19 Mai 2020
É difícil escapar das evidências da crise climática quando, de vez em quando, uma tempestade inunda vilas inteiras. Proferir argumentos negacionistas choca com a realidade de verões mais longos. As fotografias aéreas dos polos derretidos poderiam servir, neste mundo simbólico, para reforçar a verdade da ciência. No entanto, apesar de numerosos relatos, a consciência ecológica não decola o suficiente para despojar a sociedade do peso do individualismo. A história da atualidade é a da desigualdade, a do neoliberalismo e do consumo vertiginoso. Todos eles, elementos que impossibilitam frear - ao invés de mitigar - as consequências da crise ecossocial.
A reportagem é de Alejandro Tena, publicada por Público, 17-05-2020. A tradução é do Cepat.
Agir é necessário. É o que reivindicava Hoesung Lee, presidente do Painel de Cientistas Especialistas da ONU sobre Mudanças Climáticas (IPCC), na última cúpula climática. Mas, para que o problema seja totalmente resolvido, também é necessário um discurso capaz de reverter a espiral ideológica em que se baseiam os princípios do individualismo neoliberal. Reforçar o comum é essencial, caso se queira enfrentar o desafio climático com aspirações de sucesso. “Somos uma cultura que não se sente ecodependente e não é capaz de entender até que ponto dependemos da natureza. Coloca-se em prática o antropocentrismo, o não se sentir dependente da natureza”, expressa Yayo Herrero, antropóloga ecofeminista.
É, em suma, “o triunfo da individualidade”, aponta Jordi Mir, doutor em Humanidades e especialista em Filosofia Política. E esse é um princípio essencial de um sistema baseado no crescimento exponencial e de um modelo socioeconômico que não atende às evidências de que a riqueza material colide com os limites biofísicos do planeta. “Por trás dessas ideias dominantes, há uma clara ideia de colocar certos pensamentos na agenda. Por exemplo, a questão do transporte público versus a liberdade individual de possuir transporte privado. As empresas automotivas são muito ativas na promoção da necessidade de criar um direito de comprar um carro, mas não porque são ruins ou perversas, mas porque esse é seu modelo de negócios”.
No entanto, esses anseios de possuir riqueza material poderiam colidir, em uma perspectiva climática, com os direitos comuns e, finalmente, com o futuro de uma sociedade que, sobretudo, almeja sobreviver. “A crise ecológica e a crise que estamos vivendo agora, da covid-19, possuem algo em comum: afetam-nos como espécie e não como indivíduos. Não há saídas individuais, sabemos que anualmente milhares de pessoas morrem de doenças relacionadas à poluição e não existe solução individual para esse problema”, acrescenta Mir, mostrando como a chamada liberdade individual de consumir e ter certos comportamentos pode ir contra o comum.
O poder da indústria cultural tem sido fundamental para gerar essa necessidade de construir uma identidade em torno do consumo. “Desde os anos 1980, levou-se adiante um discurso neoliberal muito intenso para desacreditar o público, eliminá-lo quando possível, o que incentivou a tendência humana de buscar reconhecimento. Essa tendência pode assumir formas boas para toda a sociedade, mas também negativas, como diferenciar-se competitivamente através do consumo, o que não é puramente espontâneo, mas o resultado de um desenvolvimento discursivo altamente apoiado por todos os meios de comunicação que nos cercam, também da ficção”, avalia Alicia Puleo, doutora em Filosofia pela Universidade Complutense de Madri e professora de Filosofia Moral e Política, da Universidade de Valladolid.
“Quando assistimos ficção, não percebemos como internalizamos o modelo de consumo. Em vez disso, o público, o comum e o ecológico são apresentados de maneira estereotipada, como algo negativo e fantasioso. Também foi representado como algo antiestético e até como algo que responde a algum tipo de patologia mental”, acrescenta a filósofa e autora de Claves ecofeministas.
Superar a construção cultural que liga o sucesso ao material talvez seja o grande desafio social do século XXI. “Temos três eixos claros para superar esse afã de luxo privado. Por um lado, precisamos de uma organização baseada na suficiência econômica. Depois, o princípio da distribuição, ou seja, a redistribuição da riqueza e a luta contra a riqueza excessiva. Por último, promover o comum e o cuidado como prática política”, argumenta Herrero. O desafio, portanto, volta-se para a necessidade de “criar vidas luxuosas em um clima de suficiência” para poder assumir que “materialmente a vida deve ser muito mais simples”.
Mir aponta para a necessidade de nivelar os discursos do clima de confrontação, ao passo que “o escárnio nunca deve ser uma opção”, especialmente quando a visão de mundo materialista e individualista responde a um modelo de sociedade que deriva de uma série de más práticas que são inconscientes pela maior parte da população. “Por trás de tudo isso está a ideia de que temos a liberdade e o direito de consumir e, por exemplo, viajar de avião quantas vezes quisermos. No fundo, a mensagem ‘compre passagens low cost para viajar barato’ está ligada a um série de incentivos econômicos dos quais muitas pessoas dependem, porque nossas sociedades se articulam em torno disso”, afirma o humanista. “Nós planejamos algo muito diferente. Diante dessa ideia de liberdade para decidir o que, como e o quanto consumir, deve haver uma resposta que seja capaz de conscientizar”. Trata-se, afinal de contas, de tornar mais evidentes as contradições do sistema com a sustentabilidade da vida em todas as suas formas.
“Qual sociedade é mais livre: aquela em que você pode comprar passagens low cost ou a que restringe essas viagens devido ao problema ecológico? Onde se é mais livre: em um lugar onde são reguladas as condições materiais de vida mínimas ou onde a liberdade consiste apenas em poder lutar de maneira individual contra a precariedade? Somos mais livres quando permitimos que cada entidade contamine o que considera apropriado ou quando intervimos para restringir as emissões?”, questiona Mir. “Parece que a liberdade de todos terá que ser construída a partir de uma dimensão coletiva, porque nossas diferentes liberdades individuais colocadas para competir colocam em perigo a sustentabilidade da vida”.
Reverter esse paradigma e fazer de todos esses valores próximos ao decrescimento um movimento social de massas é um desafio que vem para reverter uma construção cultural afiançada com décadas de domínio neoliberal. “Uma das chaves é que o discurso ecológico seja positivo, baseado no ideal de justiça e em um modelo alternativo de vida que seja atraente. Se o discurso é de renúncia e austeridade, será muito difícil conseguir algo”, argumenta Puleo. “Teríamos que insistir em outro paradigma de felicidade: não se trata de ser mais pobre ou de ter a vida mais reduzida, mas de descobrir novas possibilidades que não se baseiam no consumo destrutivo da natureza”, acrescenta, tomando como exemplo a ética epicurista: “É muito adequada para esses problemas, pois é hedonista, porque não renuncia ao prazer, mas se centra naqueles que não estão vinculados aos luxos materiais”.
O escritor britânico George Monbiot falava em uma coluna no The Guardian sobre fazer do luxo privado um luxo comum. Ou seja, fazer com que os esforços que os indivíduos colocam para possuir objetos materiais sejam destinados para a construção de serviços públicos de qualidade. Prescindir, por exemplo, do carro para gerar um transporte público de qualidade com base em critérios de igualdade. “Existem objetos individuais que inevitavelmente nos levam à injustiça social, mas que repensados em torno das dinâmicas cooperativas pode ser válidos”, expõe Herrero. “Ocorre-me, por exemplo, que, diante das ondas de calor, o ar-condicionado não pode ser extensível a toda a população, mas podem ser criados espaços coletivos refrigerados”.
O desejo de mudar o modelo nasce do decrescimento, não como uma ideologia, mas como um fenômeno do qual a humanidade não escapará, já que o colapso do planeta resultante da atividade econômica baseada no crescimento parece, como alerta a ciência, cada vez mais inevitável. “A chave é como decrescer: por uma via fascista e autoritária que envolve a redução de direitos ou pela via democrática?”, questiona Herrero. A dificuldade em gerar uma consciência global de planeta é um dos primeiros obstáculos, já que a mudança climática vem sendo denunciada desde os anos setenta do século XX e os passos para a resolução, desde então, foram poucos.
Em certa medida, existe um paralelismo com a atual crise da covid-19. Assim entende a antropóloga ecofeminista, que destaca como a paralisação da economia e as decisões de confinamento foram tomadas principalmente porque a vida estava em risco. Esse risco mortal é algo comum à situação de emergência ecológica que a sociedade como um todo experimenta, no entanto, neste caso, “a maioria das pessoas não tem essa percepção de risco”.
“Enquanto não chegarem os extraterrestres e invadirem o planeta, não haverá reação conjunta”, ironiza Mir, traçando um paralelo metafórico com os efeitos devastadores da crise climática. “Parece que o ser humano precisa de uma concretização dramática para poder reagir”. Não em vão, para o humanista, a crise do coronavírus serve para evidenciar como às vezes o coletivo prevalece sobre o indivíduo, mesmo em uma sociedade como a atual, o que gera certas esperanças.
De qualquer forma, esse desafio de articular um discurso poderoso, capaz de gerar consciências sociais em torno de uma mudança de paradigma, se apresenta como um passo necessário para que a sociedade tenha alguma resiliência diante do colapso climático. Para Puleo, conseguir fazer com que o movimento pelo decrescimento tenha certo resultado requer “um discurso positivo” e integrador baseado em “pactos de ajuda mútua”. Ou seja, “acordos entre movimentos sociais com certo parentesco - feminismo, ambientalismo, animalismo, pacifismo, antirracismo... – que, às vezes, têm certos atritos inúteis. A ideia é enriquecer cada movimento com a sensibilidade de outros. Acho que isso é uma chave para tecer um decrescimento bem-sucedido”, conclui a filósofa.
Articular mudanças sociais acarreta riscos. A desvirtuação de um movimento pode custar caro, ao passo que a história mostra como o poder tem pintado de progresso o que acaba desembocando em desigualdade. O caminho da utopia ecossocial, nesse sentido, não está livre de curvas e desvios perversos. O denominado greenwashing, o banho verde, é uma realidade já observada no presente, quando empresas que há décadas apostam seu crescimento no petróleo e na expansão materialista da riqueza, passam a investir em campanhas de marketing e em negócios aparentemente livre de poluição.
A transição ecossocial pode levar a um aumento das brechas que separam o Sul Global, preso em uma pilha de injustiças sociais, e o Norte Global, que baseia sua supremacia na extração de recursos dos Estados em desenvolvimento. “No século XVIII, havia nações muito avançadas em termos de direitos humanos, mas no fundo mantinham a escravidão em suas colônias do Caribe. Poderia ocorrer uma situação assim, em que os países do norte mudassem para o paradigma verde à custa de manter sujos outros territórios. Isso é algo que já ocorre atualmente”, adverte Puleo.
“Qualquer proposta verde que não esteja consciente da distribuição e do direito de todos em acessar o mínimo corre o risco de levar ao autoritarismo”, disse Herrero. O exemplo de Le Pen é válido para a antropóloga, que se lembra de como seu discurso de autossuficiência e realocação produtiva se baseia na rejeição e na criminalização. “Seria um erro pensar em uma organização de cidades verdes que repousam sobre o fluxo de materiais e energias que vêm de outros territórios”, aponta.
Portanto, a encruzilhada da humanidade passa não apenas por desmaterializar as aspirações vitais e potencializar os valores comunitários, como também por fazer isso de forma global, sem gerar nichos territoriais de falsa sustentabilidade.
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Como fazer do decrescimento um movimento social de massas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU