18 Mai 2020
A capacidade de entrar em contato direto com as pessoas, de ouvir com real interesse os outros. Por telefone de Londres, Ken Loach, o grande mestre do cinema do lado dos menos favorecidos, primeiro pergunta como tudo está indo e depois encara os problemas de frente, sem meias-palavras, com a coerência lúcida que o guiou ao longo de toda a sua carreira, iluminada por sucessos como Chuva de Pedras, Eu, Daniel Blake e Ventos da liberdade, vencedores da Palma de Ouro em Cannes. Há apenas um ano, no Festival, Loach apresentou Você não estava aqui, cem minutos para descrever o inferno dos novos escravos dos anos 2000, os "autoexplorados" que fazem as entregas a domicílio, trabalhadores sem-teto nem leis que, a partir da emergência Covid, ficaram mais desamparados e em perigo do que nunca.
A entrevista é de Fulvia Caprara, publicada por La Stampa, 15-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Após a experiência do Covid, estamos destinados a um repensamento global, de todos os pontos de vista, econômico, político e social. O que pode acontecer?
Tudo pode acontecer, mas o repensamento só será possível se houver um programa político e liderança capaz de implementá-lo. Sim, certamente as pessoas redescobriram a vizinhança, elas entenderam que, se agirem juntas, podem se fortalecer, que é preciso cuidar umas das outras e que os problemas nunca são resolvidos na solidão, mas compartilhando-os com os outros. E também todos nós respiramos o ar puro, percebemos como é diferente do que estamos acostumados e entendemos que a contínua exploração excessiva de recursos ambientais não é correta.
No entanto, toda essa conscientização precisa ser traduzida em um programa político que invista em serviços públicos, que vise relançar o valor do trabalho, não para aumentar os lucros dos patrões, mas para atender as necessidades de todos. Caso contrário, os novos sentimentos correm o risco de evaporar e, portanto, todos voltaríamos para trás, como se nada tivesse acontecido.
A crise do trabalho é o primeiro dos problemas dramáticos no horizonte do pós-pandemia, e os trabalhadores precários, como aqueles de seu filme, são as vítimas designadas. O que você pode falar a respeito?
Sim, é verdade. Nesta fase, os entregadores a domicílio tiveram muito trabalho, estávamos todos trancados em casa e precisávamos deles. Isso não significa que eles não continuem trabalhando em condições péssimas, de total vulnerabilidade. Eles estão sob pressão e precisariam de grande ajuda porque entram em contato, sem qualquer tipo de proteção, com muitas pessoas que, talvez, possam estar doentes. Eu acho que a deles está entre as primeiras situações que precisam ser sanadas, prestam serviço a empresas privadas e, portanto, não fazem parte de nenhum plano geral de saúde. E, em vez disso, deveriam ter contratos, salários e proteções adequados.
Nestas últimas semanas, a Europa Unida apareceu muitas vezes como um sonho contra o risco de se dissolver. Como você vê isso?
“A questão é sempre a mesma, ou seja, o fato de as raízes em que a União Europeia se baseia são, antes de tudo, o livre mercado e, apenas, secundariamente, as necessidades das pessoas. Assim, o lucro sempre permanece a exigência prioritária e isso é muito perigoso. Eu me pergunto o que resta da esquerda europeia, aquela com uma visão diferente, e acredito, por exemplo, que deveríamos ouvir Yanis Varoufakis. Precisamos de uma Europa unida com outros princípios, interessados em proteger o meio ambiente, tutelar os direitos básicos dos trabalhadores, produzir coisas de que precisamos e não apenas promover a corrida ao consumismo.
Como você acha que seu governo lidou com a epidemia?
Foi uma gestão completamente equivocada. O que estava para acontecer estava claro, mas não se mexemos a tempo, muito pelo contrário. Houve grandes atrasos, em tudo, começando por conseguir todos o equipamento necessário para evitar os contágios. E também muita confusão no plano das informações, sobre o que dizer às pessoas. A impressão foi que nossos governantes não sabiam como manejar o problema.
O resultado é que agora, olhando para o número total de mortes, não está claro quantos morreram pelo vírus e quantos, ao contrário, perderam a vida porque o sistema de saúde, sobrecarregado pela emergência, não conseguiu atendê-los adequadamente. As razões para tudo isso vêm de longe, têm a ver com o programa de ‘austeridade’ do governo, um plano que envolveu justamente os serviços públicos. Dez anos atrás, foram desenvolvidas as ferramentas necessárias para enfrentar esse tipo de crise, mas nunca foram renovadas e adequadas à passagem do tempo, enfim, é um fenômeno de incompetência em larga escala.
O presidente Trump está insistindo na campanha de que os cientistas chineses são os responsáveis pela disseminação do coronavírus. O que você acha?
Eu não sei, estou aqui em casa como você, não tenho informações dos serviços secretos que possam me dizer como estão as coisas ... Acredito, no entanto, que a China enfrentou a epidemia melhor do que os Estados Unidos e tenho a impressão que Trump esteja apenas tentando criar um inimigo facilmente identificável, um truque, uma maneira racista de lidar com as coisas.
Como foi o seu lockdown?
Tentei dar um passeio todos os dias, mas, para ser sincero, entre e-mails e muito mais, sempre tinha muito o que fazer ... acho que, se tudo isso tivesse acontecido há trinta anos, teríamos tido muito tempo livre, mas agora não é assim, e tenho certeza que é o mesmo para você também. Vemos nossos garotos nas reuniões do Zoom quase todos os dias, e isso é bom, mesmo que eu, nesse tipo de conexão, não consigo ficar muito tempo.
Você está pensando em um novo filme?
Não sei, é uma possibilidade, não estou realmente pensando em um novo projeto e, de qualquer forma, acho que a crise sanitária mudou tudo, começando com o humor das pessoas, das suas prioridades. Qualquer que seja o filme que for feito, você terá que levar em conta esse público diferente.
Muitos se perguntam sobre o tipo de cinema que virá após a pandemia, fazendo comparações com o período pós-guerra. Que ideias você tem sobre isso?
Não sei, no pós-guerra as pessoas viveram momentos terríveis, talvez possa acontecer um novo neorrealismo, acredito que todos precisaremos rir, mas também pensar que as pessoas vão querer refletir, não voltar para trás, para o caos que havia antes, para as péssimas condições vividas nos tempos de Thatcher, Blair e Johnson, o vírus expôs tudo isso.
O Covid acabou com o cinema nas salas de exibição, favorecendo a disseminação do streaming. Como isso vai acabar?
É claro que o streaming poderia ter uma influência muito forte na sobrevivência dos cinemas. Quanto a mim, não consigo ver um filme se não for em uma sala. Mas também penso que, em sua época, dizia-se que o cinema teria acabado com o teatro e depois a televisão acabaria com o cinema, mas nada disso aconteceu. As pessoas precisam de histórias e de ver a si mesmas na tela. É importante, portanto, e esse deve ser outro compromisso político, que toda pequena cidade continue a ter seu cinema com uma programação interessante, que faça você redescobrir a alegria de assistir a um filme nos cinemas e, agora, também a de sair casa.
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“Só nos recuperaremos do vírus se a Europa se colocar ao lado dos explorados”. Entrevista com Ken Loach - Instituto Humanitas Unisinos - IHU