09 Março 2020
"Uma das coisas que me parecem mais admiráveis do poeta Cardenal é que depois de ter feito tantas coisas (como seu irmão Fernando) porque acreditavam fazer um serviço aos pobres naquele primeiro governo sandinista, foi ter sido um dos primeiros a se distanciar quando o sandinismo começou a apodrecer com o governo de Ortega. Se falta algo no mundo de hoje é essa capacidade para a autocrítica, que converteu em fundamentalistas todas as militâncias", escreve José I. González Faus, espanhol, teólogo e jesuíta, em artigo publicado por Religión Digital, 05-03-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Poeta ao mesmo tempo irregular e grandíssimo (seu Cântico Cósmico tem páginas magníficas). Loquito, era assim chamado pela sua mãe dona Esmeralda. Em uma noite, em plena campanha de alfabetização, quando os ex-somozistas financiados pelos Estados Unidos assassinavam brigadistas, e o irmão de Ernesto, Fernando Cardenal, diretor da campanha, passava por alguns dias de angústia e preocupação, sua mãe falou por telefone com um jesuíta de Manágua e depois de dizer dez ou doze vezes: rezei muito pelo meu filho Fernando, está muito mal..., concluiu: “vai se tornar loquito assim como Ernesto”.
Dizia loquito com carinho e lucidez de mãe. Fernando era a organização e a ordem. Ernesto a poesia e a desordem. Ambos igualmente cordiais. Ministro da Cultura depois da queda do ditador Somoza, diziam os sandinistas que o ministério era dirigido por uma mulher e que o papel de Ernesto era simplesmente arrecadar dinheiro na Europa.
Famoso por toda sua história e sua obra posterior, isso não deveria nos fazer esquecer que talvez o mais valioso da vida de Ernesto foram os anos da comunidade de Solentiname, em uma espécie de “mosteiro trapista leigo” onde, além de uma espiritualidade libertadora nasceram aquelas paráfrases dos salmos bíblicos, dos quais vou citar um fragmento do salmo 15 (16):
“No hay dicha para mí fuera de Ti.
No rindo culto a las estrellas del cine,
ni a los líderes políticos, ni adoro dictadores.
No estamos suscritos a sus periódicos, ni inscritos en sus partidos,
ni hablamos con eslóganes ni seguimos sus consignas.
No escuchamos sus programas ni creemos sus anuncios.
No nos vestimos con sus modas ni compramos sus productos...
Yo no envidio el menú de sus banquetes...
El Señor es mi parcela en la Tierra Prometida”
Se não me lembro mal, o escutei contar que, quando entrou como trapista no convento de Getsemani em Kentucky, seu mestre de noviços (que era nada menos que Thomas Merton) disse ao recebê-lo: “a vida contemplativa é um semi-êxtase e vinte anos de deserto”... Ernesto administrou muito bem esse semi-êxtase em seus desertos posteriores, como expressa o título de outro livro seu que não fala somente da noite escura, mas sim do “Telescópio na noite escura”. Volto a citá-lo:
“El mar, la rosa, la mujer,
toda cosa nos habla de Dios.
Pero la mujer con bikini en el mar
también nos dice que no es Dios.
Todo ser es transparente, pero
La transparencia no es otra cosa
más que un no-ser para que pase la luz”.
E como vivemos no mundo em que vivemos, se torna impossível fazer essa evocação sem alguma referência à famosa foto com João Paulo II: Ernesto ajoelhado e sorridente, o papa ameaçando-o com o dedo em riste. O que vou contar, explicou-me pessoalmente seu irmão Fernando há bastantes anos, com o pedido de guardar o segredo. Passados tantos anos e os três nomes que acabo de citar já mortos, creio que aquela petição já não tem validade.
O que ocorreu então naquela cena que girou o mundo? Sabe-se que Wojtyla não queria de nenhum modo (e com razão) padres em cargos de governos políticos. Os irmãos Cardenal, aceitando esse princípio, acreditavam que cabia uma exceção passageira naquele que pretendia ser um governo para os pobres.
Por esse conflito o Papa se negava a viajar à Nicarágua, até que Casaroli conseguiu um compromisso nesses termos: o Papa iria à Nicarágua porém somente saudaria a conferência episcopal. Os membros do governo estariam somente como espectadores em uma segunda fila.
Em qualquer outro país, isso teria sido fácil. Porém o aeroporto de Manágua é mais pequeno que uma pista de tênis. De modo que, quando o Papa aterrissou, o encarregado do protocolo (um supercatólico e supersandinista), por erro ou decisão deliberada, facilmente pegou o Papa pelo braço e, em somente dez passos, conduziu-o à fila onde estava o governo nica...
Segundo me explicou Fernando, o bom Ernesto quando viu o Papa se aproximando se perguntou: “e agora, o que faço?”. E respondeu a si mesmo: “Desde pequeno me ensinaram que se cumprimenta o Papa "fincando" os joelhos. Pois então vou “fincar” os joelhos” [1]... Nunca saberemos se Wojtyla pensou também: pois agora vou ter que repreendê-lo porque senão contradigo todo meu ensinamento sobre padres nos governos.
Talvez a triste anedota se gestou assim: pela imprudência de um senhor tão fervorosamente católico quanto sandinista. Há coisas que somente Deus sabe. Porém Deus silencia enquanto nós, que não sabemos, falamos...
Terminarei destacando que Ernesto nunca atuou como aquele bom senhor tão fanático. Uma das coisas que me parecem mais admiráveis do poeta Cardenal é que depois de ter feito tantas coisas (como seu irmão Fernando) porque acreditavam fazer um serviço aos pobres naquele primeiro governo sandinista, foi dos primeiros a se distanciar quando o sandinismo começou a apodrecer com o governo de Ortega, que inclusive tentou lhe bloquear todas suas contas-correntes.
Se falta algo no mundo de hoje é essa capacidade para a autocrítica, que converteu em fundamentalistas todas as militâncias: “é dos nossos e é preciso defendê-lo porque é o bom. E aqueles que o criticam somente podem ser maus”. Aquele princípio tão importante (“pensar globalmente e atuar localmente”) nos converteu em um pensar individualmente (ou grupalmente) e atuar individualmente.
Vejam vocês se não: o que passa com o Brexit, com os independentistas catalães, com as direitas espanholas, com o imaturo presidente Maduro que evaporou a inegável revolução de Hugo Chávez, com a guerra da Síria, com o genocida Netanyahu e senhor Modi na Índia, ou com essa Europa cada vez menos democrática... “La muchacha en bikini en la playa no es Dios”; e meu partido e minha pátria tampouco são Deus. Quanta razão tinha Ernesto!
E que bom será recordar hoje umas velhas palavras do teólogo Ratzinger (em um capítulo de El nuevo pueblo de Dios, intitulado “liberdade de espírito e obediência”): se hoje não se escutam críticas à Igreja desde seu interior, como as que houve em tempos passados, será porque amamos mais à Igreja ou é porque ninguém a ama já tanto para apostar sua própria carreira para melhorá-la?
Nesse sentido podemos concluir dizendo que, além de um grande poeta, Ernesto foi um bom profeta. “Loquito” e tudo, como dizia dona Esmeralda.
[1] “Fincar” em vez de dobrar, tem certo sentido irônico no jargão daquelas terras.
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Indiscrições sobre Ernesto Cardenal. Artigo de José I. González Faus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU