24 Fevereiro 2020
Eu tenho uma foto de Jean Vanier sobre a minha escrivaninha. É doloroso olhar para ela hoje.
O comentário é de Colleen Dulle, publicado por America, 22-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eu escrevi de modo quase completamente acrítico sobre o fundador da L’Arche na revista America várias vezes: chamei-o de “mestre espiritual reverenciado e voz profética” cujas mensagens “sempre merecem ser repetidas” em uma resenha sobre o seu último livro.
Escrevi o obituário de Vanier para a America.
Chorei na frente das câmeras enquanto conversava com Tina Bovermann, da L’Arche USA, sobre a vida de Vanier.
Agora, a L’Arche divulgou um relatório interno detalhando acusações confiáveis de abuso sexual contra Vanier por parte de seis mulheres sem deficiência. O relatório diz que Vanier iniciou o gesto sexual no contexto da direção espiritual e ofereceu “explicações espirituais ou místicas altamente incomuns usadas para justificar esses comportamentos”.
Esse tipo de comportamento ecoa o abuso sexual perpetrado pelo mentor espiritual de Vanier, o Pe. Thomas Philippe. O novo relatório da L’Arche também mostra que Vanier mentiu sobre o quanto sabia sobre as acusações contra o Pe. Philippe.
Bovermann, a porta-voz da L’Arche que eu entrevistei logo após a morte de Vanier, conversou com meu colega Michael J. O’Loughlin sobre as acusações de abuso contra Vanier: “Isso não entra na minha cabeça”, disse ela.
Nem na minha.
Isso não significa que eu não acredite nas mulheres que fizeram essas acusações. Os trechos públicos dos seus testemunhos foram angustiantes, e eu confio na minúcia da investigação externa. O que eu quero dizer é que é difícil para mim conciliar o abuso de Vanier com a minha imagem dele como um santo.
Fui apresentada ao pensamento de Jean Vanier quando eu estava na universidade, estressada com a minha iminente graduação ao “mundo real”. Será que eu ganharia dinheiro suficiente? Subiria rapidamente na minha carreira? As pessoas pensariam bem de mim?
Uma noite, sentei-me com minha amiga Katie, que recentemente havia retornado de um ano em uma comunidade da L’Arche, na Irlanda. Em resposta às minhas ansiedades, ela perguntou se eu já tinha ouvido falar de Jean Vanier. Ela me explicou a sua ideia de que, embora a sociedade nos diga que só encontramos a felicidade subindo a escada da riqueza e do prestígio, a verdadeira felicidade cristã vêm ao descer a escada, optando por abrir mão do poder e do dinheiro a fim de viver em comunidade e em solidariedade com os pobres e marginalizados.
A ideia foi uma revelação. Ruminei-a durante horas nas minhas orações e escritos, e tentei aplicá-la, mesmo que mal, nas minhas decisões. Eu queria profundamente a verdadeira felicidade a que Vanier apontava. Eu li seus livros e ouvi suas entrevistas lenta e meditativamente, e pedi que outros fizessem o mesmo. Depois que ele morreu, coloquei uma foto dele na minha mesa. Como muitos, eu acreditava que ele era um santo.
Parte de mim se pergunta agora se eu fui tola, se eu deveria ter me informado mais antes de valorizar qualquer católico desse modo, depois de assistir a queda precipitada de Theodore McCarrick em 2018, ou mesmo vendo o histórico de São João Paulo II em relação aos abusos sexuais ser seriamente questionado após ouvir a multidão gritar “Santo Subito” em 2005.
Se homens tão respeitados puderam cometer décadas de abuso ou fechar os olhos diante das acusações, por que eu deveria acreditar que Jean Vanier não poderia fazer o mesmo?
Eu penso nas mulheres que tiveram que suportar o trauma de ouvir um homem que as manipulou sexualmente ser chamado de “santo vivo” quando ele estava vivo e como o mundo o elogiava. Embora nenhuma das acusações das mulheres tenha sido pública até esta manhã, talvez, se nós que o louvamos tivéssemos pensado mais criticamente sobre a relação de Vanier com o Pe. Philippe, teríamos sido pelo menos mais hesitantes ao canonizar Vanier no nosso imaginário popular.
Esse tipo de pensamento crítico será vital, enquanto todos nós que admiramos Vanier lutamos para conciliar o bem que ele fez com o abuso que ele cometeu. É difícil, mas possível e necessário, manter unida a verdade do bem e do mal de Vanier ao mesmo tempo. Manter esses fatos em tensão, como escreveram as lideranças da L’Arche International, convida a “lamentar uma certa imagem que podemos ter de Jean” e suscita preocupações importantes sobre quem detém o poder na Igreja, as maneiras pelas quais o poder pode corromper aqueles que o detêm e os vínculos perturbadores entre o abuso espiritual e sexual em tantos casos semelhantes na Igreja.
A L’Arche, em especial, enfrenta um longo caminho pela frente, reimaginando seu passado e protegendo-a contra futuros abusos.
Lamentar e enfrentar o paradoxo perturbador de Jean Vanier me deixou com raiva, mas estou tentando resistir a que isso me leve ao desespero. Eu já não posso mais, em sã consciência, chamar Jean Vanier de santo, nem levantar a hipótese de qualquer conversão que ele possa ter tido antes ou depois da sua morte, mas não posso aceitar a verdade perturbadora sobre ele como uma prova, como alguns entenderam, de que santidade não existe.
Em vez disso, eu acho que isso nos desafia a considerar a capacidade simultânea de nós mesmos e dos outros de uma profunda bondade e maldade, a buscar modelos de santidade longe dos holofotes do mundo e a buscar a nossa própria santidade longe dos holofotes, na ponta de baixo da escada.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o seu X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos, a ser realizado nos dias 14 e 15 de setembro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos
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Como posso conciliar o bem e o mal de Jean Vanier? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU