29 Outubro 2019
Foi bonita a festa da Frente Ampla na avenida 18 de julho, ontem à noite em Montevidéu. Mas não foi a vitória desejada já no primeiro turno para anular o poder de uma aliança conservadora temerosa na “segunda volta”, em 24 de novembro.
Daniel Martínez e Graciela Villard, da Frente Ampla. Foto: Jornalistas Livres
Mesmo assim, foi uma vitória e assim respeitada e comemorada nas ruas junto com a de Alberto Fernandez e Cristina Kirchner no primeiro turno das eleições presidenciais na Argentina. As multidões de eleitores da esquerda nas ruas de Montevidéu ontem à noite não autorizam nenhum partido, analista ou meio de comunicação a tirar do povo uruguaio o valor dessa conquista.
Alheios ao temor que palpitava no peito de cada líder da maior e mais duradoura agremiação de esquerda do mundo, os eleitores ovacionaram a dupla Daniel Martínez e Graciela Villard, agitando as bandeiras dos 40 partidos que formam a maior e mais duradoura coalizão de esquerda hoje na América Latina, com a paixão uruguaia de sempre. Mas a vantagem de menos de 11 pontos de Daniel Martínez sobre o segundo colocado, Luís Lacalle Pou, do Partido Nacional, habilitando ambos para o segundo turno, e as alianças das agremiações conservadoras que já começaram a se armar ontem mesmo nos subterrâneos da direita uruguaia, não dão razão para tranquilidade ou confiança para a esquerda na “segunda volta”, em 24 de novembro.
“Temos que trabalhar muito e dialogar muito”, disse Martínez aos Jornalistas Livres, quando se dirigia para o pavilhão da imprensa, nas imediações da avenida 18 de julho, no centro de Montevidéu para fazer seu primeiro pronunciamento. Ao identificar nossa nacionalidade, o candidato nos abraçou e desejou “Feliz aniversário ao querido presidente Lula”. A liberdade de Lula foi muitas vezes cantada nas manifestações de ontem e o refrão “O povo unido jamais será vencido”, ecoou a consciência da unidade latino-americana.
Logo que as primeiras parciais confirmaram a liderança de Daniel Martínez no primeiro turno, milhares e milhares de uruguaios já comemoravam na avenida 18 de julho. Dançaram, cantaram e agitaram as bandeiras com a mesma empolgação da esquerda desde a primeira vitória da Frente Ampla, em 2005, ainda que ela possa não se repetir no segundo turno. Comemoraram, sobretudo, a derrota do plebiscito da Reforma Constitucional proposta pela direita, espécie de pacote anticrime que, na prática, daria aos militares amplos poderes de repressão.
Com o resultado das urnas de domingo, 27, tornando mais árdua a conquista do quarto mandato das esquerdas uruguaias no segundo turno, a grande vitória nas eleições do Uruguai foi a derrota do plebiscito da Reforma Constitucional nas urnas, referente ao projeto de combate à criminalidade “Vivir sem Medo”. Foi, ao menos, a única vitória consolidada. Projeto de autoria do senador Jorge Larrañaga, do Partido Nacional (Branco), o pacote é considerado pela maioria como a preparação do terreno para a militarização do poder. O projeto cria uma espécie de guarda nacional, com amplos poderes para prender sem mandado judicial, fazer buscas e prisões no período noturno, buscar pessoas suspeitas dentro de casa, entre outras medidas.
Nas ruas, a população assinalava a compreensão da importância da derrota desse projeto, reprovado por 54% da população. Durante a comemoração do resultado da Frente, eleitores gritavam “Não à reforma, o medo não é a forma” e “Militares nunca mais”. A repulsa à criação dessa guarda nacional, sobretudo mulheres e jovens, como Lise Moreno, de 16 anos, que votou pela primeira vez e viveu os horrores da ditadura através da memória dos pais. O projeto ganhou corpo com o apelo da direita ao tema da criminalidade, martelado pela mídia conservadora a ponta de criar o ambiente de uma crise de segurança, como se o Uruguai tivesse os índices de violência das grandes cidades do mundo, o que não parece corresponder à realidade e à opinião de turistas e moradores. “Experimentamos um aumento do número de roubos, mas estamos longe de ser uma nação violenta”, assinala Suzana Rodrigues, 57 anos, psicóloga, opinião partilhada por Gustavo Area, recepcionista de um hotel na Cidade Velha, no Centro de Montevidéu.
O resultado indica que a maioria compreende que o combate à criminalidade era apenas um subterfúgio para ir minando por dentro a sociedade democrática instaurada no Uruguai a duras penas após o processo de redemocratização, finda uma ditadura feroz de uma década (1973-1984). “Para nós, fica claro que a questão da segurança é apenas um subterfúgio para os militares começarem a tomar o poder, instaurando o medo e a violência em nome do combate ao crime”, afirma Luís Hector Oliveira, que foi preso, torturado pela Ditadura Militar e teve que deixar o país em 1973 para viver clandestinamente no Brasil até a anistia, em 1984. Luís viajou de ônibus do Rio de Janeiro, onde vive desde então, até o Uruguai para votar e pretende trazer outros companheiros no segundo turno. “Essas eleições são muito importantes para garantir o projeto de aprofundamento da democracia das esquerdas e de desenvolvimento econômico com distribuição de renda e justiça social”.
A derrota do plebiscito é por ora a única segura, mas pode-se dizer que também é relativa. Ela pode retornar através de outros caminhos, como os acordos que Luís Lacalle Pou já está acenando com a direita mais extremista, representada por Guido Manini Rios, do Cabildo Abierto, considerado o Bolsonaro uruguaio, defensor da tortura e de um governo militar, como lembra Heber Pacheo, 54 anos, engenheiro da construção civil, que também veio do Brasil para votar. Embora tenha chegado ao quarto lugar, Manini continua sendo um azarão com peso decisivo na reconfiguração de forças para o segundo turno.
Ontem mesmo, Lacalle afirmou que, na reconfiguração das forças para uma aliança de direita na disputa final, daria o posto de ministro da defesa para o ex-militar. “Estratégico no sentido de reinstaurar a repressão política sob o argumento de melhorar a segurança”, acrescenta Heber, que inclusive se mostra assombrado com margem de reprovação do “pacote anticrime”. “Eu esperava que muito mais da metade da população se manifestasse contra, depois de tudo que vivemos no Uruguai”. O candidato derrotado do Partido Colorada, Ernesto Talvi, também já manifestou apoio à candidatura de Lacalle. A aposta da esquerda para crescer ao menos 5% e contar com as dissidências internas no Colorado de setores que, embora defendam uma economia neoliberal, não compactuam com a participação de Manini pela ameaça que ele representa à democracia. Entre os nove candidatos apenas os quatro primeiros colocados apresentam uma soma significativa de votos. Todos os demais somam juntos 7% das urnas.
Até o dia 24 de novembro, data da “segunda volta”, a coalizão de esquerda terá que se superar muito para chegar ao quarto mandato e adotar uma estratégia de “conversação e diálogo” com todas as agremiações, na tentativa de romper o muro da direita, como afirmou o próprio Martínez, ao fazer seu primeiro pronunciamento oficial, às 21 horas, no Comando da Campanha da Frente, no Hotel Crystal Tower. Martínez alcançou 39,17% dos votos, contra 28,59% de Lacalle, do Partido Nacional, que somados aos 12,32% de Ernesto Talvi, do Colorado, e 10,88% do ultraconservador Guido Manini, do Cabildo Abierto, apontam para uma nova disputa das mais árduas e temerosas da história. Os votos, depositado em papel nas urnas, são apurados de forma muito rigorosa pela Corte Eleitoral, sem acesso aos políticos ou membro dos partidos, e comunicados oficialmente por etapas a cada parcial.
Longe de ser confortável, o resultado confirma que o Uruguai, apesar dos enormes avanços econômicos e sociais promovidos pelos três governos da esquerda, não ficou imune à onda fascista e neoliberal na América Latina. Mas se as lideranças estavam apreensivas, o povo uruguaio mostrou confiança na capacidade histórica da Frente Ampla de se agigantar para enfrentar com dignidade a maior aglomeração de direita desde sua primeira vitória em 2004. Martínez e Graciela Villard, a líder feminista e popular, candidata a vice, receberam no palco em frente a intendência de Montevidéu, toda a coragem e amor cívico para fazer esse percurso.
Tão importante quanto as eleições presidenciais, foram as eleições parlamentres realizadas no dia de ontem para a eleição de 30 senadores e 99 deputados federais. Hoje a frente de esquerda tem maioria parlamentar, mas dentro de uma relação de coalizão muito relativa, sempre exposta à renegociação. O quadro de distribuição de parlamentares por partido mostra que não haverá maioria parlamentar no próximo governo: não importa quem vença, se a coalizão de direita ou de esquerda, um e outro lado deverá trabalhar por apoios para a aprovação das leis. A Frente Ampla fez 13 senadores, enquanto o Partido Nacional fez 10, o Colorado 4 e o Cabildo Abierto 3, cargo conquistado pela primeira vez por esse partido novo. O Partido Ecologista Radical Intransigente fez pela primeira vez seu primeiro deputado.
Entre os mais célebres senadores eleitos estão o ex-presidente José Pepe Mujica, que volta ao Parlamento aos 84 anos pelo Movimento de Participação Popular (MPP), com mais de 281.542 dos 99,96% dos votos apurados. Sua mulher, a Lucía Topolansky, vice-presidente do governo de Tabaré Vásques, também se elegeu. O MPP é uma das 40 sublegendas que integram a Frente Ampla, assim como o Progressitas, que fizeram 87.132 votos com a eleição de Mario Bergara para o senado, seguido pela corrente Artiguisa, que elegeu Álvaro García e Cristina Lustemberg, com 35.881 votos.
Esses grandes líderes, herdeiros dos bravos Tupamaros, que enfrentaram a fúria da ditadura paraguaia, vão mobilizar agora todo o seu carisma para mostrar ao povo uruguaio a armadilha da união entre neoliberais e fascistas e a ameaça concreta que ela representa para um país que reduziu a pobreza de 38% para 8%, elevou o salário mínimo para R$ 1.600,00, investiu na tecnologia, na educação, na erradicação do analfabetismo e no desenvolvimento econômico que não tem por objetivo a concentração de renda entre os mais riscos, mas a diminuição das desigualdades sociais. Para isso, eles contam com os exemplos da América Latina, não só da tragédia do governo bolsonarista no Brasil, mas com a recente vitória peronista na Argentina, a confirmação de Evo Morales no primeiro turno na Bolívia e da reprovação da política neoliberal no Chile, que se mostrou tão violenta e assassina quanto as forças militares uruguaias.
O povo uruguaio é considerado dos mais politizados do mundo e mais conscientes da importância da união da América Latina para a soberania dos povos, como aponta Javier Miranda, advogado, presidente nacional da Frente Ampla. Por isso, a vitória de ontem foi comemorada pelos eleitores da geração que mudou a história de um país acossado pelo imperialismo, pela ditadura e pelas elites conservadoras com gosto redobrado, ainda que o segundo tempo desse jogo possa reservar grandes dissabores, como acentuo Daniel de Los Santos, 49 anos. Cada passo dado pela luta precisa ser comemorado para que a vitória sempre esteja no horizonte do lutador, para lembrar a lição do companheiro Guevara.
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Uruguai: Vitória da esquerda para um segundo turno temeroso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU