24 Janeiro 2020
"A relação entre o papado e os meios de comunicação está se modelando pela transição ainda em curso do pontificado anterior para o atual".
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por La Croix International, 21-01-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A intervenção pública mais recente do Bispo Emérito de Roma, por meio de um livro sobre o celibato clerical escrito em coautoria com o Cardeal Robert Sarah, põe graves problemas teológicos e eclesiais.
Em primeiro lugar, Bento XVI e o cardeal guineense trazem argumentos incoerentes com a mais antiga tradição e o magistério da Igreja Católica relativos ao sacerdócio.
Em segundo lugar, o livro interfere no processo sinodal em curso e na exortação pós-sinodal, cuja publicação está sendo preparada pelo Papa Francisco.
E, em terceiro lugar, a obra lança uma nova luz sobre a relação entre o “papa emérito” e a oposição organizada ao pontificado de Francisco.
Visto que a voz de Joseph Ratzinger é hoje filtrada através do seu secretário, fica difícil saber quem de fato é o responsável por aquilo que está sendo publicado sob o seu nome.
Mas algo que não podemos negar é o papel-chave que os meios de comunicação desempenham nisso tudo. Na verdade, é simplesmente impossível entender o papado moderno sem olhar de perto a relação cambiante dele com os meios de comunicação de massa.
Atualmente, esta relação tem sido modelada pela transição ainda em curso do pontificado anterior para o atual. É uma transição posta em movimento em 11-02-2013, quando Bento XVI anunciou a sua renúncia. Ela entrou em vigor em 13 de março subsequente, quando Francisco foi eleito seu sucessor.
Mas no nível simbólico esta transição ainda não se completou. Não porque Joseph Ratzinger ainda está vivo, mas devido ao modo como ele e seu secretário escolheram se comportar desde a renúncia.
Os meios de comunicação desempenharam um papel fundamental nisso. Desde que o Vaticano I dotou solenemente o papado com os poderes da primazia e infalibilidade, quase toda mudança de pontificado, há mais de 150 anos, coincide com mudanças importantes na relação entre o papado e os meios de comunicação.
Pesquisas históricas recentes mostram isso. [1]
As transições papais geralmente forçam o Vaticano a atualizar o seu uso institucional dos meios de comunicação. Por exemplo, na morte de Pio XI em 1939 ele criou provisoriamente a Sala de Imprensa da Santa Sé.
Mais de meio século depois – precisamente na noite de 02-04-2005 – este departamento de imprensa, já há tempos estabelecido de forma permanente, enviou a jornalistas credenciados uma mensagem de texto e um e-mail para anunciar a morte de João Paulo II. Isto fez parte daquilo que se transformou numa operação massiva de comunicação com a imprensa.
Pulemos para 28 de fevereiro de 2013, quando Bento XVI oficialmente deixa o papado. O Centro Televisivo Vaticano – CTV coreografou cuidadosamente a sua partida de helicóptero para Castel Gandolfo, em Roma. Um drama eclesial transmitido pela televisão.
Importa notar que a cobertura midiática das transições papais sempre foi marcada por mudanças epocais nas tecnologias de comunicação. Quando Leão XIII sucedeu a Pio IX em 1978, vivíamos uma nova era com os jornais, as revistas e, especialmente, a fotografia. Na época da eleição de Pio XII em 1939, vivíamos a era do rádio.
João XXIII sucedeu a Pio no conclave de 1958 quando a televisão tinha se tornado lugar-comum. E, em 2005, pela primeira vez na história, as pessoas ao redor do mundo acompanharam a morte de um papa (João Paulo II) e a eleição de seu sucessor (Bento XVI) via telefones celulares e internet.
A transição papal iniciada em março de 2013 ocorreu em um ambiente cada vez mais dominado pelas mídias sociais e por mudanças profundas no mundo das comunicações católicas.
É uma nova era na qual a Igreja institucional, incluindo o Vaticano, perde a maior parte do seu controle sobre a forma como a mensagem católica é elaborada e apresentada. E isso inclui a cobertura do papado.
Os meios de comunicação de massa (especialmente em sua forma social eletrônica) criaram uma espécie de monopólio do papado nos círculos noticiosos católicos. O papa e os eventos papais dominam os feeds de notícias sobre a Igreja. As mídias sociais tornaram obrigatório ver alguns destes eventos.
A situação dos últimos sete anos é muito particular. A coabitação no Vaticano do Papa Francisco e um emérito, que está sob o controle de uma comitiva, criou uma saturação dos círculos de notícias papais.
Quando um papa morre, a instituição tenta preencher o vácuo de poder com imagens litúrgicas e simbólicas. Isso porque a instituição apoia-se na presença midiática do papa. Mas desde março de 2013 tem havido o oposto do vácuo. Agora há papas demais.
A suturação midiática do papado é um marcador confessional em uma era grandemente pós-confessional. Os historiadores apontam para o século XIX, período no qual se forjou a relação entre o papado e os meios de comunicação de massa, como uma “segunda era confessional”.
A primeira era confessional veio após a Reforma Protestante, quando se forjou a identidade católica em torno de certos marcadores simbólicos, institucionais e culturais – de modo especial o papado. A eleição, o pontificado e a morte de um papa são apresentados como um drama teológico através das lentes da imprensa.
A relação amistosa entre o papado e os meios de comunicação baseava-se na suposição de que existe um papa – não só de acordo com a teologia e o direito canônico, mas também nas lentes da imprensa. Isso era ditado por imagens, não definido em palavras.
O papado consiste de rituais normativos. A imprensa e o papado interagem adaptando-se e acomodando-se às mudanças tecnológicas e às decisões que tomam um papa particular e sua comitiva.
Mas isso acontece num quadro de estabilidade institucional, onde as palavras e as imagens vêm de um único ponto visível de referência. Eis uma característica central do ministério papal.
Na relação entre o papado e os meios de comunicação há lógicas diferentes em jogo, as quais influem em ambos os lados. Um exemplo é o conclave.
Quando um papa morre, milhares de jornalistas vão a Roma sob a suposição-condição de que um conclave acontecerá dentro do Vaticano no curso de alguns dias – não meses – e que haverá um certo grau de acesso da imprensa ao evento, apesar de seu sigilo.
Mas a forma como o ex-papa e seu secretário entendem o seu papel e a relação com a imprensa, desde março de 2013, interrompeu claramente este delicado equilíbrio.
O emérito tem mantido um perfil público, embora não mais responsável por desempenhar uma função pública.
No entanto, a imprensa muitas vezes trata-o como se fosse equivalesse ao Bispo de Roma, frequentemente dando voz a opiniões não necessariamente aquelas do atual papa. Não está claro se há continuidades ou descontinuidades quanto às visões teológicas pessoais dos dois religiosos.
Na história vaticana recente, o canal mais importante entre os meios de comunicação e o papa tem sido o apartamento papal. Não no sentido do Palácio Apostólico em lugar da Residência Santa Marta, mas como comunidade mais próxima do papa em lugar do tribunal papal barroco. Francisco renunciou tanto uma coisa quanto outra. O paradoxo é que agora há somente um apartamento papal, mas este é o do emérito.
Dom Georg Gänswein, secretário pessoal de Joseph Ratzinger desde 2003, é a figura dominante no apartamento e da comitiva. Bento XVI nomeou o prelado alemão para ser o prefeito da Casa Pontifícia em dezembro de 2012, com a clara intenção de que Gänswein continuasse nesta função sob o seu sucessor, Francisco.
Foi Gänswein quem anunciou, em dezembro passado, que o emérito financiara o lançamento da “Fundação Tagespost para o Jornalismo Católico” na Alemanha. E foi ele também quem usou o mesmo jornal alemão, que empresta o nome à fundação (Die Tagespost), para publicar uma nota detalhada sobre o pastiche relativo ao envolvimento de Bento com o livro do Cardeal Sarah sobre o celibato.
Ao fazer isto, o secretário de Bento XVI, hoje com 63 anos, está gerenciando uma espécie de sala de imprensa paralela da Santa Sé.
O papado funciona – nas palavras do historiador jesuíta Klaus Schatz – como um “fator de integração emocional para o catolicismo”.
Mas, hoje, no seio de um novo sistema midiático e da instituição indisciplinada do emérito, podemos nos perguntar se o papado atualmente gerencia o risco de se tornar um fator de desintegração.
[1] Conferir “Schlott, René: Papsttod und Weltöffentlichkeit seit 1878. Die Medialisierung eines Rituals” (Paderborn [u. a.] 2013) para ilustrar o que afirma. Disponível aqui.
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O emérito e os meios de comunicação: integração e desintegração do catolicismo. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU