Como se a formação não fosse feita também mediante as leis.
Parece quase que a "nova lei" seja considerada semelhante à "violência de uma reação dos afro-americanos" que querem "vingar" as discriminações sofridas. A nova lei seria equiparada a uma "violência pela qual nada se ganha e muito se perde"? Isso também pareceria no encerramento do texto, que fala de "polêmicas e excomunhões recíprocas".
Livro Uncle Tom's Cabin (Foto: Wikipédia).
Romance sobre a escravatura no Estados Unidos,
da escritora norte-americana Harriet Beecher Stowe.
Publicado em 1852, o livro "ajudou a estabelecer as bases
para Guerra Civil", segundo Will Kaufman.
Ora, o juízo sobre a oportunidade de uma lei é sempre possível, a todos e em qualquer momento. Mas alertar contra uma "violência contra a liberdade de opinião", até falar de "derivas liberticídas", na metáfora arriscada utilizada desde o início, parece muito com a admissão de uma incapacidade real de entender as lógicas - limitadas, mas reais - de uma "cultura dos direitos". De fato, essa linguagem também pode nos fazer retornar, por analogia, àquela resistência inicial à cultura dos direitos, típica do século XIX, que os confundia como "abusos" e como subversões do direito divino e das leis naturais. Por trás daquela frase "truncada" de Francisco, que se destaca no início do comunicado, esconde-se toda a floresta sombria do antimodernismo europeu, com sua suspeita radical contra qualquer "igualdade". Que ontem valia para os negros e as mulheres e hoje vale para homossexuais. Com todas as diferenças necessárias. Mas também com muitas semelhanças lamentáveis.
E não devemos esquecer que, não apenas para os homossexuais, mas também para os negros, nós católicos aprendemos o respeito, pelo menos em termos jurídicos, com os outros. Fomos à "escola dos sinais dos tempos" – dos protestantes estadunidenses e dos ateus franceses - e aprendemos. E aqueles que não queriam aprender, há quase 170 anos, na "Civiltà Cattolica" de 1853, podiam escrever, sobre negros, frases terríveis como esta:
"Assim, neles, a condição de escravos parece ter chegado a confirmar o que a natureza havia disposto; e a repugnância que as outras raças sentem ao se aproximar deles parece condená-los a uma servidão eterna. Ora todo mundo pode ver que semelhantes diferenças não se removem com os artigos dos códigos. Sendo em um estado da Confederação admitida ou não legalmente à escravidão, sempre será verdade que um branco não sentará para sempre na mesma mesa com um homem de cor, nem desejará entrar na mesma carruagem ou ter comum o banco, não só no teatro, mas até no templo..." ("La schiavitù in America e la Capanna dello zio Tom", Civiltà Cattolica, 1853, IV, 2, 2, 2, 481-499).
Até 170 anos atrás, dizia-se: "não se removem com os artigos dos códigos". Essa tendência a desconfiar das normativas modernas, que introduzem lógicas igualitárias e reconhecem direitos a sujeitos "naturaliter" diferentes, é antiga. E é o resultado de um trauma e uma ferida, que é difícil de curar. E isso sempre pode considerar como um perigo mortal de tempos em tempos, "a cabana do tio Tom" ou uma lei contra a homo-transfobia.
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Homofobia e a Cabana do Tio Tom: algumas “semelhanças” no comunicado da CEI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU