08 Agosto 2019
“A ‘crise’ do Instituto João Paulo II é uma crise de crescimento. É possível que alguns fiquem mal com isso. Que alguns pensem que os filhos são bonitos enquanto são pequenos e controláveis. Mas o Instituto João Paulo II cresceu e não suporta pais mandões. É a lógica de toda família.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 07-08-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Abaixo e aquém das polêmicas que investiram contra o Instituto João Paulo II nas últimas semanas, eu acredito que se possa reconhecer distintamente nelas o traço de uma evolução da relação entre Igreja e mundo que encontra a sua origem no Vaticano II e na sua retomada por parte de Papa Francisco.
Matrimônio e família representam, de forma exemplar, aquela fatia de mundo sobre a qual a Gaudium et spes já havia começado a elaborar um paradigma diferente de mediação entre fé e cultura. Tentarei agora compreender em síntese o que está ocorrendo nessa passagem delicada.
Com um fenômeno histórico imprevisível, o sacramento do matrimônio tornou-se, a partir da segunda metade do século XVI, o terreno de uma relação positiva com a cultura, que assumiu progressivamente um perfil acentuadamente institucional. O decreto Tametsi, estabelecendo a “forma canônica” como critério de validade do matrimônio, inaugurava, de fato, para toda a cultura europeia, uma legislação matrimonial, que assumia um perfil estrutural.
No desenvolvimento dos séculos seguintes, essa orientação foi amplamente acentuada no choque aberto entre cultura civil e cultura eclesial. E o matrimônio e a família se tornaram os símbolos de uma “resistência”, que foi gerida em níveis diferentes, mas que, sobretudo no nível institucional, a partir da metade do século XIX, estruturou-se juridicamente, até se tornar “codificação canônica” em 1917.
Isso marcou a história da Igreja Católica até o Concílio Vaticano II, que começou a modificar a abordagem, recuperando o terreno anterior e ulterior em relação à doutrina e à disciplina.
Nesse quadro, a quase 20 anos do Concílio Vaticano II, a fundação do Instituto João Paulo II representou um movimento de “resistência institucional”, em que todo aprofundamento antropológico, teológico, eclesiológico era subordinado a uma confirmação da tradição recente: tentou-se honrar essa tradição mediante uma operação de moralização e de juridicização dela.
De modo particular, o trabalho de Carlo Caffarra levou às consequências extremas essa tentativa de “rigorização conceitual” do modelo do século XIX, com uma forte tendência à abstração e à concentração em poucos princípios, nos quais o saber dogmático e o saber canônico se sobrepõem quase até se identificarem. Vale a pena determo-nos um pouco nessa passagem.
Parece-me possível concentrar todo o trabalho de estruturação da “doutrina sobre o matrimônio” operado pelo Instituto João Paulo II em dois princípios gerais e abstratos, que soam assim:
a) O exercício da sexualidade é legítimo apenas dentro do matrimônio.
b) O matrimônio entre dois batizados é ipso facto sacramento.
Esses dois princípios, que provêm da tradição dos últimos séculos, são formulações que são afetadas por uma relação conflituosa com o ambiente moderno, no qual nasce uma relação nova com o “sexo” (que leva o nome de sexualidade) e uma possibilidade de “lei civil” sobre o matrimônio diferente da eclesial.
Esse duplo fenômeno, de fato, é bloqueado por um duplo princípio geral, que visa a “bloquear o sistema”. Se a sexualidade só pode ser exercida dentro do matrimônio, e todo matrimônio entre batizados é sacramento, então quem tem competência sobre o sacramento tem autoridade e competência para discernir sobre a matéria, e ninguém mais.
Não é difícil notar como esse modelo de pensamento brota de uma visão extremamente estreita da tradição. Esta sempre soube que a realidade matrimonial e familiar não se deixam reduzir a ideias claras e distintas. E que as lógicas da natureza, da cidade e da Igreja não estão em harmonia a priori.
A estratégia da “sociedade fechada” era clara: a sociedade controlava a natureza, e a Igreja guiava a sociedade. Era muito fácil, na sociedade fechada, que a Igreja compartilhasse o imaginário social de modo bastante amplo: que a Igreja calvinista tivesse na sala do culto bancos “reservados às meretrizes” (mães solteiras) e que a Igreja Católica aprovasse a maldição das mães solteiras no contexto social.
Por outro lado, o princípio da legitimidade do exercício da sexualidade somente no matrimônio valeu, durante séculos, apenas para as mulheres, mas não para os homens. O homem era iniciado “pré-matrimonialmente” na sexualidade. A possibilidade de dizer com verdade o princípio eclesial, portanto, depende hoje da emancipação feminina, que também era combatida frontalmente.
Resta o fato de que o aprofundamento promovido pelo Instituto João Paulo II ocorreu dentro de um quadro de “relação entre Igreja e mundo” profundamente condicionado por escolhas datadas, contingentes e que pareciam, ainda nos anos 1980, profundamente clericais. O modelo de agentes de pastoral familiar que o Instituto João Paulo II projetava naqueles anos também manifestava os limites de uma profunda clericalização do laicato.
Até a Familiaris consortio – que, de fato, constituiu a “carta magna” do Instituto João Paulo II – essa configuração permaneceu indiscutível: é como se não fosse possível sair do “modelo do século XIX”, apologético e canônico, de compreensão do matrimônio e da família. O duplo Sínodo e a exortação apostólica mudaram o quadro sobretudo por três motivos:
a) eles introduziram uma noção de magistério acima de tudo não universal e abstrato, mas sim concreto, no qual estão envolvidos sujeitos diferentes do papa, do Sínodo e dos bispos;
b) abriram o matrimônio e a família a uma leitura “escatológica” e “processual”;
c) redimensionaram as expectativas sobre a “imediaticidade” da união e da geração a partir do ponto de vista jurídico, trabalhando, antes, sobre a evidência histórica e de cumprimento do sacramento cristão.
Isso muda a abordagem da matéria, impede de “deduzir a partir de uma antropologia cristã” todos os conteúdos doutrinais, mas participa da labuta antropológica, atestada pela própria Escritura, com que emerge gradualmente uma evidência nova e poderosa. À luz da qual os princípios enunciados não são absolutamente falsos, mas não são toda a verdade. E dizem a verdade de modo distorcido, sem considerar os processos que a tornam evidente.
A pergunta é: como Deus guia e ilumina a história de amor e de geração dos casais de batizados? A escolha tridentina, moderadamente, e do século XIX, duramente, foi a escolha institucional e objetiva. O seu ápice foi o esboço do Código. A Familiaris consortio ainda permanece nesse projeto, apesar de manifestar todas as suas rachaduras. A autoridade de Deus se identifica com uma Igreja que tem a competência exclusiva sobre a união e a geração.
A erosão desse modelo ocorreu ao longo de todo o século XX. A predisposição de um modelo novo não ocorreu com o Concílio nem com a Familiaris consortio: somente a Amoris laetitia nos dá as linhas fundamentais de um modelo diferente em que a concretude do discernimento suplanta em grande parte a ideia da lei geral e abstrata; a processualidade gradual supera a ideia da imediaticidade contratual; a consideração da liberdade dos sujeitos suplanta a sua redução impiedosa à lógica da comunidade. Tudo isso precisa de um modelo diferente de lei canônica e de pensamento teológico. A Amoris laetitia nos dá um exemplo incompleto, mas convincente, disso.
Nesse espaço de novidade, o estudo da tradição não pode permanecer vinculado aos modelos superados de mediação. A pretensão, expressada em várias oportunidades por diversos professores do Instituto João Paulo II, de ter na Familiaris consortio o modelo insuperável, que pretenderia ser um critério de leitura (falsa) também para a Amoris laetitia, representa a resistência de uma retaguarda em relação ao caminho eclesial. Esse caminho experimenta na teologia do matrimônio aquilo que diz respeito, na realidade, a todo o saber eclesial.
A teologia católica deve se tornar verdadeiramente católica. Não deve parar nas versões do catolicismo que Trento, ou o Vaticano I ou o Codex de 1917 souberam expressar. Que o sexo se tornou sexualidade, que não pode ser simplesmente exercido, mas que se torna parte da identidade dos sujeitos em relação; que as formas da união entre homem e mulher possam ser reconhecidas e abençoadas mesmo na variação das formas institucionais que as reconhecem, são todos fenômenos que exigem categorias novas, procedimentos de pensamento mais elásticos, disponibilidade para ver coisas velhas de modo novo e coisas novas de modo inesperado.
A “crise” do Instituto João Paulo II é uma crise de crescimento. É possível que alguns fiquem mal com isso. Que alguns pensem que os filhos são bonitos enquanto são pequenos e controláveis. Mas o Instituto João Paulo II cresceu e não suporta pais mandões. É a lógica de toda família. E os pais decepcionados sempre podem encontrar um avô que os consola. Mas a história não para. E as famílias mais santas ainda têm que nascer.
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Outro paradigma: a verdadeira questão por trás da controvérsia sobre o Instituto João Paulo II. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU