Nas críticas do economista político e filósofo Karl Polanyi ao liberalismo econômico e à não regulação do mercado e na sua defesa de que a sociedade democrática requer uma economia orientada pela demanda social, é possível encontrar elementos para a reconstrução do pensamento econômico contemporâneo. Um deles é “a necessidade de ‘subordinar deliberadamente a economia enquanto meio aos fins da comunidade humana’”, diz o economista José Rubens Damas Garlipp à IHU On-Line.
Autor da tese de doutorado intitulada “Economia Desregrada — Marx, Keynes e Polanyi e a Riqueza no Capitalismo Contemporâneo” (2001), Garlipp explica que o conceito de “incrustação” é fundamental para compreender tanto as críticas de Polanyi ao neoliberalismo, quanto sua defesa de uma economia que esteja a serviço da vida social. “Seu intuito é mostrar que, ‘normalmente, a ordem econômica é apenas uma função da social, na qual ela está inserida’”, menciona. Para explicitar esse ponto, Polanyi “formula o conceito de ‘incrustação’ (embeddedness), com o que busca mostrar a impossibilidade de separar mentalmente a economia de outras atividades sociais — algo que só encontra registro histórico com o advento da sociedade moderna, uma vez que, até então, fins do século XVIII, o sistema econômico encontra-se incrustado no sistema social”, diz.
A noção de “incrustação”, esclarece, está diretamente relacionada ao modo como o economista compreendia a economia: como um sistema de relações sociais entre atores individuais e coletividades. “Ele busca demonstrar que as instituições econômicas se encontram incrustadas em outras instituições de natureza não econômica, e que a presença destas últimas é de importância decisiva”. Na avaliação de Garlipp, “a originalidade” de Polanyi está “em apontar como, sob o capitalismo, se estabelece a ‘desincrustação’ da economia em relação ao tecido social, fruto da mercantilização das ‘mercadorias fictícias’, processo que se afigura um ‘moinho satânico’, porque correspondente aos mecanismos implacáveis do mercado, moendo a vida das vítimas inevitáveis, em seu afã de acumular riqueza abstrata”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, o economista reflete sobre a organização do sistema econômico contemporâneo e sobre a crise brasileira. Segundo ele, “sob a nova fase da internacionalização do capital, emergem ‘oligopólios mundiais’ que delimitam entre si o espaço da concorrência, cada vez mais protegido contra a entrada de novos concorrentes”. Já no cenário brasileiro, pontua, “a diferença é que os donos do poder, seus asseclas e os crédulos seguem surdos e cegos quanto à incapacidade das políticas de austeridade cumprirem o prometido, em franco desprezo ou desconhecimento acerca das experiências internacionais que conduziram países ao caos social e político”. Para o país do futuro, diz, “o desafio é de dupla ordem: (a) sem crescimento não há desenvolvimento; (b) crescimento sem transformação social não conduz ao desenvolvimento”.
José Rubens Damas Garlipp esteve no Instituto Humanitas Unisinos – IHU na noite de ontem, 22-05-2019, ministrando a palestra “As contribuições de Karl Polanyi para a reconstrução do pensamento econômico contemporâneo”. O evento integra o V Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia.
José Garlipp (Foto: Susana Rocca | IHU)
José Rubens Damas Garlipp é graduado em Ciências Econômicas e em Ciências Administrativas pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, mestre em Economia pela Universidade Federal de Pernambuco e doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas. É ex-presidente (1995-1999) e atual secretário-geral da Associação Nacional dos Cursos de Graduação em Ciências Econômicas – ANGE. Atualmente leciona na Universidade Federal de Uberlândia.
IHU On-Line - Quais são os principais elementos que caracterizam o capitalismo contemporaneamente e o pensamento econômico contemporâneo, segundo Polanyi?
José Rubens Damas Garlipp - Sob um enfoque institucional, Polanyi discute a economia como processo instituído, o mercado como realidade teórica e histórica, de modo que a originalidade de sua contribuição está em apontar como, sob o capitalismo, se estabelece a “desincrustação” da economia em relação ao tecido social, fruto da mercantilização das “mercadorias fictícias”, processo que se afigura um “moinho satânico”, porque correspondente aos mecanismos implacáveis do mercado, moendo a vida das vítimas inevitáveis, em seu afã de acumular riqueza abstrata. Daí que entendo pertinente a contribuição de Polanyi, autor que se debruçou sobre os fundamentos da riqueza capitalista com vistas a estabelecer firme contraposição ao ideário liberal-conservador, ao mesmo tempo que sublinha a artificialidade do mercado autorregulado e suas perversas consequências: “o laissez-faire, imposto pelo Estado, não era o método para atingir alguma coisa, era a coisa a ser atingida”. É de notar que a história econômica do capitalismo contemporâneo é, igualmente, a de um mundo que perde as suas referências e resvala para a instabilidade e crises recorrentes, na exata medida em que o desaparecimento das regras e das fronteiras deixa o capital entregue às suas próprias leis de movimento. Com efeito, a atualidade do pensamento de Polanyi reside naquilo que pode ser expresso como viabilidade e urgência de subordinar a economia à política.
Com o desmantelamento do consenso keynesiano e a ressurgência do ideário liberal conservador, assistimos, desde os anos setenta do século XX, a uma outra “grande transformação”, expressa na construção de circuitos internacionais produtivos e, principalmente, financeiros de valorização do capital, a qual propõe o desmantelamento do “padrão” global de desenvolvimento herdado do pós-guerra. Daí que as consequências perversas da economia desregrada não serem mais mitigadas, exclusiva e principalmente, pela ação e por políticas públicas, dado que é da sua própria natureza continuar a gerar e regenerar contradições internas que não pode superar.
Com efeito, hoje não estão mais disponíveis os instrumentos para disciplinar o capital, e é preciso notar que as transformações em curso favorecem uma nova realidade organizacional, mais coesa e centralizada, dos grandes conglomerados protagonistas da financeirização da riqueza. Cada vez mais, as grandes opções políticas são submetidas aos imperativos do setor financeiro, e a marcha da economia é confiscada por um pequeno número de atores que escapam a todo e qualquer controle.
Como sabemos, Polanyi compreende a natureza e o alcance da cristalização do novo pensamento, que se transformaria em pensamento único do pós-Guerra. Em sua crítica ao liberalismo da etapa 1880-1945, responsável pela catástrofe, ataca de frente o núcleo duro da utopia capitalista. Mostra que o trabalho, a terra e o dinheiro só podem ser tratados como mercadorias se se paga o preço da alienação humana e da sua degradação, da negação da relação de poder Estado-moeda em benefício da especulação financeira. Vale notar que os três fundamentos da irracionalidade do liberalismo ressurgem a partir do esgotamento do consenso keynesiano, e desde então caracterizam a quadra histórica contemporânea.
IHU On-Line - Como Polanyi compreende o funcionamento da economia?
José Rubens Damas Garlipp - Polanyi considera a economia como um sistema de relações sociais, interna e externamente, entre atores individuais e coletividades. Ele busca demonstrar que as instituições econômicas se encontram incrustadas em outras instituições de natureza não econômica, e que a presença destas últimas é de importância decisiva. Para Polanyi, “toda tentativa de esclarecer o lugar que a economia ocupa na sociedade deve partir do fato de que o termo econômico, tal como habitualmente usado para descrever um tipo de atividade humana, contém dois significados, com raízes distintas e independentes uma da outra”. O sentido formal emerge do "caráter lógico da relação meios-fins", ao passo que o substantivo denota "os meios de subsistência do homem".
Com efeito, enquanto o formal resulta da lógica, o substantivo resulta dos fatos; as regras do primeiro são as da mente, as do segundo são as da natureza. Por conta disso, investigar a subsistência humana requer o estudo da economia no sentido substantivo do termo, único significado capaz de oferecer os conceitos requeridos pelas ciências sociais para uma investigação de todas as economias do passado e do presente.
O estudo da economia deve estar referido ao contexto histórico e às instituições sociais para não incorrer na falácia economicista — o erro lógico em identificar toda a economia humana com sua forma de mercado, cuja generalização embaça o entendimento da questão da organização sócio-histórica de cada sistema econômico em seu tempo e lugar. Daí Polanyi discutir a atipicidade da economia capitalista de mercado, a qual contrasta com outros sistemas econômicos baseados em reciprocidade, solidariedade e hierarquia. Polanyi chama a atenção para o impacto da economia — enquanto subsistema de relações sociais — sobre o conjunto da sociedade. Uma vez que a economia capitalista se propõe a subsumir a sociedade, então o “moinho satânico” se revela particularmente nocivo e destrutivo das solidariedades sociais mais gerais; e a dinâmica do mercado tende a entrar em choque com o bem-estar social e com a democracia.
IHU On-Line - Pode nos explicar a frase de Polanyi: “[...] a ordem econômica é apenas uma função da social, na qual ela está inserida”?
José Rubens Damas Garlipp - Polanyi se recusa a tomar a economia em seus termos absolutos, tal como apregoam a ciência econômica então hegemônica e a sua versão atual (economics). Recorre aos temas fundantes da antropologia, da sociologia, da história, da filosofia política, da ciência política, e adota o conceito aristotélico de “indivíduo societário”. Seu argumento, influenciado pela filosofia cristã, é que, em essência, cada indivíduo é social. Entretanto, em contraste com a ideia de indivíduo atomístico movido pelo egoísmo, um artifício próprio da razão instrumental, em Polanyi a ênfase recai sobre os elementos constitutivos que definem o indivíduo como ser social. Seu intuito é mostrar que, “normalmente, a ordem econômica é apenas uma função da social, na qual ela está inserida”, ou ainda, “a primeira razão para a ausência de qualquer conceito de economia é a dificuldade de identificar o processo econômico debaixo de condições onde está incrustado em instituições não econômicas”.
Com vistas a superar tal dificuldade, formula o conceito de “incrustação” (embeddedness), com o que busca mostrar a impossibilidade de separar mentalmente a economia de outras atividades sociais — algo que só encontra registro histórico com o advento da sociedade moderna, uma vez que, até então, fins do século XVIII, o sistema econômico encontra-se incrustado no sistema social. Por conta disso, o desenraizamento da esfera econômica das demais dimensões da vida social deve, pois, ser apanhado em perspectiva histórica. Daí o contraponto por ele proposto, no sentido de capturar a incrustação da economia nas demais esferas institucionais.
Para tanto, Polanyi recorre a três princípios de integração para analisar as sociedades concretas: reciprocidade, redistribuição e domesticidade (oeconomia, ou seja, o próprio mercado), capazes de assegurar o funcionamento do sistema econômico e, por isso, se efetivarem, à medida que a organização das sociedades conta com a ajuda de padrões institucionais, tais como simetria, centralidade e autarquia. Recorrendo a tais princípios, o autor busca mostrar que não necessariamente o mercado subsume os dois primeiros — não associados basicamente à economia —, a não ser em período histórico determinado, quando se instaura a crença de que o mercado é um sistema autorregulado e quando consiste na hypóstasis do mercado com atributos de agente autônomo.
IHU On-Line - Por que, para Polanyi, o liberalismo econômico é utópico?
José Rubens Damas Garlipp - Polanyi procura desvendar a gênese da economia capitalista em um movimento de desmistificação do caráter natural e eterno atribuído ao mercado pelo liberalismo econômico. Ao denunciar o princípio da produção visando o lucro como não natural, apontando para o seu ponto crucial — a separação de uma motivação econômica isolada das relações sociais —, Polanyi refuta o universalismo do cálculo econômico voltado para a acumulação de riqueza que caracteriza a economia de mercado.
Ao mesmo tempo, sublinha ter sido o liberalismo econômico o princípio organizador dessa sociedade engajada na criação do sistema de mercado. Um princípio que “passou a representar”, nas primeiras décadas do século XIX, “os três dogmas clássicos: o trabalho deveria encontrar seu preço no mercado, a criação do dinheiro deveria sujeitar-se a um mecanismo automático e os bens deveriam circular livremente de país a país, sem empecilhos ou privilégios. Em resumo, um mercado de trabalho, o padrão-ouro e o livre comércio” [e] “esses três pilares formavam um todo indivisível”, de modo que “eram inúteis os sacrifícios para atingir qualquer um deles a menos que os outros dois fossem igualmente garantidos. Era tudo ou nada”.
Ao assinalar a extrema artificialidade do sistema de mercado, mostra que esse mecanismo é tudo, menos evidente por si mesmo, pois “nenhuma sociedade”, adverte, “poderia resistir aos efeitos de um sistema de ficções grosseiras como este” (considerando trabalho, terra e dinheiro como mercadorias) “mesmo por um período mínimo de tempo, a não ser que suas substâncias humanas e naturais, assim como sua organização de negócios, fossem protegidas contra as devastações desse moinho satânico”.
Polanyi agrupa seu relato do movimento autoprotetor da sociedade não em torno de interesses de classe, mas em torno das “substâncias sociais ameaçadas pelo mercado”. O mercado de trabalho competitivo atingiu o possuidor da força de trabalho, isto é, o homem; o livre comércio internacional se traduziu, basicamente, em uma ameaça ao maior empreendimento dependente dos recursos naturais, a agricultura; e o padrão-ouro ameaçou as organizações produtivas que dependiam do movimento relativo dos preços para seu funcionamento. O desenvolvimento e a expansão dos mercados em cada uma dessas áreas implicaram em ameaça latente para a sociedade em seus aspectos vitais. Dizer isso é defender a tese de que “as origens da catástrofe repousam na tentativa utópica do liberalismo em erguer um sistema de mercado autorregulado, uma instituição que não poderia existir sem aniquilar a substância humana e natural da sociedade”.
IHU On-Line - Que respostas e alternativas Polanyi oferece ao liberalismo econômico?
José Rubens Damas Garlipp - Podem ser traçadas as raízes do seu pensamento, como apontado, na necessidade de “subordinar deliberadamente a economia enquanto meio aos fins da comunidade humana”, destacando-se no desenvolvimento das ideias de Polanyi a preocupação com a liberdade, a celebração da cultura das pessoas comuns e a procura de um socialismo humano como única expressão verdadeira da democracia. Em outros termos, o socialismo constitui a tendência inerente a uma civilização industrial de transcender o mercado autorregulável, subordinando-o, conscientemente, a uma sociedade democrática e livre.
IHU On-Line - Quais são os fundamentos da riqueza capitalista, segundo Polanyi?
José Rubens Damas Garlipp - A análise de Polanyi busca sublinhar que é apenas na sociedade de mercado que o objetivo precípuo é o acúmulo de ganhos monetários, posto que, segundo sua investigação sobre formas pretéritas de organização econômica e social (economias não mercantis), o que se busca é a reprodução material da própria vida e não o lucro monetário. Seria apenas no sistema de mercado que o intercâmbio prevalece como a “forma de integração”, apenas assim o mercado se transforma em instituição específica responsável pela sociabilidade. Quando a atividade econômica é orientada para o lucro monetário, passa a seguir normas próprias, sua própria “racionalidade”.
Por conta disso, Polanyi critica o conceito de escassez, tão caro ao pensamento econômico clássico, para então apontar a diferenciação entre riqueza e valor. Conforme se consolida a Economia enquanto disciplina autônoma, progressivamente a noção de riqueza vai sendo abandonada e substituída pelas noções de valor e preço, uma vez que, em uma economia mercantil, a realidade do valor é que comanda as possibilidades de reprodução das riquezas. Uma sociedade de mercado é uma sociedade voltada para a acumulação dos valores de troca, o que explicaria o pensamento econômico clássico ter se enredado na confusão entre riqueza e valor: “a teoria econômica dos economistas clássicos era essencialmente confusa. O paralelismo entre riqueza e valor gerou os mais nefastos pseudoproblemas em quase todas as áreas da economia ricardiana”.
Uma confusão alimentada pela simultânea ambiguidade entre dinheiro (signo da riqueza) e riqueza. Isso se deve ao fato de o dinheiro ser condição de manutenção do nexo social instituído: a divisão mercantil do trabalho. Ao afirmar que é o valor que cresce com a escassez — e não a riqueza —, Polanyi ataca o dogma da escassez, e discorda de que o “princípio da escassez” seja o organizador da atividade econômica, com o que deve ser considerado pelo que é: um axioma do pensamento clássico e, em alguma medida, responsável por subverter a natureza da Economia enquanto ciência da riqueza social, com o propósito de enquadrá-la no rol das ciências naturais.
Em contraponto, para Polanyi, a subsistência do homem depende da natureza e de seus semelhantes, e o intercâmbio com seu meio natural e social se dá na medida em que isso resulta no provimento dos meios para atender sua necessidade material. É apenas na sociedade de mercado, historicamente datada, afirma Polanyi, que a economia “mudou de lugar” na sociedade e, com ela, o dinheiro torna-se motivo e objetivo da atividade dessa atividade, posto que passa a ser empregado para a aquisição de mais dinheiro, comprando o uso do trabalho no mercado de trabalho, de modo que “o princípio do ganho e do lucro” se estabelece como “força organizadora da sociedade”. Com efeito, Polanyi resgata a indagação de Marx sobre a natureza do capital, para apontar que “sob o atual sistema econômico, o capital é o fator dominante na vida econômica e que o fluxo de capital determina as condições de criação de riqueza”. [ver Christianity and Economic Life (sd), in: Karl Polanyi Archive, pp. 19-22].
IHU On-Line – Como Polanyi trata a ideia de autorregulação do mercado? Como ele sugere que o capitalismo e o mercado sejam regulados?
José Rubens Damas Garlipp - Ao enfatizar o caráter arbitrário das estruturas do mundo da produção e da distribuição de mercadorias, Polanyi demonstra ter claro que a ontologia do homo economicus é a expressão de um capitalismo emergente que demanda a instituição do econômico como instância distinta, dirigindo e determinando a vida social: “um mercado autorregulado exige, no mínimo, a separação institucional da sociedade em esferas econômica e política” e, no plano histórico, “a sociedade do século XIX revelou-se, de fato, um ponto de partida singular, no qual a atividade econômica foi isolada e imputada a uma motivação econômica distinta”.
A economia, em Polanyi, está assim referida ao paradigma do sistema de mercado, que é o que ele analisa criticamente, em contraposição a uma noção genérica e generalista de economia como toda e qualquer forma de organização da produção e distribuição de bens.
O conceito de mercado, igualmente, não é uma referência a formas variadas que assumem os mercados ao longo da história, mas uma demarcação clara a respeito do sistema de mercado ou economia de mercado: “é justamente esse sistema autorregulado de mercado o que queremos dizer com economia de mercado... uma economia dirigida pelos preços do mercado”, observa o autor. Trata-se, então, de algo historicamente datado, instauração dramática do paradigma do interesse próprio, do mercado autorregulado, cuja implantação se dá sob a égide das mercadorias fictícias: terra, trabalho e dinheiro.
É, pois, por meio do processo de mercantilização das mercadorias fictícias que as normas de funcionamento do mercado autorregulado submetem as condições de vida da sociedade a processos abstratos e impessoais, cujo mote e desiderato é o lucro. Daí sua afirmação de que a verdadeira crítica à sociedade de mercado não reside no fato dela se basear na economia — num certo sentido, toda e qualquer sociedade tem que se basear na economia —, mas que a sua economia se baseava no autointeresse. Dizer isso é dizer que “uma tal organização de vida econômica é inteiramente antinatural, no sentido estritamente empírico de excepcional”. Para Polanyi, uma sociedade verdadeiramente democrática requer uma economia planejada e orientada pela demanda social, em uma democracia ampliada.
A reincrustação da economia significa que ela deveria ser controlada pela sociedade, no sentido de subordiná-la deliberadamente enquanto meio aos fins da comunidade humana. Não se trata, certamente, de um retorno a formas primitivas de sociabilidade, mas sim a forma moderna, assentada na vida social moderna, diferenciada, aberta e dinâmica, por meio de instituições políticas conducentes à liberdade dos indivíduos, na medida em que sejam democraticamente instituídas. Em suma, controle social dos processos econômicos, com o intuito de preservar e desenvolver as liberdades modernas, em contraponto à limitação institucional forjada e instituída pelo sistema de mercado. Afinal, a democracia não pode sobreviver com um sistema de mercado, de sorte que conter o mercado é tarefa da política. Desdenhar isso é cortejar o fascismo, também uma resposta ao problema do mercado desenfreado, mas que, para tanto, leva a uma ruptura com a democracia.
IHU On-Line - Que contribuições as teorias econômicas de Polanyi poderiam dar para a reconstrução do pensamento econômico contemporâneo?
José Rubens Damas Garlipp - São inúmeras e registro, aqui, algumas que julgo irrecusáveis. Polanyi nos ensina que o mecanismo do mercado criou a ilusão do determinismo econômico como lei geral para toda a sociedade humana, quando a sua validade se circunscreve apenas à economia de mercado. Em sua leitura antropológica do mercado, Polanyi toma a economia como uma disciplina que, ao invés de ‘descrever’ o mercado autorregulado, na verdade o executa, na medida em que o produz por imposição, mais ou menos violenta, daquilo que ele deve ser. Nesse sentido, afirma que a ciência econômica não descobre as leis da natureza social, e sim oferece uma interpretação em que se baseiam suas prescrições: “é o mito da conspiração antiliberal que, sob uma ou outra forma, é comum a todas as interpretações, de 1870 a 1890... É assim que a doutrina liberal hipostasia o funcionamento de alguma lei dialética da sociedade moderna que torna vãos os esforços do pensamento esclarecido, ao passo que, em sua visão grosseira, ela se reduz a um ataque contra a democracia política, suposta como o principal reduto do intervencionismo. O testemunho dos fatos contradiz decisivamente a tese liberal. A conspiração antiliberal é pura invenção. A variedade das formas tomadas pelo contramovimento ‘coletivista’ não é devida a alguma preferência pelo socialismo ou pelo nacionalismo de parte dos interesses implicados, mas exclusivamente ao registro mais amplo dos interesses sociais vitais atingidos pelo mecanismo de mercado em expansão”. Ele ainda nos mostra que a doutrina clássica não reconhecia a importância constitutiva da moeda junto ao estabelecimento da nação como unidade decisiva: “o ponto cego da mentalidade de mercado era igualmente insensível aos fenômenos da nação e do dinheiro”.
Em sua crítica à teoria econômica clássica, afirma que ela ignorou em vão a diferença de status existente entre os vários países, segundo a sua diferente capacidade de produzir riquezas, não reconhecendo que a unidade da sociedade se afirmou por intermédio da intervenção política suplementando a autorregulação imperfeita do mercado, inclusive do ponto de vista internacional. Não poderia ser diferente, posto que a autorregulação não só não foi capaz de evitar o colapso do sistema econômico internacional como, ao contrário, conduziu à crise, deflagrada a partir da primazia da moeda — que aparece como pivô da política nacional — e da estabilidade do dinheiro como necessidade suprema da sociedade. Ao registrar a insensibilidade ao ponto cego da mentalidade de mercado, o autor estabelece uma crítica de fundo à pretensa universalidade da economia, tal como advogada pela teoria clássica.
Com efeito, as contribuições de Polanyi abarcam várias dimensões, posto que apontam para a necessidade de uma concepção mais ampla do comportamento humano, que supere a estreita definição do "homo economicus" como ser autônomo, racional e maximizador da utilidade, considerado a margem de questões-chave que moldam a psicologia econômica das pessoas como o instinto, os hábitos, o gênero, ou a condição social. Também nos auxilia a reconhecer a importância da cultura — integrada por todo um conjunto de instituições e sistemas de valores sociais, políticos e morais — como raiz dos fenômenos sociais, nas quais encontram-se as atividades econômicas. Para Polanyi, não há análise consequente dos processos econômicos sem recurso à história. Uma vez que a realidade econômica e social é dinâmica, a análise histórica deve constituir um instrumento fundamental na metodologia da ciência econômica. Enfim, Polanyi contribui igualmente para que reconheçamos a importância da ampliação dos métodos de análise como requisito para avançar na compreensão dos fenômenos econômicos e sociais, recorrendo ao diálogo interdisciplinar.
IHU On-Line - Na sua tese de doutorado, o senhor busca identificar como o desaparecimento das regras e das fronteiras deixa o capital entregue às suas próprias leis de movimento. Pode nos explicar essa ideia, isto é, como o capitalismo tem operado, que regras e fronteiras deixaram de controlá-lo e quais são as consequências disso?
José Rubens Damas Garlipp - Com o intuito de apanhar o substrato do capitalismo contemporâneo, proponho que um quadro aproximativo pode ser desenhado por meio do conceito de economia desregrada, emoldurado pelos desdobramentos de duas ‘revoluções’, a da tecnologia da informação e a dos mercados financeiros, cuja interação dinâmica responde pelos contornos da “mundialização” do capital e dos mercados. O argumento explorado é o de que a construção de circuitos internacionais produtivos e, principalmente, financeiros de valorização do capital responde pelo desmantelamento do ‘padrão’ global de desenvolvimento herdado do pós-guerra. Assim é que a financeirização da riqueza, exponenciada pelas inovações dos instrumentos financeiros e desregulação dos mercados que caracterizam as políticas econômicas ocidentais das últimas décadas, ao tempo em que preside a lógica de valorização do capital, não faz mais que tornar claro o objetivo precípuo do capitalismo: a expansão da riqueza abstrata. A significativa estruturação de redes interempresariais favorece a concentração da concorrência mundial em um número cada vez mais reduzido de grupos empresariais.
A expansão das transnacionais não ocorre nos moldes anteriores, mas por acordos e alianças que privilegiam, sob o ponto de vista tecnológico, antes o domínio sobre ativos estratégicos que o controle sobre produtos específicos. As empresas têm recorrido a novas combinações entre investimentos internacionais, comércio e cooperação internacional para assegurarem sua expansão internacional e racionalizar suas operações. Desse modo, as estratégias internacionais do passado, fundadas principalmente sobre as exportações, ou as estratégias multidomésticas, assentadas sobre a produção e venda ao exterior, dão lugar a novas estratégias que combinam toda uma gama de atividades transfronteiras: exportações e aprovisionamentos ao estrangeiro, investimentos externos e alianças internacionais.
Nesse sentido é que as novas estratégias diluem fronteiras entre indústrias e setores, tal como demonstram a ampliação de serviços e o processo de terceirização, alterando o escopo da competição internacional, de mercados nacionais segmentados para níveis mais amplos de competitividade. Com o crescimento do grau de interpenetração entre capitais de diferentes nacionalidades, o investimento internacional ‘cruzado’ e os movimentos de fusões e aquisições transfronteiras engendram uma estrutura de oferta mais concentrada a nível mundial. Dizer isso é dizer que, sob a nova fase da internacionalização do capital, emergem “oligopólios mundiais” que delimitam entre si o espaço da concorrência, cada vez mais protegido contra a entrada de novos concorrentes tanto no tocante a barreiras à entrada do tipo industrial quanto barreiras comerciais. Ao impulsionarem a mundialização, é preciso notar, as novas tecnologias também geram reações, expressas na emergência de blocos regionais. De sua parte, mas não à parte, a esfera financeira representa, sem dúvida, a ponta avançada do movimento de mundialização do capital, em que as operações atingem o grau mais elevado de mobilidade. Não é por menos que o investimento externo direto do setor financeiro responde por uma maior interpenetração patrimonial nas economias capitalistas. Com isso, acentua-se o caráter financeiro dos grupos industriais e tem lugar uma lógica financeira do capital investido, inclusive na manufatura e em serviços.
Desde o início dos anos 1980, a imbricação entre as dimensões produtiva e financeira da mundialização se manifesta sob novas formas. Ela se expressa pelos mecanismos novos e variados que as instituições financeiras colocam à disposição dos grupos para suas operações internacionais de aquisições e de fusões. Na medida em que avança a desintermediação financeira, os grandes grupos passam a colocar os títulos diretamente nos mercados financeiros internacionais e, desde o início dos anos 1990, tem lugar um notável crescimento da importância das operações puramente financeiras dos grandes conglomerados transnacionais, crescentemente financeirizados.
A desregulação — ou liberalização monetária e financeira —, a desintermediação e a descompartimentação dos mercados financeiros agem de forma interativa, constituindo as bases da transformação do regime monetário-financeiro internacional. Uma importante consequência está na crescente asfixia imposta aos Estados nacionais em sua capacidade de manejar políticas domésticas, ainda que continue sendo requerido para acordar as novas formas de convivência e o ordenamento societário interno às fronteiras, bem como o poder disciplinador do trabalho e da interveniência nos fluxos de mercados financeiros.
IHU On-Line - Que regras poderiam ser estipuladas para regular o capitalismo hoje?
José Rubens Damas Garlipp - Em minha tese discuto as diferentes propostas de reordenamento da arquitetura financeira internacional, centro nevrálgico do sistema. Na medida em que as operações financeiras fogem de qualquer controle, o risco sistêmico torna-se mais elevado, como bem o demonstram os mercados derivativos livres, cuja ‘exuberância irracional’ não faz mais que traduzir a racionalidade própria da lógica especulativa de valorização do capital, mais que demonstrada na crise de 2007-2008. E, uma vez que os mercados não têm capacidade de autorregulação, fazem-se necessários o controle e a regulação de caráter público sobre os mercados financeiros. Nesse sentido, discuto as propostas segundo sua orientação maior, qual seja, aquelas orientadas pelos mesmos princípios (autorregulação) e aquelas orientadas por novos princípios. Chego a apontar os vetores que a instituição de uma nova arquitetura financeira internacional poderia comportar, não sem antes destacar a presença de importantes constrangimentos impostos por uma realidade marcada pela supremacia das finanças liberalizadas e desreguladas.
Primeiro e mais geral, o inescapável paradoxo estabelecido pela liberalização das finanças depois de Bretton Woods: a dimensão gigantesca assumida pelos mercados de capitais mundialmente integrados em contraste com o caráter nacional das instituições reguladoras (exceto as instituições multilaterais – Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e BIS [Banco de Compensações Internacionais]) e seu porte e capacidade de intervenção limitados.
Segundo, as discussões acerca das questões-chave em torno do regime monetário encontram-se circunscritas aos interesses das economias do núcleo orgânico capitalista e, em toda e qualquer definição com vistas ao reordenamento do sistema monetário-financeiro internacional, não há como desconsiderar uma realidade concreta composta de diferentes visões políticas de cada uma das economias e ou blocos econômicos.
Terceiro, trata-se de uma ‘mundialização’ financeira hierarquizada a partir do sistema financeiro americano.
Quarto, ainda que os organismos multilaterias reconheçam as profundas mudanças na dinâmica financeira internacional, reorientando e ou qualificando suas propostas de prevenção e resolução das crises financeiras, a bem da verdade busca-se evitar medidas de maior alcance, tais como o controle dos movimentos de capitais e a organização de um credor de última instância mundial.
Quinto, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, em conjunto com o Banco de Compensações Internacionais - BIS, mantêm-se como o principal locus de elaboração de proposições para reordenar a arquitetura do sistema financeiro internacional, as quais passam antes pelo mercado, e não por um fortalecimento de instâncias efetivamente supranacionais. Sexto, como desdobramento do anterior, na discussão mais ampla em torno do reordenamento monetário-financeiro internacional, levada a cabo pelas instituições multilaterais, a problemática dos países ‘em desenvolvimento’ segue sendo tratada a partir da concepção predominante, isto é, se enfatiza a política econômica ortodoxa e orientada para o mercado, na esteira da proclamada austeridade.
IHU On-Line - Outro ponto da sua tese consiste no mapeamento das falhas estruturais do sistema erigido em Bretton Woods. Quais são as falhas desse sistema? Pode nos dar alguns exemplos dessas falhas?
José Rubens Damas Garlipp - Em uma quadra histórica marcada pelos destroços da Segunda Guerra Mundial, Bretton Woods confere aos Estados Unidos a possibilidade de impor uma ordem monetária mundial que fosse a projeção da sua concepção sobre as futuras relações entre as nações, especialmente com a Europa e o Japão. É erigido como ‘sistema de equilíbrio’, congelando a relação de forças políticas e econômicas para manter as demais nações como caudatárias dos interesses dos Estados Unidos, já a caminho de consolidar sua hegemonia. Os princípios e regras estabelecidos abarcam duas ordens de preocupações: a definição do padrão monetário internacional; e a questão do equilíbrio internacional e políticas de ajustes dos balanços de pagamentos.
Ao institucionalizar um padrão monetário assentado no padrão dólar-ouro, Bretton Woods consolida, no plano monetário-financeiro, a hegemonia dos Estados Unidos, e contribui para acentuar contradições que, posteriormente, levariam à crise do sistema monetário internacional. A contradição insuperável de Bretton Woods se revela na exata medida em que se trata de um sistema monetário internacional baseado em uma moeda nacional, com o dólar no papel de moeda nacional e meio de pagamento e ativo de reservas internacionais, o que leva à transferência de reservas líquidas dos Estados Unidos para o resto do mundo, à posterior desconfiança em relação ao dólar e à consequente aceleração dos fluxos internacionais de divisas.
Neste múltiplo papel, o dólar acentua ainda uma segunda assimetria básica do sistema: em contraste com outras economias, a norte-americana não poderia desvalorizar o dólar em relação às outras moedas para incrementar sua posição comercial e de balanço de pagamentos, posto que qualquer desvalorização do dólar buscando aumentar a posição competitiva por parte dos Estados Unidos poderia imediatamente ser eliminada por desvalorizações paralelas de outras moedas. Do contrário, o conflito político latente, próprio de um sistema monetário internacional baseado em taxas de câmbio fixas, logo se expressaria em todo o seu vigor.
A conversibilidade-ouro do dólar amarra logicamente o sistema, ao submeter as reservas oficiais em dólares à confiança dos bancos centrais que as detinham. O leit motiv de Bretton Woods reside, justamente, na regulação do montante global e da repartição das reservas oficiais. O sistema convive com a ambiguidade da superposição de procedimentos discricionários dos ajustes de balanço de pagamentos e a tentativa de manter o automatismo financeiro da época precedente à Primeira Guerra Mundial. Em decorrência, as taxas de câmbio adquirem uma rigidez excessiva e o sistema desaba em uma armadilha mortal para uma organização monetária internacional fundada sobre alto grau de institucionalização, pois não prevê nenhum tipo de mecanismo ou dispositivo para criar uma oferta de liquidez internacional.
Assim, uma das fragilidades mais acentuadas dos dispositivos de Bretton Woods é que eles deixaram de fornecer explicitamente meios sistemáticos pelos quais as reservas mundiais pudessem aumentar com o comércio e com a economia mundiais. Em lugar dessa sistematização, ocorrem práticas ad hoc — débeis, do ponto de vista estrutural — que levam os déficits dos Estados Unidos a assumirem o papel, não especificado no Acordo, de banco central do sistema internacional, com todas as consequências daí advindas.
Em que pese perseguir a elaboração de novas regras de funcionamento da economia mundial reconstituída e a criação das instituições econômicas internacionais — encarregadas de assegurar a sua vigência e capazes de reduzir tensões políticas e sociais —, e com isso procurar evitar os erros do Tratado de Versalhes (desordens monetárias, instrumentos ociosos e riqueza mal empregada, que geraram o fascismo e a Guerra), Bretton Woods se revela um sistema assimétrico e contraditório, eivado de tensões disruptivas.
Nesse sentido, ainda que os trinta anos de forte crescimento na economia do pós-guerra, de 1946 a 1975, tenham sido vistos como uma afirmação, posto que combinavam o capitalismo igualitário e a democracia restaurada, e ainda que tenham contribuído para reiniciar o comércio, criando condições para cada nação-membro administrar suas economias de pleno emprego, vale a observação de Polanyi, que considerou o sistema como uma extensão da influência do capital.
IHU On-Line - Como avalia a iniciativa da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia - ABED?
José Rubens Damas Garlipp - Em tempos de interdição do debate, assume especial relevância a criação da ABED. Trata-se de um esforço coletivo, de abrangência nacional, que conclama economistas profissionais afins e estudantes de Economia a se engajarem na luta por uma nação mais igual, justa e democrática, resgatando o debate econômico em sua pluralidade, em prol de um projeto de desenvolvimento nacional popular inclusivo, dinâmico e sustentável.
IHU On-Line - Que alternativas econômicas existem ao atual regime fiscal sugerido pelo governo Bolsonaro?
José Rubens Damas Garlipp - Atravessamos uma quadra histórica, mundo afora, marcada pela desintegração dos “padrões” acordados de relacionamento social, pelo desmantelamento dos mecanismos de sociabilidade e proteção social e esvaziamento da cidadania. Trata-se do resultado último de uma franca submissão dos governos às políticas de austeridade, tomadas como capazes de superar a crise econômica, retomar o crescimento econômico e a prosperidade.
No Brasil, a diferença é que os donos do poder, seus asseclas e os crédulos seguem surdos e cegos quanto à incapacidade das políticas de austeridade cumprirem o prometido, em franco desprezo ou desconhecimento acerca das experiências internacionais que conduziram países ao caos social e político [1]. A crise brasileira, também ela, não é apenas econômica. É multifacética: econômica (recessão, baixa taxa de investimento, alto desemprego); política (deslegitimação do mundo da política em geral — e não apenas da política partidária); e institucional (estresse entre as esferas de poder, judicialização da vida e ativismo judicial), para citar suas expressões mais claras. Crise que também não será superada, sequer em sua dimensão econômica, via aprofundamento das políticas de austeridade, tão caras à ortodoxia, como as que o governo (desde Temer e agora com Bolsonaro) se empenha em promover e anunciar como antídoto para a superação da crise e retomada do crescimento econômico — quando, em verdade, tais políticas são o próprio veneno a espraiar-se pelas artérias da sociedade.
É nesse contexto que devem ser apreciados os perversos efeitos e desdobramentos: a) da recente ampliação (de 20% para 30%) da desvinculação de recursos constitucionais assegurados ao gasto social; b) da aprovação da Lei do Teto de Gastos, que estabelece, para os próximos vinte anos, severo limite aos gastos públicos primários (todas as despesas, exceto as financeiras); e c) as Reformas Trabalhista, da Previdência e Tributária; além de outras medidas que se articulam ao pretendido “Novo Regime Fiscal”.
A Reforma Trabalhista conduz a uma ainda mais grave terceirização do trabalho, ao incluir as atividades-fim e a prevalência de negociações sobre o disposto na CLT. A redução de custos parece prevalecer sobre a necessidade de incorporar a parcela da força de trabalho submetida à precarização, hoje 1/3 dos empregos formais, não bastasse o expressivo contingente de trabalhadores sob o manto da informalidade. A Reforma da Previdência não se propõe a provisionar o sistema de recursos mediante taxação de setores historicamente desonerados e a cumprir o objetivo de universalização. Sob o pretexto de se ajustar às tendências demográficas, a Reforma contém premissas equivocadas e é manifestamente excludente, na medida em que impõe restrições de direitos básicos. Da Reforma Tributária, em tempos de consolidação fiscal, não é de se esperar mudanças substantivas, e sim a preservação ou mesmo exacerbação da sua natureza injusta e desigual, posto que não há interesse em corrigir o seu caráter regressivo e concentrador de renda e riqueza.
A propósito, a Reforma Tributária pode ser uma alternativa à Reforma da Previdência, como mostra o estudo coordenado pelo Professor Eduardo Fagnani (Unicamp), demonstrando como mudanças no atual sistema tributário podem aumentar mais a receita do governo federal do que o que se pretende alcançar com a proposta da Reforma Previdenciária, mas cuja orientação vai no sentido de taxar renda e transações financeiras, bem como diminuir a tributação de impostos sobre bens e serviços. Mas isso requer disposição do governo em submeter as propostas de Reformas ao crivo do debate com a sociedade, o que não tem ocorrido, em aberto rechaço ao suplemento democrático. São anunciadas como medidas indesviáveis para se ajustar aos ‘novos tempos’, mas que ao cabo carregam em seu substrato uma ideia muito particular da democracia, que, sob muitos aspectos, deriva de um antidemocratismo, com veladas pretensões de se livrar do povo e da política. Um tipo de política que sempre se apoiou na ideia de que é necessário diminuir o gasto público, inclusive enquadrando seu crescimento em regras constitucionais (como no caso da Lei do Teto de Gastos e seus desastrosos cortes na Saúde, Educação, Defesa, Polícia Federal, Cultura, Relações Exteriores, Ciência e Tecnologia, ademais o engessamento da política fiscal); transferir as empresas e as responsabilidades públicas para o setor privado e restringir a proteção social.
É justamente por meio da crescente desoneração das responsabilidades do Estado que se incentiva a criação de instituições que não são Estado, são fomentadas as privatizações e concessões de serviços públicos e se abre mão de setores e ativos nacionais estratégicos. São despolitizados os assuntos públicos e é declarada a guerra ao ainda tímido Estado Social brasileiro, cuja pretensa liquidação não deve ser, enganosamente, tomada como o recuo ou o ocaso do Estado. Trata-se de uma redistribuição, entre a lógica capitalista e a gestão estatal, de instituições e funcionamentos que se interponham entre as duas. Reverter o que está em curso, essa a condição inescapável - ainda que insuficiente - para que o Brasil volte a ser uma nação e tenha um projeto de desenvolvimento econômico, mas também político, social, cultural e ambiental.
O desafio é de dupla ordem: (a) sem crescimento não há desenvolvimento; (b) crescimento sem transformação social não conduz ao desenvolvimento — pode, até mesmo, aprofundar a já exorbitante e histórica concentração de renda e riqueza. Deter o processo de desindustrialização a que o país está submetido passa pelo reconhecimento das bem-sucedidas experiências históricas (Alemanha, Japão, EUA, China, Coreia, por exemplo), as quais evidenciam a importância da ação do Estado para a constituição de um sistema nacional de inovação, particularmente nesses tempos de indústria 4.0.
Isso significa, em lugar de políticas de austeridade, outras políticas, comprometidas com educação, ciência e tecnologia, P&D e inovação, mas articuladas e suportadas por adequadas modalidades de financiamento. Somente com clara determinação em superar a atual inserção externa subordinada e dependente é que se pode vislumbrar resultados promissores em termos de políticas comerciais, bem como um reposicionamento menos desfavorável nas cadeias produtivas globais e na divisão internacional do trabalho.
Políticas de fomento à indústria de base, ao agronegócio e agricultura familiar sustentáveis, construção civil e infraestrutura, com elevação do gasto público que fomente o investimento privado e deflagre efeitos multiplicadores que resultam em recuperação de receita fiscal pelo crescimento econômico.
Políticas e ações, setoriais e subsetoriais, capazes de despertar o potencial de inovação e crescimento, informadas por uma visão estratégica de longo prazo, a mesma a orientar as políticas macroeconômicas de curto prazo, que almejem câmbio competitivo e estável, para frear o desmantelamento da produção e dos empregos; compatível taxa real de juros, com vistas a diminuir a punção de recursos via dívida pública; crédito (público e privado) acessível, para incentivar o investimento e ampliar a propensão a consumir; e política fiscal com efeitos distributivos. É necessária profunda mudança de orientação do sistema tributário, com vistas a reverter a sua natureza injusta e desigual e corrigir seu caráter regressivo e concentrador de renda.
Por seu turno, os gastos públicos são fundamentais para a ampliação da oferta de bens e serviços públicos, via transferência de renda, para se buscar a redução da desigualdade social e, por decorrência, o crescimento da atividade econômica. Soma-se aos desafios a certeza de que os donos do poder resistem à mudança e propõem o retrocesso, ainda que revestido e apresentado como o novo.
Daí a relevância de efetiva pressão da sociedade, para se fazer ouvida, considerada em suas demandas e propostas, para fazer frente ao aprofundamento das políticas de austeridade, e evitar o retrocesso da verdadeira interdição do caminho pactuado — e ainda a ser desbravado — na Constituição Federal de 1988 em direção a uma sociedade mais igual, justa e democrática.
IHU On-Line - O papa Francisco tem defendido em seus pronunciamentos que é preciso pensar uma nova economia. Em 2015, no Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, disse que é preciso dizer "não a uma economia de exclusão e desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir". Nesta semana, o papa disse que os jovens economistas precisam "estudar e praticar uma economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a depreda". Como o senhor avalia o discurso do papa acerca da economia?
José Rubens Damas Garlipp - Um discurso crítico, certamente, e que recorre aos fundamentos comunitários do cristianismo para execrar o individualismo exacerbado que marca a atualidade desumanizada e fetichista, essa mesma realidade que idolatra o dinheiro na exata medida em que se espraia a mercantilização de todas as esferas da vida. Nesse sentido, e não por menos, avalia criticamente o capitalismo autorreferencial, cuja organização econômica da sociedade mostra-se excludente e promotora da desigualdade, no mesmo diapasão em que, enaltecendo o auri sacra fames, esvazia a dignidade humana.
[1] David Stuckler e Sanjay Basu, em A Economia Desumana: porque mata a austeridade. Lisboa: Editorial Bizâncio, 2014, apoiados em centenas de estudos, trazem as evidências, histórias reais de vidas humanas perdidas em virtude de escolhas econômicas desumanas. (Nota do entrevistado)