Enquanto permanecer o preconceito de que Deus poderia acabar com o mal do mundo, ninguém pode crer em sua bondade. Artigo de Andrés T. Queiruga

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24 Abril 2020

"Somente considerando e assumindo as consequências da nova situação é possível uma teodiceia que atenda às possibilidades e demandas da cultura moderna. Deve consistir em três partes principais: fundamentar o ponto de partida, demonstrando sistematicamente a impossibilidade de um mundo-sem-mal (Ponerologia); compreender a intenção e o valor da postura tradicional (caminho curto da teodiceia); integrar as duas etapas em uma versão do conjunto atualizada criticamente (caminho longo da teodiceia)", escreve o teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga, em artigo publicado por Religión Digital, 20-04-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

A mudança cultural que conjecturou a entrada, lenta mas imparável, da modernidade supôs uma mudança irreversível no enfrentamento do problema do mal. O plano teórico, que antes ficava absorvido e assimilado pela confiança básica, apoiada na evidência e plausibilidade sociocultural da fé, fez valer a sua relevância. Com a agudização do espírito crítico a partir do Iluminismo, apareceu a possibilidade do ateísmo, e a confiança subjetiva já não era suficiente para ocultar e assimilar a dificuldade teórica. A contradição entre a existência terrível do mal e da fé em Deus que, sendo onipotente e infinitamente bom, não o evitava, consentia ou inclusive o mandava, era forte demais para poder ser ignorada.

 

As consequências da mudança cultural

 

Era fatal que em pouco tempo o problema tivesse que explodir. Pensando nisso, fiquei curioso a ver o que dizia no século XVI Francisco Suárez, em sua longa Disputa Metafísica XI, De malo, “sobre o mal”. Trata de finas e eruditíssimas considerações metafísicas sobre sua essência e de suas causas. Inclusive aparecem referências metafísicas a Deus como causa última e criadora de tudo; porém nenhuma palavra sobre de que isso poderia questionar sua existência. Pouco depois no século XVII, Leibniz, em discussão com as dúvidas lancinantes de Bayle, escreve a Teodicea, para defender a fé cristã em Deus. Sua tentativa genial foi panfletariamente ridicularizada (aproveitando algum defeito e sem compreender seu verdadeiro significado) por Voltaire, em Cândido. Essa crítica, acolhida na rotina cômoda e repetitiva de muitos filósofos e historiadores, fez com que o início de Leibniz não fosse aproveitado por teólogos, que seguiram fechados nos velhos argumentos. O resultado foi que no século XIX, Büchner pronunciou a sentença: “o mal é a rocha do ateísmo”.

 

Há algo de incrível nessa sequência histórica. A contradição que afeta o problema, tal como de ordinário se apresenta, torna-se evidente; e não resultam menores os efeitos deletérios de não buscar uma resposta teológica à altura da nova situação cultural. Cada vez que ocorre um terremoto, denuncia-se um novo naufrágio das canoas... ou aparece o coronavírus, a contradição acaba se tornando uma arma letal contra a fé em Deus. No melhor dos casos, perturba gravemente a fé dos que creem, deixando-a teologicamente desarmada. Um grupo de padres amigos, com a sinceridade que os honra, acaba de reconhecer: “o que está acontecendo nos produz temor e inclusive nos suscita perguntas sobre Deus”.

 

É ainda mais incrível que a teologia não termine de notar a seriedade mortal do problema, percebendo que a dificuldade é real e que, sem resolvê-la completamente, a fé agora é culturalmente impossível. Porque enquanto permanecer o preconceito de que Deus poderia, se ele quisesse acabar com todo o mal do mundo, ninguém pode acreditar em sua bondade, sem ser forçado a negar seu poder: ninguém acreditaria na bondade de um excelente cientista que, sendo capaz de acabar hoje, devastação do coronavírus, ele não gostaria de fazê-lo, por mais altos e ocultos que fossem seus motivos.

 

É por isso que é surpreendente, insisto, que a teologia, em vez de se aplicar com todo o rigor para desfazer o erro, continue a mantê-lo, mesmo que seja indireta e inadvertidamente criptografada em muitos raciocínios sobre o problema do mal. Isso acontece não apenas na imaginação geral, mas também em tratados teológicos. A tal ponto que grandes teólogos podem continuar falando de “responsabilizar Deus” pelo sofrimento de crianças inocentes (Guardini, no leito de morte) ou dizendo que “ele não seria absolvido em um tribunal humano” (Rahner, que cita Guardini); ou mesmo afirmando que, no Horto, Deus “comportou-se como Judas” (Barth), e que “se deve falar de uma descarga da ira de Deus sobre quem lutou no Monte das Oliveiras” (Von Balthasar).

 

Já se entende que, se citar essa obscura ladainha, que poderia ser prolongada, não é para falar mal dos teólogos a quem devemos tanto (quandoque bonus...: “Homero também cochila às vezes”). Mas creio que seja indispensável alertar sobre a urgência do problema: conclusões tão surpreendentemente divergentes revelam um erro muito sério nas premissas. É imposta a necessidade de impedir que a falta de esclarecimento siga incrustada, injetando um veneno sutil que deforma a imagem de Deus, contaminando o raciocínio teológico central e ameaçando a credibilidade do Evangelho.

 

O dilema de Epicuro

 

A dificuldade é tão real e tão séria que nunca foi escondida da consciência religiosa, e buscou diversas soluções para ela. Em geral, à medida que a imagem divina melhora, eles tendem a desculpar a Deus, responsabilizando outros agentes. Eles podem ser supra-humanos, como o “deus mau” nos dualismos e em diferentes seres demoníacos. Ou eles podem assumir a responsabilidade sobre o ser humano, em castigo por alguma culpa, como na narração mítica de Gênesis; neste caso, com influência demoníaca.

 

Em um pensamento mais reflexivo, o problema se torna mais agudo. Pode alcançar acentuações religiosamente dramáticas no livro de Jó ou radicalmente filosóficas no dilema de Epicuro: “Se Deus pode e não quer, ele não é bom; se ele quer e não pode, ele não é onipotente...”. Mas o preconceito de que Deus poderia, se quisesse, sempre permanece intacto. Esse preconceito foi então reforçado pela ideia de intervencionismo divino, com sua influência direta nos eventos do mundo e da história: “tudo está cheio de deuses”, diziam na Grécia, e na Bíblia são constantes as intervenções divinas na vida humana. Nesse ambiente cultural, o dilema não foi superado com facilidade.

 

O que pode ser surpreendente é que tal visão, que por si só torna irrefutável a objeção levantada pelo dilema, não impediu sua assimilação na cultura pré-moderna. A razão é que nela, com muito poucas e ambíguas exceções, a existência de Deus (ou dos deuses ou do divino) desfrutava de evidência cultural e plausibilidade social. Apesar de tão aguda e parecer tão forte hoje em dia, a objeção era experimentalmente assimilável: no mundo grego, nem Epicuro, que propôs o dilema, nem o Sexto Empirista, que o analisou ao ligar todas as saídas, deixaram de acreditar em Deus. E no mundo cristão, nem Lactâncio, que o transmitiu à teologia, nem os outros teólogos que o conheceram, incluindo Tomás de Aquino, sentiram sua fé questionada por ele.

 

Mas essa não é a situação na cultura moderna. Agora não é mais possível evitar a lógica do dilema. A única saída real é quebrá-lo e provar que é falso. Felizmente, é possível fazê-lo, graças à mesma mudança cultural que tornou sua força virulenta. Uma análise verdadeiramente crítica e atual pode logo perceber que tem um problema: o dilema esconde um viés pré-moderno. Dá, com efeito, como válido a priori e sem exame, a imaginação de que um mundo sem mal é possível.

 

O surpreendente é que esse caráter oculto e acrítico do preconceito faz com que essa imaginação afete crentes igualmente tradicionais e ateus progressistas. Porque ambos – um para atacar Deus e outros para manter a fé em sua existência – continuam a tomar essa possibilidade como garantida. Isso acontece apesar de que, enquanto se submete a um exame minimamente atualizado, apareça seu caráter anacrônico e criticamente desatualizado. Porque um mundo-sem-mal só pode ser visto hoje como um “fóssil” cultural, um remanescente mítico de paraísos religiosamente primitivos ou fantasias freudianamente infantis.

 

Trata-se, claramente, de um resíduo expirado que, na prática, ninguém mais admite de verdade, e que é mantido porque chega criptografado nas rotinas herdadas das discussões em torno da teodiceia. E, bem observado, só permanece neles. No pensamento moderno real e eficaz, de Espinoza – “toda determinação é uma negação” – passando por Hegel – a contradição é a lei de toda realização finita –, a ideia de um mundo-finito-sem-males é tão impossível e contraditório como a de um pau-de-ferro ou de um círculo-quadrado.

 

A impossibilidade é mais difícil de perceber em relação ao mundo devido à sua complexidade, onde melhorias parciais e avanços concretos ocultam a impossibilidade do todo e dos princípios. Fora do ônus ideológico dessas discussões, faz parte das evidências atuais, onde os sociólogos sabem que uma sociedade perfeita é uma utopia; biólogos e cosmólogos, que não há evolução sem conflitos e catástrofes... e o mesmo senso comum reconhece que não é possível saborear e soprar ou fazer tortilhas sem quebrar ovos.

 

E pur”, e ainda assim o passo para a renovação continua sem ocorrer. Pena que a Reforma, com o recurso de Lutero ao deus absconditus e a desconfiança contra a razão, renunciando a todas as tentativas de “teologia natural”, não tenha ajudado nesse sentido. Na Contrarreforma Católica, a neoescolástica desperdiçou suas energias em discussões tão sutis quanto anacrônicas sobre “premoção física” ou “ciência medieva”. As consequências implícitas às quais os teólogos podem chegar às vezes e sem querer já são mencionadas, acusando indiretamente Deus de causar ou consentir o mal no mundo. Outras resistências mais diretas se manifestam proclamando abertamente a impossibilidade da teodiceia ou mesmo denunciando seu caráter como um empreendimento orgulhoso e até blasfemo.

 

Atualizar e reestruturar a teodiceia

 

A influência dessa rotina permanece no contexto teológico. A teologia dialética criou um ambiente que tende a desqualificar qualquer tentativa de realizar críticas como uma tentativa de se colocar demonicamente acima de Deus para julgá-lo: no catolicismo, esforços como o de Armin Kreiner, por exemplo, buscando maior rigor racional, tropeçam ainda com a acusação de racionalismo (excessivo); e protestos tão lúcidos quanto os de Karen Kilby ficam barradas em sua obra por um antifuncionalismo que diminui suas consequências.

 

Apesar de ser abusivamente esquemática, essa alusão histórica nos permite entender que a elaboração da teodiceia deve ser reiniciada. Uma vez exposto o preconceito tradicional, é necessário buscar um entendimento verdadeiramente moderno, partindo da base firme – como já disse, na realidade de evidências comumente admitidas – da impossibilidade de um mundo-sem-mal. Porque, à primeira vista, é apreciado que uma mudança radical é possível no problema: afirmar hoje que Deus não é bom ou onipotente, porque ele não faz um mundo perfeito, é equivalente a argumentar que ele não o é, porque não quer desenhar círculos-quadrados ou não pode fazer ferros-de-madeira.

 

Se, do ponto de vista crítico, essa afirmação não tem sentido, a questão muda radicalmente. Agora, a única pergunta correta (mesmo que a expressão seja força antropomórfica) é: por que, sabendo que um mundo, se existe, tem que ser finito e, portanto, exposto ao mal, Deus cria-o, apesar de tudo? O mistério não é anulado; mas parece situado no lugar certo. Apresenta uma pergunta real e, portanto, também abre a possibilidade de uma resposta realista. Por um lado, pode atender rigorosamente o que acreditamos e sabemos sobre Deus e seu relacionamento conosco. Por outro, tem a seu favor a consciência da autonomia criativa, isto é, das leis que determinam as operações e possibilidades do mundo.

 

Rumo a uma teodiceia atual

 

Somente considerando e assumindo as consequências da nova situação é possível uma teodiceia que atenda às possibilidades e demandas da cultura moderna. Deve consistir em três partes principais: 1. fundamentar o ponto de partida, demonstrando sistematicamente a impossibilidade de um mundo-sem-mal (Ponerologia); 2. compreender a intenção e o valor da postura tradicional (caminho curto da teodiceia); 3. integrar as duas etapas em uma versão do conjunto atualizada criticamente (caminho longo da teodiceia). Já se entende que este não é o lugar para expô-lo em detalhes. Vou me dedicar, de uma maneira alusiva, aos pontos mais inovadores relacionados ao tema da oração.

 

Ponerologia: a impossibilidade de um mundo sem mal

 

Na realidade, o fundamental já foi dito. O caráter mítico e pré-moderno do preconceito que impossibilita a renovação é claramente visível, porque colide de frente com a consciência moderna da autonomia das leis que governam o mundo físico e das opções da liberdade humana. Um mundo onde os limites de uma realidade nunca colidiram com os de outra e onde uma liberdade finita nunca poderia dar errado... seria um mundo onde os círculos poderiam ser quadrados e todas as liberdades sempre serão modelos primitivos de ética e santidade. Em suma, seria apenas uma fantasia da imaginação e uma contradição da razão.

 

A importância principal desse achado é que ele comete um erro que é muito instalado na cultura: pensar que o mal representa, direta e imediatamente, um problema religioso, que, normalmente, acaba sendo usado como arma contra Deus. Na realidade, é óbvio que o mal constitui um problema humano comum e fraterno. Todas as crianças nascem chorando, independentemente da religião dos pais, e nenhum humano, homem ou mulher, escapa ao sofrimento ou à morte, nem pode evitar incorrer em qualquer tipo de culpa ou sofrer injustiça.

 

Daí a necessidade de introduzir a Ponerologia (do grego ponerós, mau), ou seja, um tratado do mal como um problema que, em princípio, afeta a todos como seres humanos e igualmente. E isso afeta anteriormente qualquer afiliação religiosa ou irreligiosa, crente, agnóstica ou ateísta. O que varia são apenas as respostas, ou seja, as diferentes formas de situar a vida e seu significado diante do desafio difícil e inevitável.

 

É evidente que ela obriga todos nós, sem distinção de credo ou ideologia, a tentar responder, integrando-a a uma visão global da existência: em uma cosmovisão ou, falando em seu amplo sentido filosófico, em uma “”. E nessa perspectiva, a fé é a do ateu Sartre, afirmando que o mundo é absurdo, como o do agnóstico que diz “não sei”, como o da pessoa religiosa que encontra em Deus a solução definitiva. São diversas opções antes do mesmo problema comum.

 

Em princípio, todas elas têm o mesmo direito, e todas têm a mesma necessidade de elaborar os motivos em que se baseiam: precisam “justificar” sua “fé”. Indo para um neologismo, inventado ad hoc, é possível afirmar que todos os que se posicionam diante do mal precisam de uma pisteodiceia (do grego, pistis, fé, e dikein, julgar). Dessa maneira, a resposta religiosa aparece pelo que é: uma entre as diferentes respostas humanas ao problema comum. O que normalmente é chamado de Teodiceia é precisamente a pisteodiceia cristã, que é especificada porque procura justificar a fé em Deus como a resposta definitiva ao problema do mal.

 

Podem parecer descrições, mas esse esclarecimento tem uma consequência humanamente transcendental: o verdadeiro problema não está em atacar as opções dos outros, mas em tentar verificar a verdade e o valor da opção escolhida. Dar razão dessa aos demais é importante; mas somente se – vencendo vícios inveterados – não for feito contra, mas com espírito fraterno, no diálogo de razões e em busca de colaboração. A ponerologia mostra que, mesmo levando em consideração as diferenças cosmovisionais e de “fé”, existe acima de tudo aquele espaço anterior e comum, onde todos nos sentimos unidos diante do mesmo problema fraternalmente humano.

 

A crise do coronavírus, portanto, se torna uma lição difícil, porém saudável, que está nos lembrando. E ajuda a verificar se representa uma verdadeira “epifania”, pois está dando origem a iniciativas generosas em todos os lugares, demonstrando que a única atitude verdadeiramente humana é unir forças e esperanças diante do sofrimento e da angústia de todos. Enfrentar o mal é o lote inesquecível de seres finitos com liberdade finita.

 

Caminho curto da teodiceia

 

Confesso que demorei um pouco para perceber esse “caminho” sobre o qual ninguém fala quando se lida teologicamente com o problema do mal. Nem ele inicialmente avaliou sua importância. Fiquei intrigado com o fato de que, por séculos, conhecendo o dilema de Epicuro e sem ter uma verdadeira solução lógica para ele, grandes teólogos e verdadeiros crentes não se sentiram perturbados por sua fé, nem consideraram necessário enfrentá-lo com rigor expresso e sistemático. É óbvio que seria indigno pensar em uma “má fé” sartreana, pensando que eles o fizeram para ocultar ou falsamente sair de problemas. Tinha que haver uma razão substantiva válida e justificativa da fé sem ser negada pela objeção.

 

A explicação está, sem dúvida, na riqueza e complexidade da realidade humana, que em seu raciocínio não funciona com um único registro. O da lógica abstrata é certamente muito importante. Mas apenas em seu campo, embora essa obviedade seja hoje obscurecida pela predominância abusiva da lógica científica ou cientificista. Ao seu lado, na vida real, está também e não menos importante, a lógica da confiança. E, em seu próprio registro, não é menos rigoroso em processos ou menos certo em conclusões. Nos casos em que pode brilhar completamente, chega até o momento: pessoalmente não tenho menos certeza do amor de minha mãe que do teorema de Pitágoras.

 

É essencial distinguir bem os registros. O único requisito, como felizmente ensina a Fenomenologia, é manter rigorosamente a intenção específica em cada caso. É aqui que se encontra o caminho curto da teodiceia, como resposta que, diante do desafio do mal, repousa na confiança. Um exemplo simples pode torná-lo algo mais: se entrar em uma casa, vemos uma mãe assistindo ao lado da cama onde seu filho doente chora de dor, chegamos espontaneamente a uma dupla conclusão: “temos certeza” de que a aparente passividade da mãe não questiona seu amor; ademais, “sabemos” que ela está fazendo todo o possível para evitar esse sofrimento.

 

Entende-se que salte imediatamente a objeção: a mãe não pode, mas Deus sim. A reação é compreensível, e o mesmo dilema de Epicuro mostra que ele sempre esteve presente. A diferença atual é que, antes da modernidade, o registro da confiança funcionava com força suficiente, capaz de envolver com a lógica concreta da vida a dureza da possível objeção na teoria. Como disse Blondel, os seres humanos geralmente são capazes de fazer na prática o que não sabemos nem compreendemos expressamente. Mesmo sem sua influência ser teoricamente esclarecida, a eficácia da confiança prevaleceu sobre a influência da lógica abstrata.

 

Após a mudança cultural, essa predominância não é garantida. O equilíbrio antigo foi subvertido, tanto porque os crentes também fazem parte da cultura altamente secularizada de hoje quanto, sobretudo, por causa das críticas generalizadas à religião. A confiança não pode agora contornar as demandas legítimas do nível lógico. Se o dilema não for quebrado expressamente e rigorosamente, a confiança por si só não será suficiente para superar seu desafio. De fato, é isso que está acontecendo, e as consequências estão se mostrando sérias. Pela coerência da teologia, primeiro, como apareceu, por um lado, nas declarações acima mencionadas de grandes teólogos e, por outro, na situação aporética da teodiceia. E, acima de tudo, pela própria vida de fé, abandonada sem defesa efetiva contra as acusações que transformam o mal na “rocha do ateísmo”.

 

Caminho longo da teodiceia

 

Essa situação não anula o valor do caminho curto, uma vez que a confiança em Deus pertence à essência da fé cristã e continua sendo o grande fundamento de sua validade. Mas, precisamente para continuar afirmando e garantindo sua coerência, precisa ser atualizada, completando a confiança com uma resposta lógica que responda ao desafio da crítica moderna. Porque a verdade é que a novidade radical da situação não foi apenas reconhecida. Diante do desafio do mal, a teodiceia continua sem distinguir expressa e rigorosamente os dois registros, e a confusão torna seus argumentos ineficazes e facilmente refutáveis.

 

Para entender a importância dessa conjunção e nos limitar ao problema de sua conexão com o modo de orar, nada mais eficaz do que analisar como a confusão afeta até o recurso mais profundo e cativante disponível para o cristianismo: a paixão e a morte de Jesus. Assim, por exemplo, James Martin, em um artigo recente e amplamente lido (de 20 de março: Onde está Deus em uma pandemia?), começa por reconhecer que “não sabemos”, que “não podemos entender Deus”, para concluir: “Mas se o mistério do sofrimento é incontestável, para onde o crente pode ir em tempos como este? Para o cristão e talvez até para outros, a resposta é Jesus”.

 

Já se percebe que esse recurso, por si só verdadeiro, não é válido, porque responde do registro de confiança a uma objeção que se move no registro da lógica abstrata. Argumentar que o mal não é um argumento contra a fé, porque Jesus deu a vida por nós para nos salvar e que, portanto, o próprio Deus se identificou com o sofrimento humano, não responde à objeção atual. Ele até se expõe a uma desqualificação que pode levar ao cinismo, porque é inútil alguém fazer um grande sacrifício para se livrar de um mal que ele poderia ter evitado anteriormente. No século XIX espanhol, uma sátira falava do capitalista que fundou um hospital para remediar os pobres... mas primeiro ele havia feito os pobres.

 

Já se compreende que, igual que antes, não se tratava de negar o valor da oração de petição, tampouco agora se nega o da vida curta da teodiceia. Trata-se exatamente do contrário: de assegurar e reafirmar seu pleno direito, distinguindo de maneira expressa os dois registros. Desse modo se conseguem dois objetivos:

1) demonstrar que o dilema não afeta esse caminho e nem sequer o toca, porque não ataca a razão precisa em que ela se apoia: a confiança no amor de Deus;

2) que, ademais, a objeção é inválida em seu próprio registro lógico, porque ela própria fica prisioneira do preconceito pré-moderno da possibilidade de um mundo-sem-mal (torna-se, de fato, anacrônico negar a existência de Deus, porque não quer ou não é capaz de criar o “círculo-quadrado” de um “mundo-sem-mal”).

 

Duas consequências

 

Nesse ponto vale a pena aludir a um exemplo tão conhecido, e inclusive entranhável em sua intenção, como é a afirmação de Albert Camus em “A Peste: “rechaçarei até à morte amar essa criação onde há crianças que são torturadas”. Note-se: não se diz “mundo”, mas sim criação; e não se diz que “sofrem”, mas sim que são torturadas. Pronunciada dentro de uma terrível suspeita ou acusação contra a fé (que recorda a frase não menos famosa de Dostoiévski), de maneira seguramente não consciente leva encriptada a convicção de que isso é responsabilidade de Deus, que poderia ter criado um mundo onde isso não fosse possível.

 

Mas aqui já é interessante focalizar a consideração em duas consequências que uma teodiceia consequentemente atualizada propicia. A primeira refere-se a preservar a integridade da própria imagem de Deus. A incapacidade de dar uma resposta válida ao falso dilema levou muitos teólogos a negar a onipotência divina, tornando quase na moda, mesmo entre os pregadores, falar da “impotência” de Deus e que ele próprio estaria sujeito ao sofrimento. Essa posição implica sensibilidade religiosa, na medida em que proclama que Deus não é e não pode ser insensível ao sofrimento humano, e também honestidade lógica, na medida em que a possibilidade de um mundo sem o mal continua a ser aceita. Mas incorre no absurdo teológico de, por um lado, pensar em um deus impotente e, portanto, finalmente incapaz de nos criar e salvar; e, por outro, eternizar e absolutizar o sofrimento que permaneceria eternamente sem qualquer remédio possível (Rahner corretamente advertiu que de nada nos serviria um deus que estivesse confuso em nossa própria miséria).

 

Já foi visto como a ponerologia, com a refutação do dilema de Epicuro, torna desnecessárias explicações adicionais a esse respeito. E até gostaria de salientar que isso não apenas nos permite afirmar com lógica completa a onipotência divina, como também faz brilhar melhor a glória de seu infinito amor ao Pai (Mãe). Criando por amor, ele sabia (voltemos ao antropomorfismo) que suas criaturas seriam expostas à picada do inevitável mal. Mas ele os criou porque em sua infinita sabedoria ele sabe que, apesar do mal, a existência valeu a pena; em seu amor incondicional, ele está disposto a recorrer para ajudar (a Bíblia bem lida não diz outra coisa); e em sua onipotência ressuscitante, é capaz de nos libertar definitiva e totalmente do mal na comunhão final, quando, livre das condições físicas da finitude, Ele “será tudo”. Então esse verdadeiro mistério se torna possível, porque, graças a Jesus, acreditamos que, além da morte, Deus acolhe nossa “infinitude no vazio e na aspiração”, protegendo-a para todo o sempre no oceano infinito de seu amor.

 

Para a presente reflexão, a segunda consequência oferece um interesse mais direto: a relação entre os dois caminhos da teodiceia. A insistência na necessidade de concluir a rota curta, cobrindo os ataques do lado lógico com a rota longa, parece diminuir sua importância. Na realidade, eleva-o ao ponto culminante, porque, ao liberar a confiança da sombra insidiosa da suspeita, permite que seja vivida de forma limpa e totalmente segura. Além disso, em resumo, retorna a primazia frente ao registro lógico.

 

Isso é de extraordinária importância, porque seu escopo é geral. Como o mal toca as próprias raízes da existência, quando a crise aperta a confiança, pode se tornar o verdadeiro plano de salvação. Portanto, ela é mais poderosa que a “lógica do papel”, como Newman a chamava. Pessoalmente, se por uma hipótese absurda eu tivesse que arriscar minha vida escolhendo entre o teorema de Pitágoras e o amor de minha mãe ou de meu pai, não hesitaria por um segundo em aceitar a confiança em seu amor. Por alguma razão, o recurso à cruz sempre foi o último refúgio nas situações mais desesperadoras. E pode continuar sendo com mais razão, se a confiança puder realmente ser vivida em seu significado autêntico.

 

O que exige contemplar novamente o profundo senso de ir à Cruz, reafirmar sua autêntica capacidade de consolação e esperança realista. Hoje existe uma tendência teológica generalizada de colocar o centro da revelação cristã no mistério da paixão e ressurreição do Senhor, como se toda a mediação salvadora de Jesus dependesse disso. Mas, mesmo sem a menor intenção de prejudicar sua importância capital, seu significado pode ser desviado, colocando em risco a exemplaridade verdadeiramente humana da Cruz.

 

Para entendê-lo, basta pensar na hipótese irreal, mas isso foi historicamente possível, de perguntar o que aconteceria se Jesus de Nazaré, depois de passar a vida proclamando e vivendo o Evangelho, tivesse morrido uma morte natural em sua cama. Sua revelação não existiria e nele não teria ocorrido o culminar de salvar a história? Não poderíamos continuar acreditando que vê-lo é ver o Pai? Além disso, a insistência no caráter extraordinário e fisicamente milagroso do que aconteceu nos impede de entender o caráter real e verdadeiramente humano de sua colisão extremamente difícil com o sofrimento e o mal? Finalmente, se a crucificação fosse algo “ordenado por Deus” (no sentido anteriormente criticado de “ter sido capaz de evitá-la”), o desafio do dilema de Epicuro não seria reproduzido com a máxima potência?

 

Aqui também tudo muda quando Jesus enfrenta, como nós, o problema do mal diante do sofrimento físico horrível e da injustiça humana incompreensível contra quem “passou a fazer o bem”. Porque então entendemos ainda melhor o que já apareceu ao meditar a oração do Monte. Sua tradição religiosa, embebida na ideia de intervencionismo divino, certamente não lhe permitiu superar a objeção no registro da lógica abstrata. Mas, apesar disso, ele conseguiu manter tão completamente sua convicção do amor de Deus e a decisão inabalável em sua fidelidade, que conseguiu viver a terrível crise apoiada pelo registro de confiança.

 

Os Evangelhos, também neste caso com “orações teológicas”, conseguiram interpretar e expressar simbolicamente o que ousei chamar de “a última lição” que Jesus descobriu no caminho de sua experiência reveladora. Apesar da limitação cultural, os evangelistas sinópticos – mais realistas e menos tímidos que a teologia atual – reconhecem a crise no grito final que Marcos e Mateus colocaram na boca de Jesus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? ”; mas também a superação, na mais sublime expressão de uma oração feita com uma esperança contra toda a esperança: “Pai, nas tuas mãos coloco a minha vida”.

 

É por isso que também me atrevi a escrever que a crucificação foi uma terrível má sorte para Jesus, mas uma inestimável fortuna para nós. Porque, graças ao fato de ele ter conseguido viver com confiança naquela situação extrema em que tudo parecia falar de abandono por Deus, já podemos ter certeza de que não há situação humana que possa indicar abandono por Deus e que, portanto, se pode questionar a possibilidade de confiança total e definitiva e sem falha possível. Ao contrário dos teólogos que ainda incompreensivelmente continuam hoje a falar de verdadeiro abandono pelo Pai, Paulo de Tarso sabia como entender melhor. Ele, que também conhecia crises e injustiças, chicotadas e perigos da morte, entendeu e expressou em uma das passagens mais profundas de toda a Bíblia. Vale a pena reproduzi-lo neste tempo de angústia, sofrimento e perguntas: “Porque tenho certeza de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem os poderes, nem a altura nem o abismo nem qualquer outra criatura podem nos afastar do amor que Deus tem por nós em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8,37-39).

 

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