21 Fevereiro 2020
A experiência do Sínodo para a Amazônia afunda suas raízes no Concílio Vaticano II, no desejo de realizar uma Igreja que escute e discerna juntos. Quem diz isso, é um dos presidentes delegados da assembléia sinodal, o cardeal Pedro Barreto. Como vice-presidente da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM, o arcebispo de Huancayo, Peru, é um dos grandes conhecedores do processo sinodal, do qual mais de 87.000 pessoas participaram oficialmente.
O cardeal peruano disse que o Papa Francisco, "o que ele quer é nos encorajar a sonhar, sonhar com uma humanidade onde os direitos humanos sejam respeitados de maneira irrestrita, onde também sejam respeitados não apenas a vida, mas também o entorno comum, que é nosso lar". Ele insiste na “interconexão entre o Documento Final e a Exortação Querida Amazônia, no âmbito da Laudato Si, e para nós, católicos, da Evangelii Gaudium”, um processo que, para quem o viveu de dentro, leva a ver a exortação como "um grande presente de Deus, precisamos continuar caminhando".
Referindo-se aos povos indígenas, Barreto diz que "os últimos são os protagonistas desse processo sinodal". De fato, tendo como referência as palavras do Papa Francisco, "a Igreja Católica do século XXI, é a Igreja sinodal", que se torna realidade na medida em que "estamos aprendendo a caminhar juntos, a escutar uns aos outros, a nos reconhecer como pessoas, também reconhecer Deus, o Criador do Céu e da Terra, interpretar esses sinais dos tempos que o Vaticano II nos falou e agir de maneira colegiada”. Não podemos esquecer que “tudo está interligado, relacionado, que não podemos nos isolar dos outros, e não podemos isolar um aspecto da natureza de outro”, reforça o vice-presidente da REPAM.
A entrevista é de Luis Miguel Modino.
Qual é a sua impressão sobre Querida Amazônia, a exortação que o Papa Francisco nos deu como mais um passo no processo sinodal?
É a reafirmação desse processo sinodal que o Papa Francisco está promovendo em fidelidade à proposta do Concílio Vaticano II, e que o próprio Vaticano II olhou na Igreja primitiva. Jesus não deixou a Igreja estruturada, deixou pessoas com limitações, mas com a convicção da busca constante da vontade de Deus em resposta a esse processo de escutar as pessoas, desse discernimento que devemos fazer juntos.
Cardeal Pedro Barreto (Foto: Luis Miguel Modino)
Portanto, a Exortação Apostólica Querida Amazônia não pode ser entendida sem o Documento Final, e até eu diria, como o Papa também declara em algum momento da exortação, sem o Instrumentum Laboris que todos nós tivemos durante o Sínodo, que é fruto da consulta prévia aos povos da Amazônia.
Até que ponto é importante para entender a exortação, o convite que o Papa Francisco faz a toda a Igreja, nos números 3 e 4, para ler o Documento Final e insistir em sua aplicação?
Para mim, é muito importante, e devemos agradecer a Deus por essa referência explícita desde o início da exortação, onde o Papa Francisco afirma que ele não acrescentará, não repetirá, o que está no Documento Final, o que ele quer é instar-nos a sonhar, a sonhar com uma humanidade onde os direitos humanos sejam respeitados de maneira irrestrita, onde também não apenas a vida, mas também o ambiente comum, que é o nosso lar. O respeito pelas culturas, que é esse diálogo intercultural, não apenas na Amazônia, mas na humanidade. Esse diálogo também é urgente, o ecológico, que é um sonho que o Papa Francisco também manifesta com muita clareza. Por fim, esse sonho eclesial, baseado no Documento Final, que foi aprovado na íntegra pela Assembléia Sinodal.
Quando o Papa Francisco convocou o Sínodo para a Amazônia, em 15 de outubro de 2017, ele insistiu em seu objetivo, no foco especial nos povos indígenas. Poderíamos dizer que todo o processo, especialmente a ênfase que faz na exortação pós-sinodal sobre os povos indígenas, mostra que seu principal objetivo foi cumprido?
Estou convencido de que sim. Deus inspirou o Papa Francisco nesta situação, eu diria histórica, de convocação de um sínodo para uma região, composta por nove países latino-americanos. Essa ligação surpreendeu muitos, inclusive aqueles que estavam no interior da Rede Eclesial Pan-Amazônica. Claramente, o Papa Francisco continua com a espiritualidade e visão que ele próprio ofereceu, em junho de 2015, com a encíclica Laudato Si, abordando o tema da ecologia, cuidando de nossa casa comum. Também estou muito convencido de que o Papa, por trás desse chamado do Sínodo, estava muito ciente dessa proposta de uma ecologia integral.
A pergunta que ele fez a si mesmo, suponho, e acho que isso é real, é por onde começar. A Amazônia cumpre dois aspectos fundamentais da Laudato Si, não por ser citada no número 38 do Laudato Si, mas por ser um espaço geográfico, é um bioma com grande biodiversidade, que é um dos pulmões do mundo, como é falado, juntamente com a bacia do Rio Congo e os aqüíferos em geral no mundo. Mas a Amazônia é um bioma, é um sistema interativo e vivo que não apenas beneficia quem mora lá, na Amazônia, mas também toda a humanidade.
Foto: Luis Miguel Modino
Por outro lado, a Amazônia possui uma grande diversidade de culturas, existem mais de 390 comunidades nativas, além de cerca de 130 que são povos em isolamento voluntário, que falam mais de 240 línguas, entre eles não podem se entender, suas línguas originárias são diferentes. Há dois aspectos que o Papa Francisco tem consciência e que eles viveram, não apenas como o próprio Papa diz no número 1, que a Amazônia tem toda aquela beleza, esse esplendor da natureza, mas também tem um profundo drama histórico, que sofreram irmãos e irmãs ao longo de séculos, porque vivem, estima-se, há mais de vinte séculos nessa região amazônica.
Portanto, esse esplendor da natureza, esse drama dos povos amazônicos também é um mistério para nós, que vemos no Mistério Pascal de Jesus, com sua Paixão, Morte e Ressurreição. É isso que estamos, no fundo, vivendo e proclamando com alegria, o triunfo da vida sobre a morte, o triunfo da alegria sobre a tristeza.
Na exortação pós-sinodal, o Papa Francisco não faz propostas concretas. Poderíamos dizer que essa é uma expressão clara do novo tipo de Igreja, baseada na sinodalidade, que caminha e vive a comunhão que o Papa Francisco deseja estabelecer como um caminho para o futuro?
Sim, mas há um aspecto que devemos sublinhar. Como conversamos anteriormente, o Papa Francisco disse claramente que deveríamos ler o Documento Final. Esse Documento Final, aprovado pela Assembléia Sinodal, especifica e propõe alguns aspectos que oferecemos ao Santo Padre, mas que o Santo Padre acolheu plenamente. Estou convencido de que é a primeira vez na história dos sínodos que o Papa indica que este Documento Final do Sínodo são propostas de ação que ele assume e que, portanto, ele não as repetirá.
Precisamos ver esse aspecto da interconexão entre o Documento Final e a Exortação Querida Amazônia, no âmbito da Laudato Si, e para nós católicos, da Evangelii Gaudium, a Alegria do Evangelho, esse aspecto é fundamental. Por outro lado, o Papa está sendo o guia de uma Igreja sinodal, uma Igreja que escuta os irmãos a quem devemos servir pelo mandato de Jesus. A exortação, para todos nós que experimentamos esse processo, é um grande presente de Deus, temos que continuar caminhando.
Foto: Luis Miguel Modino
Lembro-me da senhora Yésica Patiachi, indígena da região de Madre de Dios, que em Puerto Maldonado, capital da região, quando o Papa Francisco estava em 19 de janeiro de 2018, transmitiu uma saudação. Bem, ela mesma, na sala sinodal, diante de todos os bispos e do Papa, disse: Irmão Francisco, pois é assim que os povos indígenas chamam o Papa, eles não o chamam de Papa. Irmão Francisco, nós vemos você sozinho, e nos povos originários estamos com você. Os últimos são os protagonistas deste processo sinodal, o que realmente nos entusiasma. E estamos a caminho nesta longa navegação da Igreja peregrina em direção à casa do Pai, como diz o Vaticano II na Lumen Gentium.
Isso poderia nos levar a dizer que a nova forma de Magistério que o Papa Francisco propõe não é algo exclusivo do Papa, mas algo que deve ser criado a partir de toda a Igreja, daquela sinodalidade que ele propõe?
De fato, o Papa Francisco, em alguma outra ocasião, afirmou que a Igreja Católica do século XXI é a Igreja sinodal. Essa afirmação do Papa Francisco nos conscientiza de que ele é o princípio da unidade entre os bispos e os batizados e batizadas que compõem a Igreja, que estamos aprendendo na prática, com luzes e sombras, mas estamos aprendendo a caminhar juntos, a nos escutar mutuamente, a nos reconhecermos como pessoas, também reconhecer Deus, o Criador do Céu e da Terra, interpretar esses sinais dos tempos que o Vaticano II nos falou e agir de maneira colegiada no nível dos bispos, e este episcopado que está unido com o Santo Padre, neste caso com o Papa Francisco, para incentivar os fiéis a viverem neste processo sinodal de escuta, de discernimento, conjunto e colegial.
O Papa Francisco nos convida a continuar avançando, ele mostra que o processo sinodal não está encerrado com a publicação da exortação. Qual deve ser o papel, por um lado da Igreja que caminha na Amazônia, e do outro lado da sociedade, especialmente dos povos indígenas, neste novo momento pós-assembléia sinodal?
Na verdade, devemos afirmar o que ele mesmo diz na Laudato Si, essa experiência de que estamos cada vez mais conscientes de que tudo está interligado, relacionado e que não podemos nos isolar dos outros, e que não podemos isolar um aspecto da natureza do outro, tudo está conectado. Portanto, o que devemos afirmar é que o Papa está nos ensinando a caminhar, uma Igreja que caminha, uma Igreja que não olha para trás. Isto é afirmado claramente por Jesus, aquele que é chamado, mas que olha para trás, não é apto para o Reino dos Céus. Olhar para trás, neste momento, significa parar a Igreja, e a Igreja, com o poder do Espírito Santo, continua avançando.
É como ficar na beira, não na água que corre. A Igreja está em movimento, talvez devagar, mas ela escuta esses gritos daqueles que não querem caminhar juntos, daqueles que querem uma Igreja à sua medida, mas a Igreja avança, e avança com a graça de Deus. Estamos apenas começando e, neste aspecto, Francisco nos exorta a caminhar com ele, na presença de Cristo, anunciando com entusiasmo, firmeza e com um compromisso muito claro que é Jesus Cristo quem nos diz: vá por todo o mundo, vá para a Amazônia, como local de encontro com Ele e encontro com os irmãos. E da Amazônia, procurar uma ecologia integral, que foi a proposta prematura para o Sínodo.
De uma perspectiva universal e social, qual pode ser o papel, visando criar um mundo melhor para todos, que esse processo sinodal pode ter no futuro da humanidade?
Também estou convencido de que a proposta que o Papa João XXIII sonhou, dirigindo-se a toda a humanidade, a homens e mulheres, que estavam cientes da responsabilidade social que tinham da fé, que é promover um diálogo com todos sobre a nossa Casa Comum, como o Papa Francisco diz na Laudato Si, no número 3. Esse diálogo não é apenas um passar o tempo, tem um objetivo, encontrar juntos os caminhos que realmente nos levam a um respeito irrestrito à vida e ao entorno natural.
Cardeal Pedro Barreto (Foto: Luis Miguel Modino)
Paulo VI já falou da seriedade da degradação ambiental causada pela exploração indesejada da natureza. Ele disse que este é um grande problema social que preocupa toda a família. São Paulo VI é citado pelo Papa Francisco na Laudato Si, também São João Paulo II. Creio que existe toda uma corrente doutrinária e ecológica que Francisco recolhe e que, de alguma maneira, Bento XVI, em sua encíclica Caritas in Veritate, antecipa muitos conteúdos que o Papa Francisco reproduz na Laudato Si. Todos nos lembramos de que, em 1º de janeiro de 2010, o Papa Bento XVI, dirigindo-se a toda a humanidade no Dia Mundial da Paz, disse: se você quer paz, cuide da criação de Deus. Esta mensagem é muito atual a partir desta perspectiva da exortação Querida Amazônia.
Qual é a mensagem que Querida Amazônia nos deixa?
A Exortação Apostólica Querida Amazônia é uma implementação prática da opção preferencial pelos pobres, implícita na fé cristológica, como disse Bento XVI em Aparecida, em 13 de maio de 2007. Esse reconhecimento do outro, essa alteridade, esse sair de nós mesmos, esta Igreja em saída, como diz o Papa Francisco, é sair para aqueles que estão longe, que vivem na periferia. Foi isso que o Papa Francisco fez com a exortação. Portanto, acredito que esta opção preferencial pelos pobres é a boa nova de Jesus e da Igreja Católica hoje para o mundo, cuidando da vida, cuidando do ambiente natural, começando por aqueles que são seus favoritos, os pobres, os marginalizados. e descartáveis que vivem na periferia.
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“Querida Amazônia é um chamado a cuidar dos marginalizados e descartáveis que vivem na periferia”. Entrevista com o Cardeal Pedro Barreto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU