Por: João Vitor Santos | 24 Agosto 2017
Ao longo de todo este ano de 2017 estão sendo lembrados os 500 anos da Reforma Luterana. Mas o que de fato foi esse movimento que tem o dia 31 de outubro como data inaugural? Para o teólogo e pesquisador da Escola Superior de Teologia - EST Walter Altmann, a Reforma vai muito além da figura de Martinho Lutero e seu ato de afixar suas 95 teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, questionando a Igreja Católica em 1517. “Aliás, hoje, historiadores até questionam esse momento, pois ele teria enviado as teses ao arcebispo, seu superior direto, tornando assim seus questionamentos conhecidos. Sim, é um ato importante, mas qual o significado de publicar essas teses numa sociedade onde a maioria não sabia ler?”, questiona. Para ele, mais significativo do que enaltecer a figura de Lutero é compreender os valores evangélicos que ele retoma. “Ele era um homem comum. Nunca teve uma teologia sistemática, reagia de acordo com sua consciência e, claro, não se omitiu diante dos desafios de seu tempo”, completa.
Altmann recuperou a história do monge Lutero na conferência Reforma ontem e hoje. Relevância social e eclesial, na quinta-feira, 17 de agosto, no evento semanal IHU Ideias, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no campus São Leopoldo da Unisinos.
Para ele, os 500 anos são uma data importante, mas que precisa ser comemorada com sobriedade. “A Federação Luterana Mundial, inclusive, decidiu explicitamente usar a palavra comemoração, e não celebração e muito menos jubileu. Essas palavras até têm sido usadas, mas elas nos tornam ufanistas demais. Na realidade, nós comemoramos, evocamos a memória em gratidão em muitos sentidos, mas também num sentido de autocrítica”, explica. O teólogo refere-se a passagens mais contraditórias, e até condenáveis, na vida de Lutero e, depois, de seus seguidores. “O ecumenismo se caracteriza fundamentalmente pelo reconhecimento da riqueza e beleza de outras expressões confessionais dentro da cristandade e, ao mesmo tempo, pelo reconhecimento de que se estamos historicamente divididos; por tantas razões, ninguém está isento de culpa e responsabilidade nesse processo”, pontua.
Altmann: "Não podemos transportar as percepções de Lutero direto para a realidade de hoje, mas podemos nos inspirar nos princípios evangélicos "
(Foto: João Vitor Santos/IHU)
Esse afastamento a que se refere levou ao recrudescimento tanto por parte de católicos como de luteranos. Entretanto, mais do que pontuar fatos que levaram à cisão, Altmann destaca que essas comemorações são um convite ao ecumenismo, a destacar a reaproximação entre as igrejas, essencialmente nos últimos 50 anos. “A caminhada ecumênica não pode esconder as falhas do passado, isso é parte do caminho da reconciliação”, aponta. “Lutero nunca quis fundar outra igreja. Ele até pediu que ninguém se chamasse luterano. A frase contundente dele é ‘quem sou eu, pobre e fedorento saco de vermes, para que alguém se designe por meu indigno nome? Porque eu não fui crucificado por ninguém. Que todos se designem simplesmente de cristãos’”, recorda, ao destacar que a ênfase está em ser “evangélico luterano” aquele que tenta através da Palavra reconstituir os valores presentes no Evangelho.
Altmann faz questão de destacar o caráter humano de Martinho Lutero. “Era um pecador como qualquer outro, com suas falhas”, reitera. Revolucionário no seu tempo, o monge também era questionador e tinha personalidade forte. Características que o colocavam em divergências com os próprios reformistas. É o caso, por exemplo, da relação com os anabatistas. “Eles eram, podemos dizer, a ala mais à esquerda, mais radical da reforma”, explica. Segundo o teólogo, alguns dos seguidores dessa ala acabaram radicalizando algumas perspectivas de Lutero, gerando dissensos e mais tarde outras igrejas que, dentro do próprio movimento da reforma, não mais se alinhavam com Lutero. É o caso dos anabatistas. “São igrejas que optaram pelo rebatismo, não reconhecendo o de infância, algo a que Lutero se opôs”.
As consequências dessas divergências teológicas culminam em conflitos. Altmann recorda que, à época, havia o entendimento de que todos os habitantes de uma determinada região precisavam confessar sua fé numa única religião. “É quando se determinam o território de protestantes e o território católico”, exemplifica. O acirramento é tamanho que entre 1618 e 1648 as diferenças se materializam numa guerra religiosa entre protestantes e católicos. “Na base, estava a consciência de ambos os lados de que num lugar todas as pessoas deveriam pertencer à mesma confissão religiosa”, acrescenta.
Imagem icônica de Lutero afixando suas 95 teses que questionam a Igreja Católica da época (Imagem: luteranos.com)
O surgimento dos anabatistas e a divisão entre os reformistas trouxe ainda mais perturbações. “Lutero, influenciado por seus companheiros, exortou que se reprimisse o movimento anabatista pela força do Estado. E, em alguns casos, há, inclusive, a morte de líderes anabatistas”, explica o teólogo. Uma das igrejas herdeiras dessa ala são os menonitas. “Simons Menno foi um desses líderes que foi perseguido e desterrado. É uma história de séculos, de memória desse conflito”. Para Altmann, fazer essa memória é importante, e o resultado é a reaproximação que há entre as igrejas, essencialmente nas últimas décadas. “A Assembleia Luterana de 2010, que ocorreu na Alemanha, teve uma celebração comovente de aproximação entre as famílias luteranas e menonitas”. Ele recorda que havia sido preparado um ambiente de deliberação para votar entre os líderes um pedido de perdão para, mais tarde, promover a celebração religiosa. “Quando chegou o momento de votar, o presidente teve uma inspiração e disse que não podíamos votar, e convidou a quem se sentisse à vontade que se colocasse de joelhos. Foi emocionante, estive presente e vi mais de mil pessoas dando as mãos e orando juntas”.
O teólogo ainda ressalta a relação de Lutero com outras religiões e alguns equívocos que acabou cometendo com relação a judeus e também muçulmanos. Esses equívocos não se dão apenas no aspecto da religião, mas também no espaço político. A relação do monge com os camponeses é outro capítulo muito controverso de sua história. “É muito sabido que Lutero se opôs aos camponeses, mas, talvez, não é tão sabido que no princípio ele se colocou a favor desses camponeses”, pontua. Altmann se refere ao fato de Lutero ter sido evocado pelos próprios camponeses como uma espécie de mediador, pois todos estavam tocados e inspirados pela perspectiva da reforma.
Assim, Lutero adere às principais demandas dos camponeses e exorta os príncipes a atenderem as principais demandas. “Só que antes que agisse como mediador e trouxesse à luz seus escritos, o conflito armado acontece muito violentamente entre camponeses e príncipes. Ele acaba se decepcionando e também fica muito preocupado com o caos que se estabelece desse confronto”. Para o teólogo, são esses os componentes que levam Lutero a pedir a intervenção dos príncipes com força para dissolver os embates. “Mais uma vez o transcorrer é trágico, porque quando esse escrito sai os camponeses já haviam sido dizimados pelas tropas. E assim saiu como uma legitimação teológica posterior ao massacre ocorrido. São capítulos dolorosos da Reforma Luterana”, analisa.
O monge também se dirige diretamente aos príncipes. De acordo com Altmann, ele busca essa interlocução por ver neles um poder político de Estado. Ou seja, se dirige à classe social que compreende ser a possível de promover mudanças.
Talvez o episódio mais emblemático e reproduzido por artistas acerca da Reforma seja a divulgação das 95 teses de Lutero. Ele produz esses questionamentos num contexto de Idade Média, onde, mais tarde, é reconhecido como momento em que inaugura a ideia da Modernidade. Altmann explica detalhadamente traços que revelam essa transição de pensamento de um tempo para outro, mas, essencialmente, destaca a perspectiva teológica de que os valores evangélicos podem ser praticados por todos, o Deus está próximo e acessível, pois o Cristo se fez à imagem e semelhança dos homens. Isso serve como contra-argumento, por exemplo, que justificava a venda de indulgências por parte da igreja católica já que o perdão poderia ser buscado com atos e sem essa mediação. “Essas teses se propagaram rapidamente. Prova que mexeram com muitas coisas que estavam latentes e que não eram propriamente apenas questões de Lutero”, acrescenta.
Impressão das 95 Teses em uma igreja de Nuremberg, atualmente disponível na Biblioteca Estadual de Berlim (Foto: Wikipédia)
Altmann escolhe três das 95 teses para demonstrar a mudança de pensamento, a transição epocal que Lutero propõe. A primeira, a de número 1, e mais fundamental para ele, é a de que Lutero retoma, a partir do Evangelho de Marcos, a pregação do Cristo. “Ele recorda que Nosso Senhor Jesus Cristo disse que é preciso nos arrependermos e que toda a nossa vida deve ser de penitência. Lutero faz isso porque se confronta no confessionário com a realidade de que muitas pessoas não fazem penitência”. Segundo o teólogo, muitos deixavam a penitência em favor da indulgência, podendo ser comprada e facilmente apagar a culpa. “As pessoas até apresentavam a carta de indulgências que as liberava de todos os pecados, segundo quem havia vendido”, destaca. Assim, segundo Altmann, ele esclarece que não é apenas um ato ou um documento que traz a absolvição, mas sim requer uma vida penitente.
Outra tese destacada pelo teólogo é a 37. “Ele vai se tornando mais radical e vai dizendo que qualquer cristão tem participação em todos os bens de Cristo e da igreja por dádiva de Deus, mesmo sem carta de indulgências”. Assim, dentro da Doutrina da Justificação de Lutero, explica Altmann, há um consenso entre os cristãos. “Em 1999 houve a assinatura de um documento entre o Vaticano e a Federação Luterana acerca da Doutrina da Justificação. Se diz que, nesse ponto, que lá na Reforma foi ponto central da divisão, chegou-se agora a um consenso básico e que as diferenças de formulação e ênfase são aceitáveis dentro do relacionamento entre as igrejas nos dias de hoje”, analisa.
A terceira tese destacada pelo teólogo é a de número 45, que diz que “quem vê um carente e o negligencia para gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus”. Com isso, Altmann destaca que Lutero quer deixar claro que não tem valor comprar indulgências da igreja e ignorar os pedidos de necessitados. Pelo contrário, nem o papa será capaz de absolver esse cristão que terá provocado a ira de Deus. “É uma tese contundente”, pontua o teólogo.
A Reforma Luterana e toda a transição epocal na qual estava imersa trouxeram mudanças para o catolicismo. Além do movimento denominado por muitos pesquisadores como contrarreforma, a igreja católica se viu obrigada a repensar muitas de suas posições a partir das provocações de Lutero. É o período, por exemplo, da experiência mística de Inácio de Loyola e da constituição de novas ordens religiosas, como a Companhia de Jesus. Historiadores e teólogos destacam a similaridade entre as experiências de Lutero e Loyola. Pontos que por muito tempo ficaram à margem em decorrência da divisão.
Ecumenismo: Papa (centro) celebra culto ecumênico ao lado de pastores nas comemorações dos 50 anos da Reforma (Foto: Religión Digital)
Para Altmann, a comemoração dos 500 anos da Reforma também tem essa função, esse virar a página e aproximar católicos e luteranos, sanando divergências políticas e teológicas. Para ele, o exemplo máximo foi a presença do papa Francisco na abertura das festividades numa catedral luterana. “Pela primeira vez, em 500 anos, se comemorou a reforma com união, e não no espírito de uns contra outros, num pleno espírito ecumênico”, destaca.
Na conferência, Walter Altmann convida a assumir outros desafios. Para ele, o espírito reformador de Lutero não deve cessar. Isso significa pensar nas questões que inquietavam o religioso, mas trazer para a realidade de nosso tempo, tendo sempre em perspectiva os valores evangélicos. “Ele, por exemplo, era muito perturbado com a questão da morte, do pecado e do purgatório. Era algo muito daquela época, mas nós podemos trazer isso para nosso tempo e nos questionarmos não somente em relação à morte e ao pecado, mas na busca de um sentido para nossa vida. É uma luta de sobrevivência”, aponta, ao lembrar das dificuldades de se viver num mundo hoje tão competitivo e desigual.
Mais uma vez, acredita o teólogo, o diálogo e a união de diferentes religiões pode oferecer um caminho. “Todos temos um anseio por inclusão social”, destaca. Altmann ainda lembra que Lutero trouxe a perspectiva do acesso a Deus e à salvação por graça da fé. “Significa pensar a dignidade do ser humano enquanto imagem de Deus. Aí reside a necessidade de pensar uma vida digna a todos, em inclusão social”. A própria tradução da bíblia, entre as ações de Lutero, para ele, é uma forma de conceder essa dignidade, pensar num Deus e numa Palavra acessível a todos. “É a educação como forma de dignificação”, completa.
Por fim, Altmann destaca a necessidade de ver o mundo como cenário para o exercício da santidade cristã, uma santidade acessível a todos e passível de ser gerada a partir das ações de qualquer cristão. “É o espírito do monge, mas atuando no mundo. Foi o que Lutero fez. No nosso tempo, é a busca de direitos humanos como direitos de Deus em cada ser humano”, reflete. A fala do pastor tem conexão direta com a perspectiva da irmandade, fazendo de todos como que divindades criadas à imagem e semelhança de Deus. Daí a importância da construção de um mundo de igualdade e paz. “Se um homem é torturado, é o próprio Deus que é torturado”, finaliza.
Livro de Altmann, Lutero e a Libertação (São Leopoldo, RS: Sinodal, 2017)
Teólogo pela Escola Superior em Teologia, doutor em teologia sistemática pela Universidade de Hamburgo, Alemanha. Atualmente é professor pesquisador da Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo. No campo da Teologia, atua com os temas de ecumenismo, teologia e teologia latino-americana, teologia da libertação e ética.
Foi pastor-presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB, entre 2002 e 2010, moderador do Conselho Mundial de Igrejas, entre 2006 e 2013. Possui inúmeras publicações, entre as quais destacamos o seu recente livro, Lutero e Libertação (São Leopoldo: Sinodal, 2016), que também foi traduzido para o inglês e lançado nos Estados Unidos.
A história de Martinho Lutero foi reconstituída em muitas produções cinematográficas. Confira duas das produções, disponíveis na íntegra no You Tube.
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O desafio de compreender Lutero e a reforma 500 anos depois - Instituto Humanitas Unisinos - IHU