05 Setembro 2019
Às vésperas da viagem do Papa Francisco a Moçambique, Madagascar e Ilhas Maurício, o fundador da Comunidade de Santo Egídio está preocupado com o “rápido desenvolvimento das seitas neoprotestantes” no continente.
A entrevista é de Cécile Chambraud, publicada por Le Monde, 03-09-2019. A tradução é de André Langer.
O Papa Francisco viaja para Moçambique, Madagascar e Ilhas Maurício entre os dias 04 e 10 de setembro. Esta será sua segunda viagem à África Subsaariana desde a sua eleição, em 13 de março de 2013.
Fundada em 1968 por Andrea Riccardi e um grupo de leigos católicos italianos, a Comunidade de Santo Egídio tem uma forte presença em Moçambique. Ela desempenhou um papel ativo de mediação no acordo de paz alcançado em 4 de outubro de 1992, na sede romana da organização católica, entre o governo de Moçambique, nas mãos da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), e a guerrilha da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), pondo fim a dezessete anos de guerra civil. Um dos negociadores na época, o padre Matteo Zuppi, hoje arcebispo de Bolonha, esteve presente na assinatura do novo acordo assinado em 6 de agosto entre o presidente moçambicano, Filipe Nyusi, e o chefe da Renamo, Ossufo Momade.
Mesmo tendo cedido o lugar de coordenador da Comunidade de Santo Egídio, Andrea Riccardi continua sendo um dos melhores conhecedores da dinâmica que atravessa a Igreja Católica nos diferentes continentes e a diplomacia da Santa Sé. Ele explica ao mundo africano as apostas desta visita do Papa Francisco ao sul do continente, de frente para o Oceano Índico.
Desde a sua mediação nos acordos de paz de 1992, como a Comunidade de Santo Egídio permanece ativa em Moçambique?
Na época, a Comunidade de Santo Egídio tentou cooperar, mas logo percebeu que, sem paz, (a cooperação) estava perdida. Começamos a colocar as duas partes em contato. As negociações duraram dois anos e meio em Roma, na sede da nossa comunidade. O país havia perdido um milhão de cidadãos na guerra civil. Era um dos mais pobres do mundo e estava destruído. Houve um processo complicado, que foi do unipartidarismo e do socialismo ao capitalismo e um início de democracia. O país passou por uma mudança muito rápida. Há vinte e cinco anos, era possível encontrar apenas peixes secos no mercado de Maputo. Hoje é uma cidade moderna. Em uma geração, passamos da Idade Média à modernidade tecnológica.
Nós nos comprometemos com o grande problema da Aids, que se espalhou com a guerra. Santo Egídio concentrou-se em cuidar dos doentes, quando muitos outros se concentraram na promoção de preservativos, acreditando que era muito caro para os africanos e quase impossível obter tratamento. Trabalhamos muito contra esses preconceitos e, no âmbito do programa Dream, nós temos agora treze clínicas, que atenderam 200 mil pacientes desde 2002. O Papa Francisco também visitará um desses centros, o hospital de Zimpeto, na sexta-feira, 6 de setembro. Todos os centros Dream são administrados por mulheres, que desempenham um papel vital.
Esta é a segunda viagem do Papa Francisco à África Subsaariana após suas viagens ao Quênia, Uganda e República Centro-Africana. Qual é a sua ligação com este continente?
O Papa está convencido da importância da África. Ele nunca a tinha visitado antes de ser eleito papa. Ele a descobriu pessoalmente durante a sua primeira viagem em 2015. A visita a Bangui e a reunião com clérigos muçulmanos, em meio a confrontos sangrentos na África Central, foram particularmente importantes. O atual vice-secretário de Estado do Vaticano, o arcebispo Edgar Pena Parra, um dos colaboradores mais próximos do Papa, era anteriormente núncio em Moçambique. Esta nomeação é significativa, é um sinal de proximidade do papa.
Com Moçambique, além disso, Francisco tem laços pessoais, porque sua ex-diocese de Buenos Aires é irmã da diocese de Xai-Xai. Ele tem boas relações com o presidente moçambicano, Filipe Nyusi, a quem recebeu no Vaticano. A presidência moçambicana desempenhou um papel importante nesta visita porque deseja fortalecer a paz após o acordo assinado em 6 de agosto – sabemos que o processo passa, às vezes, por crises. Francisco certamente expressará uma mensagem de paz durante o seu discurso dirigido à presidência.
Não é provável que sua visita seja explorada politicamente, tendo presente que haverá eleições gerais em 15 de outubro?
É um risco. Alguns círculos católicos temem uma instrumentalização. Mas as viagens do papa não são gerenciadas em função do calendário eleitoral. Uma visita a Madagascar estava prevista há um bom tempo. A etapa de Moçambique, que era uma ideia antiga, foi inserida. De qualquer forma, haverá a presença da Renamo e de seu líder.
Quais são os desafios da Igreja Católica hoje em Moçambique e Madagascar?
As Igrejas africanas enfrentam grandes problemas. Por um lado, há o imenso desafio da pobreza. Por outro, há uma mudança muito importante no cenário religioso, com o rápido desenvolvimento de seitas neoprotestantes que frequentemente aliam milagrismo e teologia da prosperidade. São negócios entre o religioso e o comercial. Algumas são importantes, como a Igreja Universal do Reino de Deus, originária do Brasil, cuja sede fica no centro de Maputo, em um antigo cinema. Existem também pequenas Igrejas, algumas das quais abusam da credulidade de seus fiéis.
A afirmação muito forte das comunidades neoevangélicas acompanha a retirada da Igreja Católica, embora em Madagascar o catolicismo tenha um papel importante. Elas começam a ter uma capacidade de influenciar. Outro dia, eu estava no aeroporto de Johanesburgo e encontrei um ex-ministro do Malauí, que deixou a política. Perguntei-lhe o que está fazendo, pensando que ele tinha entrado no mundo dos negócios. Ele me disse que fundou uma congregação neopentecostal e que seu filho abriu outra. Finalmente, no norte de Moçambique, existem ações radicais inspiradas no fundamentalismo islâmico.
Como a Igreja Católica pode lidar com essas mudanças?
A Igreja Católica deve se adaptar a um mundo que mudou e no qual corre o risco de se fechar sobre si mesma. Ela não tirou todas as consequências. Ela se considera a filha legítima do cristianismo, mas isso não é suficiente. É preciso se perguntar por que os outros são tão bem-sucedidos. O Papa conhece bem o problema do neopentecostalismo, que ele encontrou na América Latina. Mas, na África, as Igrejas neopentecostais têm menos raízes do que na América. O Papa entra nesse quadro com seu discurso de paz, do Evangelho e de luta contra a pobreza.
Qual é hoje o lugar do catolicismo africano na Igreja universal?
Podemos falar de um catolicismo africano ou de muitos? Hoje, na maioria das vezes, é mais tradicional, com uma visão dos bispos que não é exatamente a do Papa Francisco, mas que é parcialmente modelada em uma chefia tradicional. Sobre o casamento, embora não se possa dizer que a moral católica seja a lei comum na África, os bispos também são bastante tradicionais.
Mas há também outras tendências. Antes, eram as congregações missionárias que eram os canais para a presença da Igreja Católica na África. Agora, elas não existem mais em Moçambique e Madagascar. Hoje, são os bispos que desempenham esse papel.
Francisco fez muitas nomeações no continente, ele criou 10 cardeais. O objetivo do Papa é a evangelização. Sua viagem à África deve ser lida através de um duplo critério: Francisco é o defensor dos pobres, eles são as “estrelas” de sua política; e ele quer tirar a Igreja Católica de seu fechamento, de sua paróquia.
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“O Papa Francisco está convencido da importância da África”. Entrevista com Andrea Riccardi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU