04 Março 2020
O compositor e cantor Carlos Mejía Godoy chora em seu exílio. Longe da Nicarágua, sua terra natal, recebeu a notícia de que seu amigo, o poeta Ernesto Cardenal, faleceu aos 95 anos de idade. A comoção é grande para esse homem que compôs a trilha sonora da Revolução Sandinista e criou a famosa Missa Campesina junto ao poeta e figura chave da Teologia da Libertação. “Mais que minhas lágrimas, meu coração sangra com a morte de Ernesto”, expressou Mejía Godoy.
“Se perde não somente um amigo, mas um sacerdote, um condutor, um piloto dessa nave que é a dignidade de um país que segue sofrendo e lutando”, disse Mejía Godoy ao El País, quem se exilou há mais de um ano para se proteger da repressão do governo de Daniel Ortega e Rosario Murillo. “Ernesto não poderia ir sem saber que sua Nicarágua voltaria a ser livre. Essa teria sido a melhor extrema-unção, os melhores óleos antes de sua partida, dizer-lhe que sua pátria já é livre”.
A reportagem é de Wilfredo Miranda, publicada por El País, 02-03-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Ernesto Cardenal. Foto: Carlos Herrera
A cultura nicaraguense foi desordenada com a morte de Cardenal, um dos principais expoentes da poesia latino-americana. Escritores, artistas e músicos expressaram seu pesar pelo falecimento do padre. Sobretudo, seus amigos como Mejía Godoy, que era próximo a Cardenal desde as andanças revolucionárias contra a dinastia somozista, as cumplicidades artísticas que uniram poesia e música, e sua oposição atual ao governo de Ortega que os perseguiu por igual.
A história de Mejía Godoy e Cardenal leva à Missa Campesina, esse canto litúrgico inspirado nos camponeses e a opressão que sofriam. A peça musical foi vetada pela Igreja Católica, porém sua letra ressoou em toda a América Latina como um lema. Mejía Godoy relata que para escrever as canções dessa missa popular inspirou-se no trabalho que Cardenal realizava com camponeses em Solentiname, o arquipélago encravado no Lago Cocibolca, onde o poeta fundou uma comunidade rural, ao mesmo tempo que uniu evangelho e arte.
“A Missa Campesina não teria sido possível sem Ernesto Cardenal, por muitas razões. Primeiro por sua obra e não somente poética, mas sim esse apostolado em Solentiname onde criou um projeto místico, revolucionário e cultural, com a oficina de pintura primitivista mais importante do mundo. Essa obra de Ernesto Cardenal foi o ponto de partida para escrever uma missa silvestre, uma missa que rompeu com todos os esquemas da missa tradicional”, disse Mejía Godoy.
Luis Enrique Mejía Godoy, também cantor e irmão de Carlos, não somente foi amigo de Cardenal, como também trabalhou junto no Ministério da Cultura durante a revolução sandinista. O cantor criticou que o regime emitisse um comunicado, assinado por Daniel Ortega e Rosario Murillo, decretando três dias de luto nacional pela morte do poeta.
“É cinismo de parte de um Governo que perseguiu Ernesto. Há testemunhos escritos nos meios de comunicação do Governo sobre os ataques contra Ernesto”, disse Luis Enrique Mejía Godoy, em referência aos ataques dirigidos por Murillo contra o poeta, que incluiu uma multa milionária. “Ernesto sempre foi um homem muito coerente, sem papas na língua. Ernesto falava já há muitos anos que na Nicarágua há uma ditadura, antes do 18 de abril de 2018, quando estourou a crise. Era um cisco no olho deste regime repressor”.
O cantor Hernaldo Zúñiga – autor de grandes sucessos como “Procuro Olvidarte” – foi amigo de Cardenal, e em cada um dos seus shows canta o Epigrama “Al perderte yo a ti” composto pelo padre. Zúñiga disse ter sentimentos desencontrados sobre o comunicado governamental.
“Mais além de um assunto meramente tático, de oportunidade política, quis pensar que por trás há um gesto honesto”, disse Zúñiga ao El País. “Isto é, aponto que independentemente dos brutais desencontros que teve Ernesto com o regime do presidente Ortega, o certo é que é tão grande sua marca em nossa história, que isso terminou vencendo as misérias imediatas, o despudor com que foi tratado o padre nos tempos recentes. Queria acreditar que esse reconhecimento a partir das instituições do Estado é honesto”.
Hernaldo Zúñiga, Carlos e Luis Enrique Mejía Godoy são os compositores mais destacados da Nicarágua. Todos escreveram canções contra a ditadura de Somoza, e consolidaram algumas de suas composições como hinos na Ibero-América. Eles concordam que a poesia de Cardenal marcou suas carreiras musicais.
Os irmãos Mejía Godoy concordam que o extenso poema Hora Cero, que destaca as proezas de Augusto Sandino e os guerrilheiros sandinistas, foi impressionante para eles durante sua juventude revolucionária. “Desse poema, no qual descrevia o gesto de Sandino, tirei as palavras para escrever Eran 30 con él. É um dos poetas que mais me influenciou. E não somente como poeta, mas sim com a profundidade de sua palavra. Ernesto foi um poeta e profeta em sua terra”, disse Luis Enrique Mejía Godoy.
De sua parte, Zúñiga, mais jovem que seus pares compositores, disse que Cardenal nos anos 1970 foi inspiração para os jovens. “Foi um ícone inspirador para as almas ainda em processo de formação. Ele nos deixou isso para os garotos de então: primeiro com o testemunho do homem, do religioso... ele fez um coquetel de aparentes contradições, porém ao final tinha uma imensa coerência. A atuação de Cardenal no contexto da Nicarágua foi valiosa e inspiradora. Uma referência poderosíssima para muita gente”.
Os familiares de Cardenal anunciaram que o velório ocorre na segunda-feira, em Manágua. Na terça-feira convidam a sociedade para participar da missa de corpo presente na Catedral Metropolitana. Depois, o corpo será cremado e partirá pela última vez a Solentiname, onde será enterrado junto aos camponeses dessa ilha que tombaram lutando contra Somoza. “A única coisa que lamento é não poder tomar um avião e aterrissar em Solentiname para lhe cantar a nossa última Missa Campesina. Aqui do exílio prestarei tributo ao poeta vivo, até há alguns dias, mais importante da Nicarágua, e uma das referências da lírica e da dignidade”, lamentou Carlos Mejía Godoy.
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A cultura nicaraguense se despede de Cardenal e critica o “cinismo” de Daniel Ortega - Instituto Humanitas Unisinos - IHU