16 Agosto 2019
No debate em torno da penitência do qual participei respondendo a L. Orsy e a A. Marchetto, surgiu a questão da “compreensão sistemática” do sacramento. A esse propósito, proponho uma parte da Introdução do livro “Fare penitenza” [Fazer penitência, em tradução livre] (Ed. Cidadela, 2019), escrito junto com Daniela Conti, no qual se foca o ponto sistemático e pastoral da posição do sacramento da confissão em relação à iniciação cristã. Trata-se de um ponto decisivo para compreendê-lo e para celebrá-lo corretamente.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 15-08-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Reprodução da capa do livro Fare penitenza
“É obra de Cristo libertar os homens da corrupção do pecado, mas cabe à à solicitude e aos esforços dos apóstolos impedi-los de recair no estado de miséria anterior.”
São João Crisóstomo
Uma das tarefas mais urgentes da Igreja Católica, no âmbito da renovação estabelecida pelo Concílio Vaticano II, consiste em recuperar uma experiência equilibrada do “fazer penitência”. Essa exigência, porém, se manifesta de um modo nada evidente. Tal dificuldade, ou seja, a falta de evidência dessa reivindicação, depende de um fenômeno bastante complexo e muito delicado a ser tratado: ou seja, da gradual absorção de toda a experiência penitencial por parte do “sacramento da penitência”.
O que aconteceu, em uma história que se estende por pelo menos oito séculos, pode ser brevemente descrito deste modo: a estruturação eclesial, cada vez mais definida, de um “sacramento do perdão”, pelo menos a partir do Quarto Concílio de Latrão (1215), estendeu progressivamente a sua autoridade, até abranger toda a área do “fazer penitência” eclesial, para chegar a identificar, pelo menos nos últimos três séculos, a “penitência da Igreja” com a “absolvição sacramental”. A tal ponto que hoje a palavra “penitência” corre o risco de se identificar, sic et simpliciter, com o sacramento. E mais, com um sacramento que não tem mais a penitência!
Tal questão, no entanto, pôde emergir em toda a sua urgência apenas como “efeito indireto” de uma grande redescoberta, que não diz respeito diretamente à penitência, mas sim ao âmbito mais vasto da “iniciação cristã”. Com isso, queremos dizer que a recuperação da iniciação cristã – ou seja, da sequência batismo-crisma-eucaristia na sua unidade – como fundamental sacramento da reconciliação, levou a reflexão eclesial a se interrogar de modo novo sobre o “quarto sacramento”, recuperando, ao mesmo tempo, a “exterioridade” em relação à iniciação e a função de “serviço” em relação a ela.
Em outras palavras, somente quando se pôde redescobrir adequadamente que o IV sacramento não faz parte da iniciação cristã, é que se pôde tematizar, como seu centro, a sua função de “serviço” a outra coisa além de si.
Isso impõe, de modo novo, uma elaboração da “razão sistemática do sacramento”, que dificilmente poderia ser desenvolvida sem esse renovado contexto pastoral e eclesial de referência.
O desígnio deste texto, portanto, é, em primeiro lugar, a recuperação da razão sistemática do IV sacramento.
Com ela, entende-se uma justificação da função e da estrutura de um sacramento “diferente da iniciação cristã”, mas cuja função não é “para si”, mas “para outra coisa”, ou seja, em vista de uma recuperação e de uma cura da relação de comunhão que a iniciação cristã inaugura com os limiares batismais e crismais e elabora na continuidade de oração e de rito da celebração eucarística. Com uma expressão bastante afiada, Tomás de Aquino diz que a penitência intervém “non per se, sed quasi per accidens, scilicet in remedium supervenientis defectus” (S. Th, III, 65, 3, c).
A redescoberta dessa “razão sistemática” é tão urgente quanto difícil [1]. Isso se deveu a uma espécie de “esquecimento” que progressivamente apagou as duas “pedras angulares” dessa expressão de Tomás, a saber:
- por um lado, o primado da iniciação cristã, do qual faz parte o “fazer penitência”, mas não o “sacramento da penitência”.
- por outro, a distinção clássica, segundo a qual o “remédio ao pecado grave” é a razão sistemática do IV sacramento.
Por isso, como veremos, por um lado, é preciso reelaborar a segunda instância, ou seja, aquela entre pecados mortais e pecados veniais; mas, por outro, é necessário redescobrir uma distinção clássica, que hoje não faz parte do glossário eclesial e que deve ser redescoberta, embora com um processo de tradução necessário: queremos aqui aludir à distinção escolástica entre “penitência como virtude” e “penitência como sacramento”.
A perda dessa distinção, que salvaguarda uma experiência batismal e eucarística de penitência que permanece original, constitui o pressuposto daquele fenômeno que definimos como “absorção” de toda a penitência no sacramento. Isso em detrimento não tanto da “virtude”, mas sim da centralidade da iniciação cristã.
Mas, como dissemos, a emergência da “questão sistemática” se deveu ao novo papel adquirido pela “iniciação cristã” ao longo do último século. Por isso, é necessário se ocupar de uma análise mais detalhada desse desenvolvimento, especialmente em relação à iniciação das crianças e dos pré-adolescentes.
Uma segunda parte do volume será dedicada a isso, na qual propomos uma comparação dessa “razão sistemática” com a prática pastoral, particularmente em relação ao impacto que a “primeira confissão” teve, no último século, sobre a ação pastoral de iniciação cristã.
Partiremos da observação das dificuldades pastorais ligadas às práticas de iniciação cristã, em particular à práxis de colocar a “primeira confissão” antes da “primeira comunhão”, com toda uma série de implicações relevantes, três em particular: a confissão compreendida como condição prévia para fazer a comunhão; o debate teológico que acompanhou a pastoral; o esforço dos pré-adolescentes para viver o sacramento da confissão. Os esforços dos pré-adolescentes são o ponto de perspectiva e de observação que orienta essa segunda parte.
Para refletir sobre essa problemática e propor caminhos de iniciação que busquem abordá-la, consideramos fundamental estudar a questão da correta colocação do sacramento da confissão e da sua delicada relação com a iniciação cristã. De fato, é necessário amadurecer a consciência de que, se por um lado o sacramento da confissão não faz parte dos sacramentos da iniciação, por outro o “fazer penitência” desempenha um papel importante ao iniciar o sujeito na identidade cristã.
Tal distinção é particularmente urgente no caso das crianças e pré-adolescentes, por causa das peculiaridades da sua idade e condição eclesial; como sujeitos em crescimento, de fato, eles devem ser considerados nas suas características pessoais, psicológicas e relacionais; e, como sujeitos dentro de um caminho de iniciação, exigem ser educados a “fazer penitência”, de modo articulado, para serem capazes de acessar o “sacramento da confissão” de maneira autêntica e plena.
O volume, portanto, se divide em duas partes: na primeira parte, gostaríamos de tentar recuperar essa experiência complexa do “fazer penitência” na Igreja e procederemos do seguinte modo: inicialmente, gostaríamos de apresentar o quadro geral dos termos e das questões que dizem respeito ao IV sacramento: por um lado, examinando os termos fundamentais que descrevem o IV sacramento (§ 1) e, por outro, ressaltando as questões sistemáticas fundamentais que definem a sua necessidade e a sua estrutura em relação à iniciação cristã (§ 2), para depois nos determos sobre questões individuais relevantes sobre a relação entre virtude e sacramento (§ 3) e o diálogo com a cultura e com as tradições não católicas (§ 4).
Na segunda parte, depois de um primeiro capítulo (§ 5) de caráter histórico, em que examinaremos alguns documentos eclesiais do século passado, principalmente do Magistério, faremos seguir um segundo capítulo (§ 6), de caráter teológico, em que interrogaremos alguns autores sobre a relação entre o sacramento da penitência e os sacramentos de iniciação cristã, procurando evidenciar como essa relação é compreendida e motivada de modos diferentes, de acordo com as exigências pastorais e as prioridades teológicas. Por fim, o terceiro capítulo (§ 7), de caráter pastoral, estará finalizado a esboçar algumas pistas de desenvolvimento para a práxis: serão enquadrados, depois, os traços característicos da pré-adolescência, com uma atenção especial para o aspecto religioso; serão apresentados os resultados de um questionário aplicado a uma amostra de pré-adolescentes, interpelados sobre a sua relação com a confissão; uma tentativa de interpretação dos resultados se seguirá, na busca de ser um ato de escuta autêntica das vivências dos pré-adolescentes.
Por fim, ao tentar oferecer algumas intuições e sugestões para a prática, será plenamente reconhecido que uma escuta da vivência dos pré-adolescentes pode oferecer indicações importantes para a renovação da práxis e da teologia da confissão em todas as idades, assim como uma teologia e uma pastoral renovadas podem se libertar de modalidades formalistas e padronizadas do sacramento, das quais os pré-adolescentes se mostraram observadores atentos e também vítimas silenciosas. No apêndice, serão explicados em detalhe os resultados do questionário.
[1] Ela não diz respeito apenas ao IV, mas também ao V sacramento. De fato, a introdução da categoria de “iniciação cristã” para a compreensão dos sacramentos do batismo/crisma/eucaristia destinava-se, desde o início, a modificar profundamente todo o quadro da teologia sacramental cristã, além dos costumes seculares da própria práxis celebrativa eclesial. Na categoria de “cura”, encontramos aquele conceito que – remetendo o IV e o V sacramentos ao horizonte da iniciação cristã – pode recuperar a sua profundidade histórica, litúrgica e sistemática, e reler toda a sua riqueza em teologia e de práxis pastoral. Nessa ótica de fundo, à tarefa de esclarecer a vocação “terapêutica” do sacramento da penitência, pode-se seguir a tarefa de restituir ao sacramento da unctio infirmorum toda a sua diferença em relação ao IV sacramento, identificando melhor o seu “lugar teológico” dentro da “crise” da identidade cristã, que se deve aqui à doença antes que à culpa. A ambição em relação a uma nova compreensão da “cura cristã” na sua articulação mais autêntica passa necessariamente pela reaquisição do valor da dimensão simbólico-ritual: através dela, tem-se acesso à superação da crise de identidade cristã, distinguindo acuradamente a crise que se deve à culpa – à qual corresponde a penitência – daquela “sem culpa” – à qual se refere a unção dos enfermos. Para o desenvolvimento desse capítulo adicional, que aqui não posso desenvolver, limito-me a remeter a A. Grillo – E. Sapori (ed.), Celebrare il sacramento dell’unzione degli infermi, Atas da XXXI Semana de Estudo, Valdragone (San Marino), 24-29 ago. 2003, Roma: CLV-Ed. Liturgiche, 2005.
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O sacramento da penitência e a tarefa de uma compreensão sistemática. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU