16 Agosto 2019
Não existe tolerância sem a aceitação de ambiguidade (no sentido de pluralidade de interpretações): o comentário é do famoso arabista Thomas Bauer, que considera a Europa culpada do fracasso do diálogo religioso, em artigo publicado por Zeit.de, 31-07-2019. A tradução é de Luisa Rabolini..
Thomas Bauer, nascido em 1961, é professor de ciência islâmica e arabismo em Münster. Em 2018 foi premiado com o Tractatus-Preis des Philosophicum Lech. Este ano recebeu o prêmio Wissenschaftlichen Buchgesellschaft. O texto apresentado aqui é uma síntese de seu discurso na reunião anual da Fundação Romano Guardini, em junho de 2019, em Berlim.
Celebramos o 70º aniversário da Constituição Alemã, o 70º aniversário das ferrovias alemãs, o 70º aniversário da República Popular da China, o 70º aniversário do Currywurst (salsicha com molho ao curry) e muitos outros aniversários. Uma recorrência que certamente é esquecida, no entanto, é a do conceito de "tolerância à ambiguidade", que também comemora seus 70 anos.
Em 1949, a psicóloga Else Frenkel-Brunswik publicou um ensaio com o copioso título: Intolerance of Ambiguity as an Emotional and Perceptional Variable (Intolerância à ambiguidade como variável emocional e perceptiva, em tradução livre). Com esse ensaio, ela introduzia o conceito de tolerância da ambiguidade na ciência. A tolerância à ambiguidade é, portanto, uma característica da personalidade que consiste em considerar a ambiguidade, isto é, a multiplicidade e a pluralidade de interpretação, como enriquecimento. Uma personalidade que tolera a ambiguidade resiste às contradições, suporta as incertezas e admite outros pontos de vista.
Essas noções foram levadas em consideração no estudo publicado por Frenkel, Adorno e outros sobre a "personalidade autoritária". Seguiram-se outros estudos que refinaram o conceito de "intolerância à ambiguidade", mas na psicologia esse conceito permaneceu praticamente em segundo plano. A tolerância da ambiguidade não é, contudo, apenas uma característica psicológica no nível individual, mas também uma característica de sociedades que se caracterizam por uma maior ou menor tolerância à ambiguidade.
O Islã e sua percepção têm muito a ver com a tolerância à ambiguidade. De fato, nos 20 anos desde o início de meu estudo em 1980 e minha atividade de ensino em Münster, o Islã mudou de maneira fundamental, mas não só: mudou também a imagem que a opinião pública na Europa tem do Islã.
Em 1980, havia uma imagem bastante complexa e estratificada. Era uma mistura entre as Mil e Uma Noites, Karl May e o Divã Oriental-Ocidental de Goethe. Vinte anos depois, a imagem era mais dura, não era mais estratiforme, mas muitas vezes totalmente unívoca (e muitas vezes abertamente hostil). Além disso, as sociedades islâmicas também haviam mudado, certamente, de forma extrema em comparação com o islamismo clássico, mas também muito fortemente em comparação com as situações de 1980, sobretudo por causa do fortalecimento das correntes fundamentalistas. Assim, tanto o islamismo quanto a imagem ocidental do mesmo se tornaram mais unívocos.
Mas como havia se chegado a essa transformação que levou à univocidade? Por muitos séculos, as sociedades islâmicas foram caracterizadas por uma "cultura de ambiguidade", por uma cultura com uma tolerância à ambiguidade extraordinariamente alta. Estudiosos da religião podem ao mesmo tempo desfrutar de uma reputação de devoção e, apesar disso, escrever poesias sobre o vinho e odes ao amor homossexual. A poesia era considerada em sua maioria profana e, além disso, testemunhava uma alegria quase infinita nos mais diversos tipos de multiplicidade de interpretações. Os estudiosos da religião regozijaram-se com a multiplicidade da interpretação do Alcorão e não procuravam derivar a única verdadeira interpretação entre as várias possíveis. No fundo, justamente a grandeza de Deus permite expressar muito com um único versículo.
O fim desta história que levou a uma perda de multiplicidade, a uma redução drástica da tolerância religiosa e da pluralidade que sempre caracterizou o Oriente não deve ser buscado em nenhuma Idade Média nem em uma decadência de séculos. A virada decisiva foi no século XIX, especialmente em sua segunda metade e ainda mais no século XX. O colonialismo e o imperialismo europeu tiveram um papel fundamental nesse desenvolvimento, mas ainda mais importante foi a substituição das elites nas sociedades islâmicas. Oficiais e técnicos formados no ocidente afastaram os eruditos e intelectuais da antiga tradição, e as elites religiosas reagiram com um enrijecimento e uma tendência à univocidade em suas posições. Também deve ser destacada uma fratura drástica na literatura. A literatura clássica é agora, em muitos aspectos, rejeitada por causa de seus temas frívolos e não-islâmicos.
O desenvolvimento do distanciamento da plurivocidade em direção a uma univocidade cada vez maior nas sociedades islâmicas, evidentemente tem a ver com a Europa - mas como esse desenvolvimento aconteceu na própria Europa? A chamada "Idade Média", no entanto, não é a culpada. Uma narrativa histórica de Hegel constrói uma "Idade Média" mais ou menos sombria, que é, entre outras coisas, a única época em que as culturas islâmicas desempenham um papel na história mundial. Principalmente, porém, essa "Idade Média" fornece o sombrio pano de fundo para uma narrativa de progresso que começa com a Reforma e conduz, através do Iluminismo, à Modernidade Ocidental.
A Reforma não foi, de modo algum, um passo em direção a uma maior tolerância à ambiguidade (= da multiplicidade de interpretações). Uma atitude como "Aqui estou firme. Eu não posso fazer diversamente" não é de forma alguma tolerante com a ambiguidade, muito menos os princípios da "sola scriptura" de Martinho Lutero. Para manter o princípio da "sola scriptura", a multiplicidade de interpretações até então difundida deve ser criticada e deslegitimada.
Semelhante mentalidade hostil à ambiguidade oferece pressupostos negativos para a religião. No século XX, o capitalismo assume o predomínio. Em quase todos os âmbitos, gradualmente substitui a religião. Assim como, anteriormente, em quase todos os sistemas sociais dominava a religião, hoje o capitalismo domina em todos. A economia não é mais um sistema social parcial, mas o sistema global que precede a religião.
Para chegar a isso, foi preciso mais do que a ética do trabalho calvinista. Era preciso uma mentalidade hostil à multiplicidade interpretativa, para que estudiosos e estudantes aceitassem sem reclamar que a universidade não era mais um lugar de formação e saber, mas um lugar onde obter Pontos de Crédito.
Por um lado, o capitalismo tem a capacidade mágica de transformar qualquer coisa em números unívocos, até mesmo as coisas imateriais, como a arte: uma obra de arte vale tanto quanto é avaliada em um leilão. Por outro lado, justamente o capitalismo torna o Eu como última instância. O produtor acredita: "Meu sucesso é fundamental, todos os outros são concorrentes"; e o consumidor se pergunta: "Quais são as minhas necessidades?"
Este último, isto é, tornar o Eu como última instância, é, por assim dizer, o nível da perda da interioridade protestante e é a porta para a invasão daquele ideal hoje tão vivo da autenticidade, que pressupõe que exista um Eu "verdadeiro", não afetado pela cultura e instrução, com o qual devemos nos identificar para sermos nós mesmos.
Ora, o que significa isso para a religião? Sem pluralidade de interpretação, não pode haver religião. Isso vale para os dogmas em sua paradoxalidade, vale para os textos "com autoridade" que, como todos os textos complexos, estão cheios de ambiguidade e necessitam de interpretação, que nunca pode ser unívoca e definitiva.
Vale também para os ritos que se opõem ferrenhamente ao impulso atual de querer entender tudo e ter uma opinião sobre tudo. Ora, a religião, como o filósofo da religião Romano Guardini também afirma, precisa da cultura: "A cultura não pode criar nenhuma religião, mas disponibiliza os recursos para que possa desdobrar plenamente sua benéfica eficácia". Essa cultura - hoje diríamos, mais especificamente, essa sociedade - é hostil à ambiguidade, enquanto a religião não pode ser outra senão afim à ambiguidade.
A inevitável consequência é a perda daquela religiosidade vivida que acolhe uma multiplicidade de interpretações, que aceita a dúvida da fé, que não teme os conflitos sociais. A religiosidade, evidentemente, torna-se cada vez mais fraca - e isso absolutamente não apenas nos países cristãos (incluindo os EUA, tantas vezes citados como um exemplo em contrário). Apenas a visão com antolhos com que hoje se olha para o Islã considerando-o tão religioso, ignora o fato de que provavelmente em todos os países islâmicos não acontece nada de diferente: falta de religião vivida de maneira tradicional e, em vez disso, crescimento daquelas formas de tratar a religião. que evitam a sua multiplicidade de interpretação.
Mas como se abandona a multiplicidade de interpretação? Em linha de princípio, existem duas maneiras: univocidade e ausência de significado. Por um lado, há um único significado. No outro polo, a ausência de significado. Os dois polos, univocidade e ausência de significado, constituem a fronteira para o mundo da ambiguidade (=multiplicidade). A tais polos se prenderão aqueles que não querem ter qualquer ambiguidade, nem mesmo na religião.
"Ausência de significado" quer dizer, no que diz respeito à religião, simplesmente indiferença. A pessoa para quem a religião é indiferente, a pessoa para quem a religião não significa nada, é uma pessoa que nem sequer precisa enfrentar as suas ambiguidades. Estou bastante certo de que é principalmente essa atenuação da tolerância à ambiguidade que leva a uma flexão na religião vivida e acreditada, e não estranhos dogmas, os males nas Igrejas ou programas de manutenção excessivos.
Esse processo é hoje observável em nível mundial, portanto também em regiões islamicamente caracterizadas e é certamente a estratégia mais frequente no afastamento da ambiguidade em relação à religião: uma religião vivida desaparece se não traz consigo uma "mais-valia" não religiosa, uma mais-valia normalmente política e que cria identidade.
O outro polo, a univocidade, é mais difícil de entender. Pode ser alcançado em princípio de duas maneiras: pelo caminho autoritário ou egocêntrico. A via "autoritária" - em última análise, é a via fundamentalista - consiste em imaginar uma religião livre de ambiguidades. Para isso é preciso sempre uma figura que tenha autoridade, um guia que possa ser seguido incondicionalmente. Na via "egocêntrica", até certo ponto uma via esotérica, coloca-se a si mesmos como figura de guia, ao fazer obstinadamente o que se sente dentro do próprio Eu autêntico, para encontrar ali a verdade com a qual possamos nos identificar completamente sem ambiguidade.
Esses caminhos em sua diferença têm uma coisa em comum, a saber, que – não diversamente do capitalismo exasperado - são associais no sentido literal do termo.
Existem antídotos? Se observarmos tempos e culturas mais favoráveis à ambiguidade (=à multiplicidade de interpretações), rapidamente se descobre algo como um regular "treinamento à ambiguidade", que pode consistir na produção de uma literatura que contém ambiguidade. Para aumentar o "fitness à ambiguidade", é necessário, acima de tudo, fortalecer aqueles âmbitos que estão fora da "racionalidade finalista" hostil à ambiguidade. Também serve reforçar os elementos lúdicos da cultura.
Arte, música, literatura, teatro. Mesmo esses âmbitos há muito foram penetrados pelo capitalismo. A comunicação artística diferencia-se da comunicação cotidiana precisamente porque uma obra de arte prevê diferentes reações e opiniões por parte dos observadores ou ouvintes. Portanto, uma obra de arte não quer ser entendida de maneira unívoca como um sinal de trânsito, ao contrário, abre espaços de interpretação e estímulo a associações. Em outras palavras: a arte é tal, apenas se tiver mais significados. Ora, porém, se a ambiguidade (= multiplicidade de interpretação) pertence tanto à essência da arte quanto à religião, ela também está sujeita à ameaça de sua negação - e, efetivamente parece acontecer dessa maneira e, portanto, o modelo que apresentamos para a religião pode ser transferido sem dificuldade para a arte.
Novamente, temos dois polos do distanciamento da ambiguidade (= multiplicidade de interpretação): a univocidade de um lado e ausência de significado do outro. Este último pode ser reconhecido nas numerosas obras fracassadas de "arte na construção", constituídas por barras ou similares, obviamente sem significado.
Para o polo fundamentalista da "univocidade", existem novamente duas vias, uma voltada para o exterior e uma egocentrada. A primeira é seguida quando um "trabalho" (termo que é geralmente usado para evitar o conceito de "obra de arte") liga seu significado inteiramente ou prevalentemente à sua mensagem ideológica. Aqui se incluem muitas coisas no campo da arte de ação política, onde, no caso de espetaculares ações do "centro para a beleza política", é transmitida a mensagem ideológica com uma clareza sem ambiguidade, mas onde o caráter artístico desaparece por trás do propósito político.
Na segunda via, o egocentrada, o artista novamente coloca a si mesmo como única autoridade. Aqui se fala de "autenticidade" e "realização de si mesmo" - um conceito revelador: o artista realiza si mesmo, não uma obra para o observador. Mas por que deveria ser importante para o mundo o que o artista descobriu em sua introspecção? Aqui o problema aparece claramente: enquanto a ação política é (ou pelo menos pode ser) socialmente altamente relevante, mas a obra de arte ali é perdida, uma obra criada exclusivamente para sua própria "autenticidade" e a própria análise introspectiva permanece principalmente irrelevante para o resto do mundo.
Se hoje se discute sobre inteligência artística, geralmente se colocam em confronto factibilidade e ética. O mundo binário digital, no entanto - precisamente pelo fato de ser "binário" - não é tolerante à ambiguidade (não é favorável a uma pluralidade de interpretações). Portanto, também seria preciso falar de mentalidade, ou seja, de como os desenvolvimentos futuros afetarão os modos de pensar, perceber e sentir dos seres humanos. Talvez máquinas que não tolerem ambiguidade produzam seres humanos ainda mais intolerantes à ambiguidade.
Portanto, nas discussões sobre nossas escolas, não deveríamos apenas falar sobre digitalização, mas também como promover criatividade musical e artística. Âmbitos que, considerando que hoje tudo o que traz em si pluralidade de interpretação conta menos do que é unívoco, não parecem ter aquele valor que deveriam ter.
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Ambiguidade, ou seja, multiplicidade de interpretações. Viva a incerteza! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU