12 Fevereiro 2020
O Papa Francisco instituiu no dia 8 de fevereiro, na festa de Santa Bakhita, a Jornada de oração e reflexão contra o tráfico de pessoas. Dentro da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, existe a Comissão Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano, que atualmente é presidida por Dom Evaristo Spengler, bispo do Marajó. Se trata de uma comissão que faz um trabalho em parceria com outras pastorais, promovendo “um trabalho contra algo que as pessoas pensam que quase não existe mais”.
Mesmo com as dificuldades, “alguns passos estão sendo dados, novas pessoas estão aderindo de forma muito mais consciente, em campanhas de conscientização, e também muitos grupos estão fazendo um acompanhamento das vítimas do tráfico humano”, segundo Dom Evaristo. No Marajó, ele tem visibilizado que as vítimas do tráfico de pessoas tem rosto concreto e uma alta incidência, dada a pobreza em que o povo vive. Ao mesmo tempo, segundo o bispo, “esses são fatos que o pessoal conta e são já corriqueiros. Alguns se acostumam, até como se isso fosse uma coisa normal”.
O Papa Francisco sempre teve presente em seu coração o tráfico de pessoas e a migração, sendo Lampedusa, o destino de sua primeira viagem, onde fez um chamado a refletir sobre a “globalização da indiferença”. No processo do Sínodo para a Amazônia, isso esteve presente, sendo um instrumento que pode, especialmente com a exortação pôs sinodal, que deve sair nos próximos dias, “contribuir muito, nessa busca de soluções, de enfrentamento contra o tráfico humano”, segundo o bispo do Marajó.
A entrevista é de Luis Miguel Modino.
O Papa Francisco instituiu um dia à oração e reflexão sobre essa temática, que coincide com a festa de Santa Bakhita, que foi traficada. Como essa jornada está influindo, ou pode influir, na vida da Igreja do Brasil?
O Papa Francisco, como um dos seus gestos que brotam do seu coração, de preocupação com o tráfico humano, ele instituiu essa jornada, no dia de Santa Bakhita, uma santa africana traficada para Europa como escrava. Esse dia nos lembra que toda oração, todo clamor dos pobres que sobe a Deus, não deixa a Deus indiferente. Deus, Ele acolhe, desce e mostrasse presente nessa luta pela liberdade, pela dignidade humana.
Em segundo lugar, esse dia de oração, de reflexão contra o tráfico humano, ajuda a despertar, a sensibilizar mais pessoas para a causa, para terem mais consciência desse drama que, ainda hoje, milhares de pessoas vivem no mundo inteiro. Despertando mais pessoas, também fica mais forte essa rede de enfrentamento. A Igreja católica lançou, no ano 2019, como já falei, as orientações pastorais sobre tráfico humano, e essas orientações ainda são pouco conhecidas, nas nossas comunidades, pelos nossos padres.
E poderíamos, a partir desse dia, começar também a divulgar mais essas orientações pastorais nos nossos grupos de catequese, nas nossas pastorais juvenis, nas nossas pastorais familiares e nas nossas comunidades. Quem sabe, também divulgar mais na imprensa, porque é um texto, um documento, que ajuda muito nessa conscientização, nessa sensibilização, e orientando na prática que é o que se pode fazer. Porque muitas vezes as pessoas não sabem como começar, até tem consciência, mas não sabem o que fazer. Então, essas orientações pastorais, ajudam a entender melhor como o cristão pode se posicionar frente a esse crime, a esse pecado que brada aos céus.
Dom Evaristo (Foto: Luis Miguel Modino)
Qual é o trabalho que a Comissão Pastoral Especial para o Enfrentamento ao Tráfico Humano, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, está desenvolvendo na Igreja do Brasil?
A gente tem que ver essa comissão desde um histórico anterior, desde o ano 2008 que o conselho permanente trouxe esse assunto como um caso grave a ser tratado como conferência. Aí surgiram alguns seminários, encontros a nível nacional e regional. Finalmente surgiu um outro trabalho, um grupo de trabalho de enfrentamento ao tráfico humano da CNBB. Esse grupo de trabalho que preparou a Campanha da Fraternidade de 2014, e envolveu a Igreja do Brasil nesse desafio de enfrentar o tráfico humano. Em 2017, é que esse grupo de trabalho foi transformado pela CNBB numa comissão.
A gente tem trabalhado três dimensões, a dimensão da formação de novas lideranças, a comunicação, para sensibilizar as pessoas da gravidade desa problemática, desse grande crime que é o tráfico humano, e a incidência política, ajudando que as leis possam trazer mais incidência em relação aos criminosos que praticam o tráfico humano. Em 2018, essa comissão realizou um seminário com representantes de todos os regionais da CNBB, e nesse seminário foram preparadas novas lideranças para fazer esse trabalho mobilização em todos os regionais do Brasil.
É um trabalho sempre desafiador e as pessoas tem que trabalhar sempre em parceria. Quem tem sido grandes parceiros em nível do Brasil são a Caritas Brasileira, as comissões de Justiça e Paz, a Pastoral da Mulher Marginalizada, a Rede um Grito pela Vida, a Pastoral do Menor, a Comissão Pastoral da Terra, e é claro que o trabalho tem que ser feito em rede nas regiões. O desafio nesse momento está sendo de motivar as diocese a ter um grupo de enfrentamento ao tráfico humano que possam trabalhar em rede com seus municípios, com aquelas instituições que trabalham no enfrentamento.
Até que ponto o senhor pensa que a Igreja brasileira tem tomado consciência da importância do trabalho de enfrentamento ao tráfico de pessoas a partir do trabalho dessa comissão?
O enfrentamento na sociedade é ainda um trabalho contra algo que as pessoas pensam que quase não existe mais. Mas o tráfico, a nível de Brasil e do mundo movimenta bilhões. No mundo movimenta mais de 30 bilhões de dólares ao ano. Significa que ele só está perdendo para o tráfico de drogas e para o tráfico de armas em questão de rentabilidade. Esse é um trabalho de organização criminosa que gera muito lucro, e que de fato tem três focos, que é o trabalho forçado, a exploração sexual e o tráfico de órgãos.
Você pensar que as pessoas tenham uma atenção imediata a esse chamado é muito difícil, porque alguns pensam ainda que essa realidade invisível não existe, mas ela é poderosa, tem organizações criminosas muito organizadas, que lucram muito com isso. A gente pensa que a Igreja do Brasil deve dar passos bastante grandes em relação a isso. No ano 2019, o Vaticano lançou as orientações pastorais em relação ao tráfico de pessoas. Isso é algo que a comissão, neste ano de 2020, ira investir certamente na divulgação e fazer com que essa preocupação entre na pastoral de cada paróquia, na catequese, na Pastoral Familiar, na Pastoral da Juventude.
Mas é um processo, não é algo que acontece com tanta naturalidade, até porque muitos padres, muitos religiosos, muitos agentes de pastoral, nem tomaram conhecimento dessas orientações pastorais sobre o tráfico humano. Mas com certeza, alguns passos estão sendo dados, novas pessoas estão aderindo de forma muito mais consciente, em campanhas de conscientização, e também muitos grupos estão fazendo um acompanhamento das vítimas do tráfico humano.
O senhor é bispo onde, segundo as estatísticas, essa presença do tráfico humano é alta. Como isso repercute na vida do povo e da Igreja do Marajó?
Antes de vir para o Marajó eu ouvia falar de tráfico humano. Ajudei a passar a temática do tráfico humano quando teve a Campanha da Fraternidade, mas para mim era algo muito distante. Quando eu cheguei aqui ao Marajó, me deparei andando na praça de Portel com a irmã Henriqueta e ela se encontrou com uma senhora chamada Dani, e essa senhora veio lhe abraçar e lhe perguntou, amiga como você está? A irmã Henriqueta me presentou e me falou, esta senhora foi traficada, e foi repatriada da Espanha para o Brasil com a ajuda da Comissão Justiça e Paz do Regional Norte 2.
Visitando uma casa, numa visita pastoral em Breves, uma senhora muito doente me dizia que ficou sem forças para levantar da rede. Eu perguntei, quando começou essa doença, e ela me falava a partir do momento que uma filha de 14 anos tinha sido levada e não teve mais notícias durante seis anos e três meses. Tinha sido também traficada para trabalho escravo.
Recentemente, numa audiência pública em Portel, uma senhora denunciava que cinco mulheres levavam no navio cinco bebês. Os bebês choravam muito e ela se aproximou de uma das mulheres e disse, por que não dá de mamar essa criança, está com fome, e assim aos poucos, foi descobrindo que nenhuma daquelas cinco crianças eram filhos daquelas mulheres que estavam ali. Tinham sido todas trocadas por uma cesta básica.
Esses são fatos que o pessoal conta e são já corriqueiros. Alguns se acostumam, até como se isso fosse uma coisa normal. A gente sabe que o tráfico, ele tem muita força nos lugares de muita vulnerabilidade. Marajó é um lugar vulnerável, pobre, as pessoas não tem muita perspectiva de um trabalho digno, não tem perspectiva de estudo. Então, muito facilmente se deixam aliciar, os traficantes são aliciadores, os traficantes compram com sonhos, eles prometem fortunas, mas na verdade, quando a pessoa é levada para outro país, e estiver sem os documentos na mão, ela se encontra com o terror, e muitas vezes com o terror que não tem mais volta. Então, eu convivo aqui nesta região com muita vulnerabilidade, e creio que, em função disso, propicia essas redes de tráfico humano estarem agindo fortemente nessa região.
A temática da migração e do tráfico humano esteve presente ao longo do processo do Sínodo para a Amazônia. Estamos esperando nos próximos dias a publicação da exortação pôs sinodal. Até que ponto, o senhor pensa que essa exortação pode ajudar no combate ao tráfico de pessoas na região amazônica e no mundo todo?
O tráfico humano e a migração são um problema grave, que já está no coração do Papa desde o início do seu pontificado. Basta lembrar que uma das suas primeiras ações que ele fez, que foi um gesto simbólico para todo o seu pontificado, foi a visita à ilha de Lampedusa, que acolhe migrantes que sobraram de muitos naufrágios. O Papa quis chamar a atenção para o mundo, e falou de uma expressão que se tornou forte, da globalização da indiferença. Ele chamava a atenção para que as pessoas não ficassem anestesiadas diante dessa globalização da indiferença.
Então, esse dois temas também estiveram presentes na caminhada de preparação para o Sínodo. Entraram como uma denúncia forte no documento final dos bispos, que foi entregue ao Papa. E com certeza, o Papa fará essa denúncia forte do tráfico, da exploração sexual, do trabalho escravo, do tráfico de pessoas que ocorre na Amazônia. Isso todo reforça um apelo para a Igreja desta nossa região, para cada vez mais, ela se sensibilizar, se organizar e se unir contra essas redes criminosas, que é um pecado que brada ao céu. Porque Jesus veio trazer a fraternidade, a paz, a dignidade da pessoa humana. E quando nós vemos, ainda hoje, pessoas que são traficadas, isso representa uma clara negação do projeto de Deus para seus filhos neste mundo. O Sínodo para a Amazônia, com certeza, vai colaborar, vai contribuir muito, nessa busca de soluções, de enfrentamento contra o tráfico humano.
O Papa Francisco instituiu um dia à oração e reflexão sobre essa temática, que coincide com a festa de Santa Bakhita, que foi traficada. Como essa jornada está influindo, ou pode influir, na vida da Igreja do Brasil?
O Papa Francisco, como um dos seus gestos que brotam do seu coração, de preocupação com o tráfico humano, ele instituiu essa jornada, no dia de Santa Bakhita, uma santa africana traficada para Europa como escrava. Esse dia nos lembra que toda oração, todo clamor dos pobres que sobe a Deus, não deixa a Deus indiferente. Deus, Ele acolhe, desce e mostrasse presente nessa luta pela liberdade, pela dignidade humana.
Em segundo lugar, esse dia de oração, de reflexão contra o tráfico humano, ajuda a despertar, a sensibilizar mais pessoas para a causa, para terem mais consciência desse drama que, ainda hoje, milhares de pessoas vivem no mundo inteiro. Despertando mais pessoas, também fica mais forte essa rede de enfrentamento. A Igreja católica lançou, no ano 2019, como já falei, as orientações pastorais sobre tráfico humano, e essas orientações ainda são pouco conhecidas, nas nossas comunidades, pelos nossos padres.
E poderíamos, a partir desse dia, começar também a divulgar mais essas orientações pastorais nos nossos grupos de catequese, nas nossas pastorais juvenis, nas nossas pastorais familiares e nas nossas comunidades. Quem sabe, também divulgar mais na imprensa, porque é um texto, um documento, que ajuda muito nessa conscientização, nessa sensibilização, e orientando na prática que é o que se pode fazer. Porque muitas vezes as pessoas não sabem como começar, até tem consciência, mas não sabem o que fazer. Então, essas orientações pastorais, ajudam a entender melhor como o cristão pode se posicionar frente a esse crime, a esse pecado que brada aos céus.
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“O Sínodo para a Amazônia pode contribuir muito, na busca de soluções, de enfrentamento contra o tráfico humano”. Entrevista com Dom Evaristo Spengler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU