14 Novembro 2019
“Os tempos da justiça e o longo caminho que o poder judiciário deverá percorrer para recuperar a credibilidade parecem estar em desacordo com os tempos da política. E, acima de tudo, com a urgência da maior de todas as encruzilhadas, que é desativar a polarização e impedir uma generalização da violência, que conta hoje com todos os ingredientes para uma combustão descontrolada: crise econômica, milícias armadas, militares na arena política, descrédito da justiça, da política e do sistema democrático e uma região em um estado de verdadeira combustão, ainda mais à luz dos mais recentes acontecimentos na vizinha Bolívia”, escreve Federico Neiburg, professor de Antropologia no Museu Nacional do Rio de Janeiro e membro da Escola de Ciências Sociais, Instituto de Estudos Avançados, Princeton, em artigo publicado por Letras Libres, 12-11-2019. A tradução é do Cepat.
A libertação de Luiz Inácio Lula da Silva na tarde de sábado, 9 de novembro, foi um daqueles momentos em que a história se mostra feita também de pessoas e eventos. Um acontecimento cercado de incertezas jurídicas e políticas que certamente marca uma inflexão profunda na conjuntura brasileira e latino-americana. Depois de 580 dias preso em uma prisão na cidade de Curitiba, com 74 anos de idade, Lula volta ao centro da arena política de seu país, onde permanece por quatro décadas, primeiro como líder das greves no cordão industrial de São Paulo, que deram iniciou ao fim da ditadura militar e, depois, como principal articulador da criação do Partido dos Trabalhadores (PT).
A oposição, inexistente e dispersa após a estrondosa derrota eleitoral de 2018, aposta em voltar a encontrar um centro de gravidade, se reagrupando à esquerda e rearticulando as alianças perdidas do centro. Os seguidores do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, por sua vez, esperam se unir frente a seu inimigo preferido, em um momento em que a crise econômica chega aos bolsos dos brasileiros. Enquanto isso, o próprio presidente e seus filhos parecem cada vez mais envolvidos em escândalos de corrupção, na trama sombria do assassinato da vereadora Marielle Franco e na ação de gangues paramilitares (as “milícias”) nos bairros populares do Rio de Janeiro, onde a família Bolsonaro construiu boa parte de seu capital político.
Na semana anterior à libertação de Lula, o governo apresentou no Congresso Nacional (onde possui uma maioria instável) um projeto de reforma de Estado que busca redesenhar radicalmente o ideal progressista e que, inclusivo, animou os constituintes de 1988. Anunciam “Mais Brasil”, em bases econômicas ultraliberais. No entanto, nem isso e nem as reformas das leis trabalhistas e de aposentadoria, sancionadas nos últimos meses, parecem suficientes para o país recuperar a confiança dos mercados internacionais e atrair a atenção dos grandes capitais, interessadas em outras latitudes e em uma passagem fugaz ligada à especulação. O Brasil não atrai os investimentos prometidos, o anunciado crescimento não mostra sinais de estar próximo. Dois dias antes da libertação de Lula, a maior operação do ministro Paulo Guedes, a venda dos enormes campos de petróleo do “Pré-Sal”, sofreu um estrondoso fracasso: apenas uma empresa chinesa se interessou em uma pequena parte do leilão, vários campos nem sequer tiveram compradores.
A isto se somam as críticas sofridas pelo governo por causa de sua imobilidade diante dos derramamentos de petróleo nas costas do Nordeste e, acima de tudo, sua política de exploração indiscriminada dos recursos naturais da Amazônia, que favoreceu os incêndios e o aumento da violência, incluindo o assassinato sistemático de líderes indígenas por gangues armadas por madeireiros e mineiros, levantando queixas de organizações internacionais e governos, como os da França e da Alemanha. Bolsonaro parece sofrer um processo acelerado de isolamento, produzindo a rejeição até dos governos regionais que ele havia identificado como seus aliados mais próximos, como Piñera no Chile, Macri, na Argentina, e o candidato Luis Lacalle Pou, no Uruguai.
Quando terminou sua segunda presidência, em dezembro de 2010, Lula desfrutou de enorme popularidade (cerca de 80%, segundo todas as pesquisas). Aproveitando uma situação única de expansão econômica, durante oito anos, promoveu o processo de crescimento e mobilidade social mais acentuado da história do Brasil, baseado no aumento do salário mínimo, expansão de crédito, distribuição de renda e inclusão educacional.
Assim, não foi difícil eleger sua sucessora, Dilma Rousseff, que havia sido uma peça central na última parte de seu governo como ministra do Governo. Passados os dois primeiros anos de seu mandato, a crise econômica internacional chegou fortemente ao Brasil e a imperícia de Rousseff na gestão econômica e política acabou transformando o que deveria ser uma pequena turbulência (como havia prometido Lula com uma boa dose de irresponsabilidade) em um violento e explosivo furacão que levou ao estado atual de crise social e institucional. Após um processo de impeachment motivado por acusações de má gestão do orçamento (que o Tribunal de Contas da União mais tarde declararia infundadas), em 31 de agosto de 2016, Dilma foi destituída.
O fim do governo do PT também esteve envolvido em grandes escândalos de corrupção que acabaram afetando grande parte da classe política e grandes empresas (causando um freio abrupto nas obras públicas que favoreceram a crise econômica). Logo após a restauração da democracia, e especialmente durante os mandatos do próprio Lula, foram criadas agências anticorrupção e dispositivos legais que teriam um impacto paradoxal na desestabilização institucional subsequente. Entre elas, a Advocacia Geral da União, a autonomia e a renovação da Polícia Federal e do Ministério Público, a chamada Lei da Ficha Limpa, que impede a candidatura de réus com condenações ainda não definitivas, e Delação Premiada, que diminui as penas de prisioneiros dispostos a denunciar seus cúmplices.
Em março de 2014, entrou em cena a chamada “Operação Lava Jato”, suscitada por uma denúncia imposta pela Polícia Federal do Estado do Paraná em um tribunal de Curitiba pelo juiz Sergio Moro. O nome da operação fazia referência a locais de lavagem de carros nos quais se havia detectado esquemas de lavagem de dinheiro originados de desvios da companhia estatal de petróleo Petrobras, que atingiam a um de seus diretores, ligado ao principal partido aliado do PT, o PMDB. A operação não demorou muito para envolver um grande número de réus e somas astronômicas de dinheiro (mais de 2 bilhões de dólares, segundo alguns cálculos). A ação dos promotores e do juiz Moro, no entanto, se concentrou cada vez mais na tentativa de provar a participação do próprio Lula, com o apoio da grande imprensa, disposta a transformar Moro em um novo herói da república, e o PT e Lula nos principais vilões da vertiginosa decadência nacional.
A Lava Jato e suas ramificações em vários outros estados do país levaram à prisão dezenas de figuras políticas, vários ministros dos governos petistas e líderes de outros partidos, incluindo o governador do Estado do Rio de Janeiro, o presidente da Câmara dos Deputados (ambos notáveis do PMDB) e o ex-governador de Minas Gerais e presidente nacional do PSDB (partido do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso).
Lula foi preso em 7 de abril de 2017, quando era o candidato favorito para vencer as eleições que seriam realizadas em novembro daquele ano. Desde o início, a sentença foi denunciada como frágil e considerada uma amostra de guerra judicial. Com base nas declarações dos delatores, se diz que Lula recebeu um apartamento em troca de facilitar contratos com a Petrobras. Não há documentos que comprovem a transação. Nem Lula e nem seus familiares jamais usaram o apartamento e, de fato, a justiça autorizou, há alguns meses, a venda do mesmo a seu proprietário nominal. Por outro lado, a denúncia resolveu o assunto em tempo recorde, tanto a própria sentença de Moro, que condenou Lula a mais de oito anos de prisão, como o tribunal de segunda instância que aumentou sua condenação para 12 anos.
A tendência política do próprio Moro reforça as suspeitas sobre todo o processo, tornando-o agora objeto de denúncias que podem terminar em seu próprio processamento. Nos últimos meses, importantes meios de comunicação que sempre se opuseram ao PT (Folha de São Paulo, El País, revista Veja e rede Bandeirantes) publicaram diálogos obtidos pelo The Intercept nos quais se evidenciam conspirações ilegais entre os promotores que acusaram Lula e o próprio Moro.
A estratégia do PT e de Lula, após sua prisão, fracassou até agora. Seu candidato Fernando Haddad foi derrotado em uma campanha dramaticamente polarizada e atravessada por uma sucessão de eventos polêmicos que cercaram a brilhante ascensão de Bolsonaro, seu oponente. Sob circunstâncias pouco esclarecidas, em 7 de setembro de 2018, a mais de dois meses das eleições, Bolsonaro foi esfaqueado em um ato na cidade de Juiz de Fora. A partir de então, a disputa ganhou contornos inusitados. O candidato não participou mais de atos públicos, nem de debates, e concentrou sua ação nas redes sociais, levantando suspeitas que ainda estão sendo investigadas na justiça eleitoral sobre o financiamento e o funcionamento de sua campanha, baseada em fake news.
A popularidade do ex-capitão, transformado em vítima e símbolo “antissistema”, deve muito também à ação de uma extensa rede de pastores pentecostais, cuja participação na política foi estimulada nas duas décadas anteriores, paradoxalmente, pelo próprio PT e por Lula - seu primeiro vice-presidente pertencia a um partido publicamente vinculado à Igreja Universal do Reino de Deus, agora transformada em um poderoso ator claramente antipetista.
Finalmente, a crescente polarização acabou reunindo Bolsonaro com os generais que em 1988 o expulsaram do Exército, depois que um tribunal militar o considera culpado de “transgressão grave, indisciplina e deslealdade” e de estar envolvido em uma rebelião em busca de melhores salários, que incluía um atentado a bomba. Uma peça fundamental nessa aproximação com os generais foi a criação da Comissão Nacional da Verdade, promovida por Dilma Rousseff, ela mesma presa e vítima de tortura na ditadura. A revisão do passado autoritário, mesmo com o compromisso de não desdobrar suas atividades no plano jurídico, foi vista pelos militares como uma violação do pacto estabelecido na transição pós-ditatorial, lançando-os de volta ao jogo político que culminaria com sua participação direta na campanha eleitoral e no governo Bolsonaro.
Apesar da tenaz crise econômica e de todos os tipos de nuvens que pairam sobre sua gestão e família, o ex-capitão ainda conta com uma enorme adesão. Suas posições radicais de questionar os fundamentos da ordem democrática parecem ser mais válidas do que nunca, galvanizando o núcleo duro que o cerca, começando com seus filhos (um senador, outro deputado e outro vereador) que declararam recentemente que o país precisa de um novo AI-5, como é conhecido o dispositivo que, em 1968, iniciou o período mais duro da ditadura, estabelecendo, entre outras coisas, o fechamento do Parlamento. Pouco antes, ameaçaram enviar um soldado e um sargento para fechar o Supremo Tribunal Federal.
Lula foi libertado por uma votação apertada (6 a 5), ocorrida nessa mesma Corte. Os juízes determinaram a inconstitucionalidade da prisão antes que se esgotem todas as instâncias previstas no devido processo legal. A disposição atinge mais de 4 mil prisioneiros, incluindo o ex-presidente. Os apoiadores de Bolsonaro chamaram uma manifestação contra a Corte e já estimulam projetos para reformar a Constituição sob a bandeira do combate contra a corrupção (mesmo sabendo que o dispositivo constitucional é uma “cláusula pétrea”, que não pode ser modificada pelo Parlamento). As ações erráticas e contraditórias do STF, nos últimos anos, dão razão a seus críticos de todos os espectros políticos. De fato, esses mesmos juízes mantiveram o assunto arquivado por dois anos, permitindo a prisão de Lula no meio da campanha eleitoral e contribuindo para a deterioração institucional e a falta de credibilidade do poder judiciário, um dos componentes centrais do drama atual.
O Brasil enfrenta várias encruzilhadas. Uma é, sem dúvida, a encruzilhada legal que implica não apenas o futuro do ex-presidente, mas também o da ordem jurídica brasileira, hoje questionada por bolsonaristas e lulistas. O STF deve se pronunciar sobre o pedido de impugnação apresentado por Lula contra o ex-juiz Moro e os promotores pelo tratamento supostamente fraudulento das evidências e pela politização do processo. O ex-presidente ainda enfrenta outros 10 julgamentos (eram 11, mas em um foi declarado absolvido), todos baseados em evidências aparentemente frágeis de benefícios a empresas e no uso indevido de dinheiro para financiar campanhas eleitorais.
Os tempos da justiça e o longo caminho que o poder judiciário deverá percorrer para recuperar a credibilidade parecem estar em desacordo com os tempos da política. E, acima de tudo, com a urgência da maior de todas as encruzilhadas, que é desativar a polarização e impedir uma generalização da violência, que conta hoje com todos os ingredientes para uma combustão descontrolada: crise econômica, milícias armadas, militares na arena política, descrédito da justiça, da política e do sistema democrático e uma região em um estado de verdadeira combustão, ainda mais à luz dos mais recentes acontecimentos na vizinha Bolívia. A libertação de Lula pode ser, nesse sentido, um ingrediente detonador. Sem dúvida, essa é aposta dos setores mais radicais do atual governo, do núcleo duro de seus apoiadores e do antipetismo internalizado em boa parte da sociedade e dos meios de comunicação.
Evitar esse caminho é, antes de tudo, responsabilidade do próprio B, que deverá mostrar toda a sua capacidade política para construir uma frente democrática que inclua muitos de seus antigos inimigos, que vai da esquerda ao centro, para muito além de seu partido e, acima de tudo, de sua própria pessoa. Mas, a responsabilidade é também de todos os setores sociais, incluindo as elites econômicas e os meios de comunicação que desempenharam um papel central no drama brasileiro e que também deverão mostrar moderação e convicção democrática.
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A encruzilhada da democracia no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU