27 Novembro 2019
“Cresci como um jovem católico, durante o áspero e duro pós-guerra. Precisava de uma filosofia que não fosse tomista, metafísica, uma saída do racionalismo moderno. Daí nasceu meu interesse por Nietzsche, e depois veio todo o resto”. É desse modo que o filósofo italiano Gianni Vattimo (Turim, 1936) mergulha nas origens de seis décadas de incansável trabalho filosófico.
Uma trajetória que repassamos com ele, pouco antes de receber a Medalha de Ouro do Círculo de Bellas Artes, a maior distinção de uma instituição da qual foi fiel convidado, ao longo dos anos. Adiada a entrega, prevista para julho, pela delicada saúde do pensador, que sofre uma forma leve de Parkinson, que limita muito seus movimentos, foi o presidente do CBA, Juan Miguel Hernández León, que viajou a Turim, onde Vattimo residiu quase toda a sua vida e onde começou a estudar filosofia, em meados dos anos 1950.
A entrevista é de Andres Seoane, publicada por El Cultural, 25-11-2019. A tradução é do Cepat.
O Círculo lhe concede sua medalha por sua “audaciosa tentativa de repensar as possibilidades do pensamento crítico, em um mundo globalizado”. Como desenvolveu seu pensamento filosófico? Qual é a sua origem?
Foi meu professor Luigi Pareyson, um dos primeiros existencialistas italianos, que me levou a Nietzsche e sua crítica à modernidade. Naquele momento, é claro, não pensava na pós-modernidade, mas olhando em perspectiva, acredito que, sim, estava aí essa inspiração. Nietzsche foi meu caminho para se libertar do historicismo de estilo hegeliano que negava a liberdade individual, convencido de que havia uma lei da história diante da qual não era possível se rebelar.
De Nietzsche passou a Heidegger. Em que sentido foi um passo natural?
No início dos anos 1960, publicou sua interpretação de Nietzsche como o último metafísico e anunciador do niilismo. O sentido niilista da história era para mim, como observou Nietzsche, a dissolução progressiva das certezas metafísicas e nisso também a morte de Deus, o Deus metafísico que garante a ordem objetiva do mundo. Tudo isso, claro, para mim não significava o fim da religião, mas era a forma de encontrar o cristianismo como uma mensagem dirigida ao homem e sua liberdade. E Heidegger foi para mim, como até hoje, um intérprete do Ocidente que se inspira no cristianismo como fio condutor.
Com críticas ostensivas a sua interpretação tradicional: “sempre tentei interpretar Heidegger de uma maneira não muito reacionária. Não acredito nessa ‘atitude Selva Negra’, nesse ar de camponês antimoderno que lhe atribuem”, afirmou. Foi com o autor de Cadernos negros que Vattimo teria sua maior afinidade intelectual, qualificando sua descoberta como “a guinada mais importante na minha experiência especulativa”. Contrapondo-se ao estudo paralelo feito por Heidegger sobre a metafísica e a história do Ocidente, Vattimo ofereceu sua grande contribuição filosófica, “o pensamento fraco”, que publicou em 1988, em um livro homônimo que reúne sua análise da pós-modernidade.
“O pensamento fraco é uma espécie de tradução do niilismo da qual ambos falavam: se há um sentido da história, está na consumação progressiva de ‘objetivos’ absolutos em favor do surgimento de relações entre os homens e sua liberdade”, explica Vattimo. “Daí meu interesse, heideggeriano e nietzscheano, na hermenêutica, no sentido de que, como disse Nietzsche, ‘não somos fatos, apenas interpretações’, A verdade se constrói no diálogo social e na compreensão mútua das pessoas e não em dogmas, sejam do tipo que for”.
Se a verdade absoluta não existe e é uma criação subjetiva socialmente compartilhada, a humanidade leva toda a sua história buscando algo impossível como a realidade objetiva?
Aqueles que se preocupam com a verdade objetiva são, muitas vezes, os que querem que um dogma seja imposto a todos. A objetividade absoluta, os dados factuais comprovados pela ciência, costumam estar ligados ao poder dominante. Uma perspectiva que tem mais a ver com o pragmatismo, que estudei com Richard Rorty [outro crítico da metafísica, com quem publicou “O futuro da religião”], do que com o realismo ingênuo daqueles que sempre querem ver os fatos.
Dada a atual tendência do Ocidente, estamos assistindo a um refortalecimento do pensamento forte, fundamentalista, radical e ortodoxo que não admite o diálogo?
É o que parece, e é algo com o qual é preciso ter muito cuidado. Entre outras coisas, o pensamento fraco sempre me pareceu, e cada vez mais, o pensamento dos fracos. Por outro lado, aqueles que estão escandalizados e temem o pensamento fraco são as classes dominantes, aqueles para quem (e aqui estou pensando em Walter Benjamin) a história é boa como é. O que acontece justamente porque possuem o poder e sempre podem se legitimar mostrando “as coisas como são”. Os excluídos do poder não têm o fetiche dos “fatos puros”, nem mesmo quando apelam aos direitos naturais para se rebelar.
Como corresponde a dois elementos simbióticos, do pensamento filosófico de Vattimo nasce o político. “Desde a minha juventude, sempre fui o que, na Itália, de maneira controversa, se chamava ‘cattocomunista’, a mistura de católico e comunistas”, reconhece. A simbiose de dois elementos ‘a priori’ irreconciliáveis está na maneira como o pensador os vive. “Meu cristianismo é um cristianismo anárquico, assim como meu comunismo, distante de dogmas. Por isso, gosto do rótulo. Em última instância, ainda define o que sou, mesmo que eu faça uma política muito menos ativa do que gostaria”, afirma quem foi eurodeputado, entre 1999 e 2004, e, posteriormente, de 2009 a 2014, pelo Partido Democratas de Esquerda, formação herdeira do legendário Partido Comunista Italiano.
Não obstante, apesar de ter abandonado a linha de frente, Vattimo acompanha muito atentamente a evolução política da Itália e do continente. E não gosta do que vê. “Cada vez vejo a situação atual sob uma luz mais pessimista, especialmente na Itália”, confessa. Absolutamente transparente, poucos filósofos se expressam com tanta contundência como ele, que há 15 anos atrás já falava de imigração e integração europeia afirmando: “a ética da Europa está no mínimo”. Quanto ao seu país, além de criticar o ex-ministro Salvini, a quem considera “um protofascista apocalíptico e perigoso, empenhado em destruir o Terceiro Mundo”, acredita que o problema é endêmico, uma vez que “ainda mandam alguns tecnocratas que demonstraram, em demasia, sua incompetência”.
Atribui grande importância à América Latina como região do futuro. Como avalia a onda de acontecimentos que sacodem o continente, nas últimas semanas?
A importância da América Latina está em que lá ainda resistem as ideias concretas, ideologias que desapareceram do Ocidente. Por exemplo, o pontificado de Bergoglio é um fato providencial para mim. Não é por acaso que este Papa venha de lá. Tive um grande reconhecimento no âmbito latino, e sinto esse prêmio do CBA como um reconhecimento de minha proximidade constante com o mundo de língua espanhola, que me parece, reitero, o mundo alternativo à racionalidade capitalista moderna.
Os pobres do mundo atual não falam inglês, mas principalmente espanhol. Quanto ao futuro, observei com simpatia os movimentos políticos latino-americanos, de Hugo Chávez a Evo Morales e Cristina Kirchner. E embora eu saiba que hoje parecem estar enfraquecidos por muitas crises e parece que a cada dia um pedaço do continente cai, continuo pensando que somente a partir desses mundos é possível dar um impulso à renovação, à “revolução”. Signifique isso o que significar.
Para além do próprio papel do homem, outro desafio para o futuro é como prosseguirá a revolução tecnológica, que no século passado parecia uma panaceia libertadora, mas que você criticou como um sistema de controle e dispersão, não de informação e conhecimento. Heidegger tinha razão ao advertir contra o desenraizamento do homem?
A revolução terá que acontecer, cedo ou tarde, sendo assim, é possível que seja com a ajuda da tecnologia? Heidegger, especialmente no final de sua vida, não acreditava nisso, eu sei, mas estou convencido de que a tecnologia só é demoníaca se estiver sujeita a certo controle econômico e político, como, por exemplo, do capitalismo atual. Para Lenin, o comunismo era eletrificação (isto é, tecnologia, desenvolvimento) e sovietes (isto é, poder compartilhado, assembleias com o máximo de democracia possível, com a presença ativa dos povos nas decisões coletivas). Essa visão talvez seja um sonho, sim. Mas, caso contrário, qual é a alternativa?
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“O pontificado de Bergoglio é um fato providencial para mim”. Entrevista com Gianni Vattimo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU