01 Outubro 2019
"Como a maioria dos demais bispos guatemaltecas, Ramazzini organizou as paróquias para que coletassem informações pontuais sobre a violência e reconciliassem perpetradores e vítimas, dentro do Projeto de Recuperação e Memória Histórica iniciado pelo arcebispo da Cidade da Guatemala, Dom Juan José Gerardi, assassinado dois dias depois que apresentou publicamente os resultados na catedral nacional. Como cardeal, com “acesso, mais rapidamente (...) com uma maior peso, aos departamentos Vaticanos”, disse Ramazzini, ele poderá promover a causa que visa canonizar Gerardi".
A reportagem é de Mary Jo McConahay, autor de The Tango War, The Struggle for the Hearts, Minds and Riches of Latin America during World War II (St. Martin’s Press), publicada por National Catholic Reporter, 30-09-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
“Posso me juntar a você?”
As primeiras palavras do futuro cardeal, o bispo guatemalteca Álvaro Ramazzini, ao futuro papa, o bispo argentino Jorge Mario Bergolio, foram ditas em uma sala de jantar durante um sínodo dos bispos ocorrido na década de 1990 em Buenos Aires, onde Bergoglio sentava-se sozinho. Com este diálogo, os dois passaram a se conhecer. Neste 1º de setembro, o Papa Francisco nomeia cardeal Ramazzini, com o que envia uma forte mensagem ao restante das Américas. Por mais de 30 anos, Ramazzini tem se colocado ao lado dos pobres, enfrentando ameaças de morte como mediador de paz, defensor de justiça social e do meio ambiente e um parceiro nas causas indígenas.
Em entrevista na sede diocesana em Huehuetenango, poucos dias antes de Francisco nomear os treze novos cardeais, que incluiu Ramazzini, de 72 anos, o prelado guatemalteca mostrou que compartilhava a pauta do papa há décadas.
No alto entre as prioridades para ambos os religiosos está a migração, que Ramazzini considera “um direito inalienável de viver”, mesmo se, para isso, for preciso levantar acampamento e se mudar. Em 2012, Ramazzini foi nomeado bispo de uma Huehuetenango gravemente empobrecida; Huehuetenango é um dos 22 departamentos (subdivisões administrativas) da Guatemala, maior país da América Central. Huehuetenango é a origem de mais migrantes do que qualquer outro departamento guetemalteca. Os próprios irmãos e a mãe do novo cardeal emigraram para os Estados Unidos quando as circunstâncias levaram a família à pobreza décadas atrás.
Sob o acordo de “terceiro país seguro” assinado em julho por Kevin McAleenan (secretário em exercício do Departamento de Segurança Doméstica) e Enrique Degenhart (ministro do Interior guatemalteco), imigrantes hondurenhos e salvadorenhos sem autorização devem ser deportados dos EUA para buscar “asilo” na Guatemala. O acordo enfrenta desafios jurídicos, mas, enquanto isso, levanta-se o conflito por empregos escassos, até mesmo a questão dos campos de concentração, o que Ramazzini diz que é “um dos meus medos”.
“Nós já os temos”, disse ele, referindo-se às centenas de africanos e haitianos detidos em Tapachula, na fronteira com a Guatemala, pessoas proibidas de sair. Em agosto, migrantes em Tapachula publicaram uma nota veiculada pelo jornal La Jornada, da Cidade do México, que dizia que “estamos sofrendo uma situação humanitária insuportável (...) Estamos desesperados, temos medo, não temos esperança”. Um vídeo do Voice of America mostra negros lutando lado a lado com a polícia mexicana com equipamentos antimotim.
A ideia da Guatemala como um “terceiro país seguro” parece absurda e perigosa; desde o dia 7 de setembro cerca de um terço do país está sob estado de sítio, supostamente para controlar traficantes de drogas. “O governo sequer consegue resolver os nossos problemas, como conseguirá ajudar as pessoas que vêm de fora?”, perguntou-se Ramazzini. “Como iremos empregar estas pessoas? Quem irá alimentá-las? Quem vai lhes dar atendimento médico?”
A xenofobia é um outro risco. Um influxo de deportados dos EUA é o “momento para ver que o tipo de cristãos somos”, afirmou o religioso, “para ajudar essas pessoas”.
Há tempo preocupado com a destruição da “riqueza da criação que Deus nos deu”, Ramazzini disse que, em outubro, ele e outros bispos da América Central e do México convocarão um sínodo mesoamericano nas mesmas diretrizes do sínodo amazônico que está por vir. O sínodo mesoamericano discutirá a emergência climática, a poluição e a destruição causada pelo homem às florestas e outros habitats naturais da região, lar de povos indígenas e que está a desaparecer, assim como a Amazônia. Um encontro preliminar da rede mesoamericana deve acontecer no México, mas o problema ambiental é amplamente compartilhado.
“Olhem aqui”, disse o cardeal, gesticulando para fora de seu gabinete e mostrando a capital departamental. “Basta sair e veremos uma fumaça por todos os lados”. Muitos em Huehuetenango, segundo o prelado, não têm água potável, porque está contaminada.
Quando o governo guatemalteca abriu as terras da floresta tropical do Departamento de Petén na década de 1960, o adolescente Ramazzini acompanhou o pai para olhar o local e se impressionou pela a beleza do lugar, com as coisas vivas que continha. Dois anos atrás, quando voltou a Sayaxché, perto do rio La Pasion, disse: “Que tristeza! Toda aquela enorme selva é agora uma terra para pastagem do gado”. Partes da floresta forma tomadas por empreendedores ricos do mercado de bife e hambúrguer. “Como guatemaltecas têm dinheiro para comprar carne de gado?”, se perguntou.
Estreitamente ligado ao meio ambiente está o bem-estar do povo indígena – 23 grupos linguísticos só na Guatemala –, cuja cultura, cosmovisão antiga e existência continuada podem depender de uma reversão desta destruição. Frequentemente os “abuelos” (anciãos, pessoas sábias pertencentes às comunidades indianas mayas) dizem: “Nós cuidados da terra e a terra cuida de nós”. Essa visão é familiar a Ramazzini.
“Na teologia de Laudato Si’ há um grande avanço”, disse o novo cardeal, referindo-se à encíclica de Francisco publicada em 2015 subintitulada “Sobre o Cuidado da Casa Comum”. O seu texto diz que “nós não somos os donos da criação”. Não somos “nem mesmo os administradores da criação, mas os seus “cuidadores”.
Ramazzini enfatiza a “interconexão que existe entre tudo que é criação, tudo”. Quando nos esquecemos disso, segundo ele, rompemos as conexões, violando a harmonia do universo. O tem da crise ecológica é, disse, “o tema da desarmonia (...) no sentido mais pleno da palavra”.
O religioso traz uma descrição da “teologia indígena”, que o Sínodo dos Bispos para a Amazônia respeita, mas que os críticos menosprezam como panteísta, pagã.
“Por ela nós fazemos referência à experiência dos cristãos que têm a capacidade de discernir a presença da revelação de Deus nas expressões culturais dos povos originários”, em que há um “componente profundamente religioso”. Estas experiências religiosas contêm “elementos e um conteúdo que, de forma alguma, contradizem aquilo que nós, como cristãos, professamos. Pelo contrário, muitos desses elementos enriquecem a nossa maneira de entender e viver a experiência cristã”.
Essa oposição “virulenta” de alguns ao sínodo amazônico, acrescentou Ramazzini, é “o fruto da ignorância, o fruto de não compartilhar a vida destas pessoas”.
Ramazzini disse compartilhar a vida dessas pessoas. Em 1988, já como bispo recém-nomeado para o departamento rural de San Marcos, próximo de Huehuetenango, ele começou um projeto de três anos em que percorreu a pé uma centena de comunidades “para comer o que as pessoas comiam, dormir onde as pessoas dormiam, para me colocar em suas vidas. Porque eu dizia: ‘Se eu, como bispo, não conhecer a realidade da vida do povo a que sirvo, que tipo de serviço irei fazer?’”
Ao escalar a um vilarejo sobre um vulcão, o prelado interpelou um homem que descia e lhe perguntou o que carregava sob um pano lançado às costas. “‘A minha filha, ela está doente. Estou levando ela para o centro de saúde’, disse o homem. Ele precisava andar outras duas horas e meia”. Ramazzini pediu para ver a menina. Ela estava morta. O pai sabia, mas alguém precisava registrar a morte da criança de 10 meses, segundo ele, e a sua esposa e outros filhos estavam todos sofrendo da mesma enfermidade, o sarampo. “Uma criança morrer de sarampo em pleno século XX, incrível”, disse Ramazzini. Quando contou esta história, o rosto do religioso mostrou a percepção de choque que deve ter tido quando viu a criança morta. Não teve condições de falar – a localidade não tinha remédios, nem telefone. Mais tarde, soube-se que a esposa e dos outros filhos morreram.
Ramazzini disse que o encontro na montanha foi uma das várias experiências que despertaram a sua consciência social. Entre elas também esteve a pobreza de sua própria família, “que forja o coração da gente, porque não nos sentimos superiores aos outros”. Ele também credita esta sua percepção à formação tida com um professor de seminário, Edmundo Cormier, quem “inculcou em nós uma sensibilidade para com os problemas sociais”, mas que ouviu que precisava deixar o país “por causa de pessoas que não queriam ouvir nada de uma Igreja comprometida com as questões sociais”. Também credita essa sua visão à guerra civil da Guatemala, em que aproximadamente 200 mil morreram ou desapareceram, a maioria civis. Ramazzini viu de perto as condições dos combatentes de ambos os lados quando mediou uma troca de prisioneiros e quando testemunhou as condições de civis aterrorizados quando levou missas e os sacramentos a zonas em guerra.
Como a maioria dos demais bispos guatemaltecas, Ramazzini organizou as paróquias para que coletassem informações pontuais sobre a violência e reconciliassem perpetradores e vítimas, dentro do Projeto de Recuperação e Memória Histórica iniciado pelo arcebispo da Cidade da Guatemala, Dom Juan José Gerardi, assassinado dois dias depois que apresentou publicamente os resultados na catedral nacional. Como cardeal, com “acesso, mais rapidamente (...) com uma maior peso, aos departamentos Vaticanos”, disse Ramazzini, ele poderá promover a causa que visa canonizar Gerardi.
Ramazzini disse ainda achar que o fato de tornar-se cardeal lhe dá “uma certa proteção” contra as ameaças de morte. “Mas, claro, nunca se sabe. Afinal, mataram o Cardeal Posadas no México como se não fosse nada”, acrescentou. Em 1993, o cardeal de Guadalajara Juan Jesús Posadas Ocampo foi morto a tiros, provavelmente por traficantes de drogas.
“Deus tem planos para a vida de cada um”, concluiu Ramazzini. “Se eu tento fazer o que Deus pede de mim, então independente do que acontece, acontece. Temos que passar das sombras dessa vida para adentrar a vida eterna, de um jeito ou de outro. Então, pelo menos eu posso entrar dizendo: Senhor, eu tentei fazer as coisas do jeito que me pediste. Ponto final”.
Mapa de Huehuetenango. | Reprodução: Google Maps
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Guatemala. Cardeal-designado defendeu indígenas e migrantes por décadas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU