17 Março 2020
O filósofo francês Pierre Zaoui escreveu extensivamente sobre como lidar com tragédias e outros contratempos.
A entrevista é de Élodie Maurot, publicada por La Croix International, 16-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nesta entrevista, ele sugere que enfrentemos a Covid-19 de um modo um tanto estoico, enquanto ficamos atentos aos nossos valores de justiça e comunidade.
Diante do coronavírus, como podemos distinguir entre o medo razoável e o pânico mortal?
É absurdo dizer “parem de se preocupar” ou “não há motivo para entrar em pânico”, porque nunca há um bom motivo para entrar em pânico. O pânico – palavra que vem daquelas ovelhas que o deus Pan adorava assustar – está sempre ligado ao medo exagerado e incontrolável. Uma vez que o pânico assume o controle, é tarde demais para agir. Por outro lado, é interessante falar sobre “medo razoável”, porque um certo número de pessoas hoje não estão absolutamente com medo. No entanto, todos conhecemos pessoas idosas e vulneráveis. Não ter absolutamente medo, pelo menos para eles, parece monstruoso. Se podemos agir, portanto, é em algum lugar entre essa ausência monstruosa de medo e a sensação de pânico.
Não é proibido se reconectar com a grande Indiferença Estoica, para a qual existe uma versão ateísta e uma versão cristã, presente entre as Madres e os Padres da Igreja. Ela consiste em não se preocupar com tudo que não depende de si mesmo. Essa é a solução que Mérimée aconselhou a Stendhal em 1832, quando ele perguntou o que fazer diante da epidemia de cólera na Itália. Mérimée respondeu: “1. Lave suas mãos. 2. Não se importe”. Não podemos controlar se ficaremos doentes ou não. Mas podemos lavar as mãos e tomar as precauções mínimas de segurança. Também podemos tentar enfrentar o que está acontecendo conosco e, entre outras coisas, fazer o que podemos: nos preocupar com nossos sistemas de saúde, com o modo como os mais pobres se recuperarão dessa crise e assim por diante...
O confinamento reduz o nosso movimento físico. Que outros tipos de atividades devemos tentar (re)descobrir?
A vida é uma relação entre atividade e descanso. Em vez de causar ansiedade, esse período de confinamento também pode ser alegre e servir como uma espécie de retiro espiritual. Em sociedades que estão em constante estado de aceleração, não é errado parar um pouco e abrir-se aos movimentos da vida do espírito. Todos nós temos pilhas de livros que não lemos, muitas discussões que ainda não tivemos tempo de fazer com pessoas de quem gostamos. Essa pausa nos dará algum tempo para isso. Podemos ter menos atividades grandes (pegar um avião, sair, viajar...), mas talvez existam outras atividades menores que são essenciais.
Viver é estar conectado uns aos outros. Até que ponto podemos aceitar o confinamento sem questioná-lo? Penso em particular em pessoas muito idosas que não podem ser visitadas em lares de idosos ou naquelas que sofrem por estarem isoladas... E depois as restrições aos funerais, que permitem apenas a presença de familiares mais próximos...
O fato de os funerais não serem celebrados ou de serem celebrados sob condições muito restritivas me parece assustador. Eu entendo que medidas de proteção precisam ser tomadas (como máscaras, distanciamento social...), mas prestar nosso último respeito aos mortos é o fundamento da nossa humanidade. Hegel não estava errado quando disse que todo o sistema da vida ética se baseia nesse dever. Do mesmo modo, não podemos deixar os idosos ou vulneráveis em solidão. Alguns poucos dias, tudo bem. Mas cinco semanas, me parece impossível. Talvez haja um risco, um perigo, mas temos que aceitar isso.
Como você se recupera de não comparecer ao funeral de um ente querido? De não dizer adeus a um ente querido? Nessa crise, não há apenas a violência contra as liberdades civis que podemos ver em ação na China, mas também a violência contra os fundamentos da nossa humanidade. É muito importante não colocar a vida acima de tudo, como fazem os sobrevivencialistas. Existem valores acima da vida que contribuem para uma vida verdadeiramente humana. A proximidade com os mais frágeis e o dever de visitar os doentes são fundamentais. Eles não são apenas evangélicos, são também universais.
Essa crise sanitária está nos ajudando a entender melhor a fragilidade da vida?
A questão da fragilidade da vida me parece ambígua. Por um lado, é claro que não queremos mais ouvir sobre essa fragilidade coletivamente. Isso explica por que o nosso sistema de saúde na França foi desmoronando nos últimos 15 anos. Por outro lado, nunca fomos tão sensíveis à fragilidade da “nossa” vida: a atenção a si mesmo, a preocupação consigo mesmo, a preservação da saúde pessoal são muito fortes. Como diz Hume, não é irracional eu preferir a destruição do mundo inteiro a arranhar o meu dedo. Esse egoísmo racional é horrível, mas está muito presente hoje. Em vez de falar sobre a fragilidade da vida, que corre o risco de nos fazer ficar girando em círculos, prefiro falar sobre a fragilidade dos nossos valores, que devem ser o foco de toda a nossa atenção: democracia, justiça, liberdade, solidariedade, saúde, educação e assim por diante.
Deveríamos ter cuidado com uma possível complacência ou fascínio pelo desastre?
As pessoas têm muitas razões para amar um desastre. Ele coloca tudo em questão, ele nos ajuda a esquecer os nossos próprios problemas, a preencher o nosso tédio, a ver que todos sofremos e, portanto, a esquecer o nosso próprio sofrimento. Não devemos apenas ficar fascinados pelos desastres, mas também devemos levar em conta o fato de que existem desastres de verdade, como a guerra na Síria, com metade da população deslocada e bombardeada pelos seus próprios líderes. Comparado a isso, o coronavírus me parece ser uma pequena catástrofe hoje. Sem falar do aquecimento global. O perigo real não é tanto o fascínio pelo desastre, mas sim a incapacidade de priorizar os desastres.
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Coronavírus: “O perigo real é a incapacidade de priorizar os desastres” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU