06 Agosto 2019
"A reforma da pastoral matrimonial e da pastoral familiar precisava redescobrir, após quase 40 anos, que a escolha feita então resultava, à luz da realidade da Palavra de Deus e da experiência dos cristãos, uma solução "mesquinha": uma abstração perigosa, e inclusive muito violenta, que sofria muito fortemente de uma compreensão abstrata e inadequada da antropologia, da eclesiologia e até mesmo da função "dinâmica" do próprio direito canônico".
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 05-08-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em uma manifestação publicada em Avvenire em 3 de agosto passado, mons. Camisasca mostrava sua surpresa com o fato de que seja oferecida uma imagem da evolução da pastoral da família que enfatiza a descontinuidade do papado de Francisco em relação a seus predecessores. E afirmava que o povo cristão deve ser ajudado a compreender a continuidade, não a descontinuidade da tradição.
Eu acho que tal intervenção tem o mérito de colocar o dedo em uma ferida, que não diz respeito apenas à pastoral e à doutrina sobre o casamento e a família, mas a todo o "depositum fidei". Nisso, parece-me importante não cair em uma série de armadilhas, que facilmente impedem entender o que está acontecendo. Mas vamos prosseguir por ordem.
1. Em primeiro lugar, não preciso recordar ao mons. Camisasca que o Concílio Vaticano II é certamente o ponto de referência primário para compreender que a continuidade da grande tradição só pode ser assegurada assumindo para si a tarefa da reforma da Igreja. Das palavras de Camisasca e de muitos outros críticos em relação à renovação do Instituto João Paulo II, nunca transparece que a "condição de continuidade" é a reforma. Agora, toda reforma inevitavelmente acarreta uma série de descontinuidades. Portanto, o Vaticano II requer assegurar uma continuidade mais profunda através de algumas decisivas descontinuidades. Caso jogarmos na oposição nítida entre continuidade e descontinuidade, permaneceremos parados, imóveis, bloqueados. Foi o que aconteceu com a teologia do casamento e da família. Que considerou ser "fiel à tradição", permanecendo preso a soluções e linguagens típicas da segunda metade do século XIX.
2. Em particular, um texto da Amoris Laetitia indica de forma bastante clara onde está o "ponto de virada" a que vários professores do Instituto GPII duramente e repetidamente se opuseram. É um dos textos-chave em que é atestada a superação do modelo oitocentista de teologia do casamento. Consta nele o que segue:
"É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta dum ser humano."
O texto em latim começa a frase com a expressão: "pusilli animi est": "é próprio de uma alma pequena, fraca e mesquinha". Mas deve-se dizer, com toda a clareza do caso, que justamente esta foi a estratégia eclesial que prevalecia sobre o matrimônio, que começou com Pio IX, passando por Leão XIII, o Código de 1917 e Pio XI, para chegar até o Vaticano II. Tal escolha foi aquela da "primazia do objetivo", com uma consideração mínima e marginal do sujeito envolvido. Essa estratégia, que foi a "força" do século XIX, tornou-se a fraqueza do século XXI.
3. Deve-se acrescentar, contudo, que foi justamente a teoria central do Instituto João Paulo II, originalmente elaborada por Carlo Caffarra, que levava essa abordagem oitocentista às suas extremas consequências, isto é, operava uma dupla e muito perigosa redução: reduzia a teologia do casamento à moral e a moral a uma série de "assuntos canônicos" que se tornaram o verdadeiro centro da doutrina sobre o casamento. Um direito canônico elevado a critério fundamental para bloquear qualquer asserção dogmática, moral e pastoral. E aquele que não seguia tal abordagem estreita era acusado de "magistério paralelo": mons. Camisasca não terá problemas em lembrar isso.
4. Esta operação, realizada no início dos anos 1980, e blindada com a Exortação Apostólica "Familiaris consortio", opera assim um bloqueio total da tradição. Ao passar por revelado o que é uma legítima, mas contingente, escolha histórica, teve a pretensão de dar a "palavra definitiva" sobre o casamento e a família. Como é evidente para estar em continuidade com a grande tradição antiga, medieval e tridentina, era necessário sair desse funil, no qual havíamos nos trancado desde 1981. Os dois Sínodos de 2014 e 2015 operaram essa virada.
5. A reforma da pastoral matrimonial e da pastoral familiar precisava redescobrir, após quase 40 anos, que a escolha feita então resultava, à luz da realidade da Palavra de Deus e da experiência dos cristãos, uma solução "mesquinha": uma abstração perigosa, e inclusive muito violenta, que sofria muito fortemente de uma compreensão abstrata e inadequada da antropologia, da eclesiologia e até mesmo da função "dinâmica" do próprio direito canônico.
6. É por isso que me surpreende a surpresa de mons. Camisasca. Ele já deveria ter ficado preocupado na década de 1990, quando estava envolvido em um ensinamento, que operava perigosas abstrações na pele dos casais casados. Que reconstruía à revelia as suas histórias. Que não admitia a história do vínculo e que idealizava de forma exasperada as histórias de vida, de comunhão e de geração.
7. Por outro lado, não me surpreende que hoje ele peça "continuidade". Na realidade, aquela continuidade, à qual ele acena, não é mais possível. Porque está em jogo uma continuidade maior, a do depositum fidei sobre o casamento e a família, que deve encontrar um revestimento e uma formulação melhor, adequada e não rígida. Por este caminho se orientou com coragem o Sínodo dos Bispos e o Magistério de Francisco. Que hoje pode reconhecer como "fraco" o que parecia "forte" e como "mesquinho" o que parecia "necessário".
8. Por outro lado, aqui está em jogo muito mais do que as sensibilidades episcopais e da cúria. Que são muito boas em reconstruir os fatos como bem entenderem. E podem esperar que tudo mude para que tudo permaneça como antes; que possam ser ditas, ao mesmo tempo, as frases de 40 anos atrás e as de hoje; que se possa inclusive fazer do Papa Francisco um "discípulo de Luigi Giussani". A confusão que deve ser evitada é aquela entre a demanda por continuidade, que é um assunto sério, e a pretensão de reduzir a continuidade à estratégia mesquinha de uma "societas perfecta" incapaz de considerar as histórias concretas dos sujeitos.
Mas talvez, por trás de tudo isso, a pior confusão não seja aquela entre "continuidade" e "mesquinhez", mas aquela entre "comunhão" e "comunhão e libertação".
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“Pusilli animi est ...” (AL 304): continuidade e mesquinhez na tradição eclesial sobre casamento e família - Instituto Humanitas Unisinos - IHU