05 Fevereiro 2020
“A questão é que enquanto se permitir que o agronegócio aja assim, que enganem as pessoas, aceitarão que o câncer é um infortúnio individual. O câncer não é um infortúnio individual, é uma doença social e, nas áreas onde se fumiga com agentes cancerígenos, está claro o caráter social dessa doença”, afirma o ecologista Antonio Elio Brailovsky.
A entrevista é de Mario Hernandez, publicada por Rebelión, 03-02-2020. A tradução é do Cepat.
O que os incêndios na Austrália significaram? Além do mais, depois houve granizo, tempestades de areia e me ocorre lhe perguntar o que isso tem a ver com a mudança climática.
Esta é uma manifestação da mudança climática. A mudança climática a respeito da qual nós, cientistas, estamos falando há décadas representa um aumento das situações extremas. Onde há vento, haverá mais vento, onde há seca, haverá mais seca, onde há furacões, haverá mais furacões, onde há inundações, haverá mais inundações. Ou seja, espera-se que situações extremas aumentem em todo o mundo, o que exigiria levar em conta políticas responsáveis.
Agora, no caso da Austrália, é muito patético porque o governo daquele país negou a mudança climática porque baseou sua economia em carvão e outros combustíveis fósseis. Sendo assim, estavam muito menos preparados para agir, porque não achavam que fosse um problema. Quando você considera que tem um problema, se prepara, quando nega o problema, é muito pior. Parte do desastre tem a ver com as condições naturais da Austrália, mas outra parte vem da dificuldade de resposta de um governo que não acreditava que isso fosse um problema, até que o superou.
Inclusive mantendo a aposta, porque vi que preveem uma mina de carvão a céu aberto que é três vezes maior que a superfície de Paris.
Sim. Estão baseando sua economia nisso. Não sei como lidarão com os cidadãos. Em algum momento, todos os cidadãos vão dizer basta, vamos parar com isso, porque é irresponsável demais. Espero que os australianos que sofreram essa irresponsabilidade em sua própria carne respondam que algo precisa ser mudado. Além disso, também é uma chamada de atenção para o restante dos países. Estamos em condições de responder a incêndios dessa magnitude em La Pampa, na Patagônia, em Córdoba [Argentina]? Ou continuará acontecendo a mesma coisa de sempre: queima-se e os bombeiros chegam até onde podem e o restante fica assistindo?
Li recentemente que metade das crianças que entram na área de oncologia do Hospital Garrahan são da província de Entre Ríos [Argentina]. Ao mesmo tempo em que o glifosato voltado para o agronegócio não se degrada, portanto, acumula-se, a concentração do herbicida constatada em Entre Ríos, com um epicentro em Urdinarrain, no departamento de Gualeguaychú, está entre as mais altas do mundo. Existe alguma solução?
Sabe-se disso há muito tempo. A questão é que enquanto se permitir que o agronegócio aja assim, que enganem as pessoas, aceitarão que o câncer é um infortúnio individual. O câncer não é um infortúnio individual, é uma doença social e, nas áreas onde se fumiga com agentes cancerígenos, está claro o caráter social dessa doença.
A questão é o que os cidadãos fazem, como reivindicam e é claro que o governo nacional tem uma pressão muito forte para conseguir dólares desesperadamente, de qualquer forma, e vão lhe dizer que fumigando se obtém mais dólares.
De fato, há pesquisas feitas pelo INTA que mostram que a produção de trigo, no campo agroecológico, ou seja, que não utilizou pesticidas, mas técnicas que eram utilizadas antes da existência destes, a produção é a mesma, mas muito mais barata, porque os pesticidas são pagos em dólares. Ou seja, esse modelo de fumigar e adoecer pessoas não apenas é insano, como também é antieconômico.
Ou seja, existe uma alternativa aos agrotóxicos.
Há alternativas. Estão fazendo estudos no INTA, há uma quantidade importante de agroprodutores que fazem agroecologia e há um espaço importante para experimentar, que são as áreas em que os campos ficam ao lado das escolas rurais, onde não se pode fumigar pelas leis locais. Aí é possível praticar a agroecologia e mostrar que, efetivamente, é mais eficiente, mais saudável e mais barata. Mas, é claro, se permitem que isso seja feito, o negócio dos agrotóxicos se afunda.
Houve uma iniciativa na província de Entre Ríos, uma coordenação entre o INTA e as associações da província que falam de uma espécie de fumigação ecológica, em que até os pilotos de aviões para fumigação, que não querem ser associados aos efeitos nocivos do modelo atual de agronegócio participam. Conhece alguma coisa a esse respeito?
Sei que a sociedade está cheia de dissimulações e de enganos, de tal modo que tenho um pouco de desconfiança a respeito de “fumigações ecológicas”. O papel dos pesticidas é tentar cobrir um desequilíbrio ecológico que ocorre quando há monocultura. Ao cultivar uma única coisa, também são criados os insetos que os comem e as plantas que o parasitam ou o deslocam. Quando há uma colheita que leva em conta as diferentes facetas da natureza, não há necessidade de fumigar nada. Então, a fumigação ecológica me soa estranho.
Deseja acrescentar algo a mais.
Sim. Desejo acrescentar que, neste momento, o país está submetido a uma enorme dívida contraída pelo governo anterior e que o desespero do governo em pagar essa dívida externa o leva a ceder à pressão desses negócios espúrios. Sendo assim, é um chamado para que os cidadãos estejam atentos e a colocar limites. Não se deve fazer qualquer coisa para conseguir dólares. Ao menos, não conseguir dólares à custa da saúde dos argentinos.
Entendo que até mesmo na reunião de Davos houve uma agenda verde.
Depende do que é chamado de verde. Todas as grandes empresas estão se pintando de verde, algumas com grandes simulacros. A Shell possui uma divisão de energia eólica com a qual fabrica alguns moinhos eólicos, mas o negócio dela continua sendo o petróleo.
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“Esse modelo de fumigar e adoecer pessoas não apenas é insano, como também antieconômico”. Entrevista com Antonio Elio Brailovsky - Instituto Humanitas Unisinos - IHU