E se a retirada de direitos dos trabalhadores, sob a justificativa de sustentabilidade da Previdência, fosse tão somente uma cortina de fumaça para a manutenção do projeto de transferência de renda para os mais ricos? A questão que abre o texto bem poderia ser tomada como uma espécie de teoria conspiratória se a realidade macroeconômica não fosse tomada em contexto. “O que me dá profunda irritação é este argumento de que sem a reforma da Previdência o país quebra. Isso é de um primarismo, algo quase rudimentar, por várias razões”, assevera Eduardo Fagnani, em entrevista por telefone à IHU On-Line.
O ponto central é que a reforma da Previdência precisa, necessariamente, ser vista em perspectiva com outras duas reformas: a trabalhista, que ocorreu no governo passado, e a tributária, que deve ser encaminhada ao congresso ainda em março. “A reforma tributária que devemos fazer, diz o governo, tem que ser aquela que reduza a carga tributária de 33% do PIB para cerca de 25% ou 27%. Há alguns balões de ensaio sobre a desoneração das pessoas jurídicas e outras coisas nessa linha. Não se pode esperar nada da reforma tributária, porque o objetivo é reduzir a carga, e a variável do ajuste é a seguridade social, que gasta 12% do PIB, que poderia ser reduzida para algo em torno de 6% ou 8%”, explica o economista.
Trocando em miúdos, a opção política do atual governo é reduzir os direitos sociais das camadas mais empobrecidas para reduzir a carga tributária dos grandes empresários e manter a política de isenção fiscal intacta. “Se somarmos R$ 400 bilhões de isenções fiscais, R$ 400 bilhões de juros e 500 bilhões de sonegação, temos R$ 1,3 trilhão todo ano, são mais de 13 anos de economia com a reforma da Previdência”, pondera. “Claro, não dá para cortar tudo de uma vez, mas se o governo propuser cortar 30% desse R$ 1,3 trilhão, são cerca de R$ 400 bilhões por ano. Se cortar um terço desse programa extraordinário de distribuição de renda para os ricos, daria um montante de aproximadamento R$ 400 bilhões por ano, equivalente a quatro anos de economia da reforma da Previdência”, complementa.
No horizonte político do Brasil, a justiça social, um dia sonhada pela Constituição de 1988, não passa de uma famigerada miragem no deserto da desigualdade social, onde as poucas conquistas cedem espaço à liberalização total da pauta econômica. “Este é o projeto que vamos ter para o país, um avanço enorme do seguro social em contraposição à seguridade social, um sistema trabalhista precário e com bastante insegurança, capaz de financiar uma Previdência Social também precária. Tudo isso para poder viabilizar uma redução da carga tributária, que é o projeto liberal para o Brasil, o que, em última instância, acaba com os avanços de 1988”, frisa.
Eduardo Fagnani (Foto: Agência Senado)
Eduardo Fagnani é graduado em Economia pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Ciência Política e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Atualmente leciona no Instituto de Economia da Unicamp, coordena a rede Plataforma Política Social e é pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho - Cesit. Fagnani é um dos autores de A reforma tributária necessária. Diagnóstico e premissas.
IHU On-Line – O que se pode dizer sobre os pontos mais polêmicos do projeto de reforma da Previdência protocolado na última semana no Congresso Nacional?
Eduardo Fagnani – O que posso dizer é que ele se coloca como um projeto que promoveria a justiça social, mas do meu ponto de vista esse projeto é mais injusto que a proposta do Temer.
IHU On-Line – Por que ele é mais injusto?
Eduardo Fagnani – Porque ele coloca muitas barreiras para que uma pessoa alcance os benefícios do INSS. Nesta questão, que atinge o grosso da população brasileira, são mais de 35 milhões de beneficiados diretos, incluindo assistência social, e considerando mais dois membros por família, o que significa 100 milhões de pessoas que ganham em média R$ 1,5 mil. Observe-se que cerca de 70% da economia estimada com a reforma incide sobre o INSS. Para essa população, a reforma coloca barreiras intransponíveis. Uma das questões de fundo que temos é que com esse projeto estamos transitando da seguridade social para o assistencialismo. A outra questão é que estamos transitando da seguridade social, que é um pacto da sociedade, para um sistema de capitalização social, de caráter individualista.
O Brasil que eu vejo daqui a 30 anos é um país onde o servidor público vai estar no sistema de capitalização, que já existe, o pessoal do regime geral também vai estar no regime de capitalização, que será criado, e a grande massa da população estará num sistema assistencial barato no sentido de que é precário e custa pouco. Então, é um sistema que exclui a população da Previdência, porque elas não irão conseguir comprovar as regras que estão sendo exigidas e vão pressionar a assistência social.
Então, o que está sendo feito? Eles colocam uma proteção, uma barreira, que consiste em baixar o benefício assistencial para R$ 400,00. Esse é o projeto. Tudo passa a ser definido por regulamentação complementar ou por atos do próprio Executivo, e não por uma regra, por exemplo, de reajuste do repasse. Então, esses R$ 400,00 podem ficar congelados durante três, quatro ou cinco anos, e com a inflação o poder de compra vai sendo reduzido. Desse ponto de vista, é uma reforma extremamente cruel e excludente.
IHU On-Line – Por que o senhor qualifica essa mudança nas regras previdenciárias como “extremamente excludente”?
Eduardo Fagnani – Essa reforma é extremamente excludente, por quê? De novo, estou falando do regime geral, que é o que mais me preocupa. Primeiro, porque praticamente elimina a possibilidade de uma pessoa ter aposentadoria integral. Talvez uma parcela muito pequena da população, entre 5% e 10%, terá direito ao benefício integral, por quê? Porque a reforma estipula a idade mínima de 65 anos de idade para homem, 62 para mulher e 40 anos de contribuição, e a esmagadora maioria da população, cerca de 90%, não vai conseguir atingir 40 anos de contribuição.
Segundo ponto importante: vai definir a idade de 65 anos para homens e 62 anos para mulheres, mas tem um mecanismo que está na PEC e que é um “gatilho de idade”, isto é, sempre que a expectativa de sobrevida do idoso aos 65 anos subir um ponto pela estimativa do IBGE, a idade subirá um ponto. Com isso, já se prevê que daqui a quatro anos o teto será de 66 anos para homem e 63 anos para mulher e isso irá mudando, ou seja, daqui a quatro anos irá para 66, daqui a 14 anos vai para 67.
O terceiro aspecto importante é que para ter aposentadoria parcial o indivíduo terá que contribuir 20 anos. Estudos mostram que, antes da reforma trabalhista, cerca de 35% a 40% dos contribuintes não conseguiam contribuir por mais de 20 anos, assim, o texto já exclui mais 40% da população.
Além disso, tem a regra de transição, que tem três opções – são todas ruins –, mas a mais importante é a questão dos pontos. Antes se tinha o fator previdenciário em que a pessoa tinha que contar 95 anos para o homem e 85 anos para a mulher. Em 2015 o governo criou o fator previdenciário móvel, que sobe um ponto a cada dois anos, então hoje a regra está 96/86, de modo que a partir de 2026 chegaríamos à proporção 100/90. Assim o homem para se aposentar teria que ter 65 anos de idade e 35 anos de contribuição, que já é um padrão europeu. Já está resolvida essa questão das aposentadorias por tempo de contribuição que são precoces.
O que o governo faz? A regra de transição é muito curta com 10, 12 anos. Assim, essa proporção 100/90, em vez de chegar em 2027, já vai chegar em 2023 e vai continuar a subir todos os anos até chegar a 105/100, a partir de 2031. Ou seja, um homem para se aposentar tem que ter 70 anos de idade e 35 anos de contribuição para ter direito à aposentadoria integral, e a mulher passa de 85 para 100, aumentando em 15 anos o tempo para as mulheres. Também são regras muito exigentes, quase ninguém conseguiria alcançar isso porque é como uma corrida de obstáculos: todo ano aumenta a idade e todo ano aumenta a contribuição, hoje é de 15 anos e vai passar para 20 e seguirá subindo, assim como a idade. Daqui a quatro anos é provável que se tenha mais um ano na idade (crescimento da expectativa de sobrevida dos idosos); quando está prestes a se aposentar, tem uma outra regra que torna mais difícil.
Depois temos a questão da Previdência Rural, que muda a idade da mulher. Hoje, para o trabalhador rural a idade mínima é de 60 anos e para a trabalhadora rural é de 55 anos; com o projeto a idade da mulher passa para 60 anos, igualando homens e mulheres. Qual é a diferença? Que hoje a agricultura familiar contribui com 1,5% sobre a sua produção e não tem, necessariamente, que comprovar 15 anos de contribuição, só é preciso comprovar 15 anos de atividade na agricultura familiar; agora passa a 20 anos de contribuição. Deste modo, além da contribuição sobre a produção, ele tem que pagar pelo menos R$ 600,00 por ano. Dada a peculiaridade da agricultura familiar, é muito complicado conseguir comprovar 20 anos de contribuição.
Também tem a questão da aposentadoria por invalidez. Está sendo criada a aposentadoria por invalidez de duas categorias: de primeira e de segunda classe. A invalidez de primeira classe é a que o segurado tem um acidente de trabalho e fica inválido; nesse cenário terá direito a 100% (proporcional) da média das contribuições. Mas se tiver um acidente que torne o segurado inválido no trânsito ou na sua casa, por exemplo, o beneficiário terá direito a 65% da média das contribuições; é outro rebaixamento.
Além disso, as pensões também têm primeira e segunda classe. Se a pessoa morreu no trabalho é uma coisa, se morreu em casa ou em outro local, é outra coisa. Em geral, reduz para 60% a média de contribuição que o cidadão fez ao longo da vida. Tem um outro rebaixamento aí. Há um outro escalonamento, por “faixa de renda”, de que quem ganha até três salários mínimos, por exemplo, tem uma reposição de cerca de 50%. Por exemplo, tem um aposentado que continua trabalhando, recebendo R$ 3 mil por mês, sendo R$ 1,5 mil de aposentadoria e R$ 1,5 mil de salário, se o marido morre, nessa família com dois filhos, o dependente terá uma aposentadoria que, ao invés de ser 100% da pensão, será 40%, e como essa mulher fará para sobreviver?
Esse conjunto de restrições, que impacta os mais pobres — estou falando só do regime geral — vai conduzir a seguridade social para o assistencialismo, para a Assistência Social, e aí o que eles pagam? R$ 400,00. Como uma pessoa com 65 anos, de baixa renda, porque não conseguiu comprovar as contribuições para a Previdência, pode viver com esse salário? Atualmente, o benefício é um salário mínimo.
IHU On-Line – Qual vai ser o impacto na alteração dos critérios de admissibilidade do Benefício de Prestação Continuada - BPC?
Eduardo Fagnani – É disso que estou falando: deixa de ser seguridade e passa a ser assistencialismo. O critério hoje abrange pessoas deficientes ou que têm renda per capita de até um quarto de salário mínimo, que tenham 65 anos e nessa idade têm direito a um salário mínimo. Como que vai ser? Eles dão esses R$ 400,00 desde que a pessoa tenha 60 anos, e o benefício só alcança um salário mínimo quando a pessoa tiver 70 anos. O problema é que são pessoas extremamente vulneráveis, desassistidas, que dificilmente chegam aos 70 anos e, se chegarem, terão uma sobrevida muito curta.
A tendência é empurrar uma massa enorme da Previdência para a Assistência, é uma política que rebaixa o valor do benefício. Com essa transição da seguridade para a assistência, que estou chamando a atenção, prevejo que daqui a 20 ou 30 anos teremos uma inversão no que tínhamos há poucos anos. Hoje, 82% dos idosos têm, pelo menos, como fonte de renda, a Previdência e a Assistência Social, mas o que acontecerá no futuro? Não será mais isso, porque no mercado de trabalho hoje já temos 50% da força de trabalho na informalidade. Portanto, ou não contribuem ou contribuem de forma tópica, não é sistemática, e dificilmente haverá condições de acumular 20 anos de contribuição para ter a aposentadoria parcial, que é 60%. Quando os efeitos da reforma trabalhista se fizerem sentir com toda a sua intensidade um percentual maior de trabalhadores será alijado.
A reforma trabalhista, entrando em vigor com toda a força, o que vai fazer? Embora ela diga que são atividades formais — ela deixa tudo como se fosse formal, legal —, são modalidades precárias. Por exemplo, no caso do trabalho por hora — intermitente —, uma pessoa que trabalha 30 horas numa semana, mais 20 horas na outra, mais 15 horas na outra, alguém acha que ela terá condições de acumular 20 anos de contribuição para a Previdência? Se pegarmos uma pessoa que é contratada por trabalho temporário para o Natal, ela vai trabalhar nos meses de novembro e dezembro, em janeiro é demitida e vai ficar quatro ou cinco meses desempregada. E assim alguém acha que irá conseguir acumular todas as contribuições? O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - Dieese tem um estudo interessante que mostra, antes da reforma trabalhista, que em função da rotatividade do trabalho, em média, o trabalhador, num período de 12 meses, contribui nove meses. O fato é: antes da reforma trabalhista, em função da rotatividade do trabalho, um trabalhador médio, num período de 12 meses, contribuiu durante nove meses. Essa conta se fazia antes da reforma do Temer, que eram 25 anos de contribuição.
O que quero destacar é que já se tem 50% de pessoas que estão na informalidade ou no trabalho precário e isso tende a aumentar com a reforma trabalhista, pois cerca de 60% (ou mais) da força de trabalho deve estar nessas condições. Essas pessoas já vão ter muita dificuldade para comprovar os 20 anos, de modo que temos ainda uma massa de pessoas que serão excluídas por conta dessa reforma. Então, creio que daqui a 20 ou 30 anos cerca de 30% da população será coberta pela Previdência. Vamos sair de uma situação em que 80% é protegida, para uma situação em que 30 ou 20% estará protegida. Esse é o quadro que assusta. Hoje, não vemos pessoas velhas que moram na rua, mas nós vamos ver, daqui para frente, velhos na rua.
Então, daqui a 20 ou 30 anos, haverá 20% da população com cobertura previdenciária, são pessoas que vão conseguir cumprir as regras, mesmo que seja para uma aposentadoria parcial, e cerca de 70% que vai estar com benefício assistencial de R$ 400,00.
IHU On-Line – De que maneira esse projeto impacta os militares e a classe política?
Eduardo Fagnani – Os militares estão fora dessa PEC. Agora, os militares são importantes porque, do chamado déficit da Previdência do setor público, os militares detêm metade do contingente – algo em torno de 300 mil servidores públicos são militares num universo de 700 mil – e o déficit dos militares é um pouco mais da metade que o do servidor público. Então, tem que incluir esses militares na reforma. O que o governo diz? Que vai fazer um projeto, uma legislação específica para os militares. Talvez uma tendência desse projeto é a seguinte: você desconstitucionaliza tudo, tudo passa a ser aprovado por legislação ordinária. Então, o governo está dizendo que vai apresentar um projeto para os militares, mas na PEC não aparece nada.
IHU On-Line – Não aparece mencionada essa intenção de fazer esse outro projeto que diga respeito à previdência dos militares?
Eduardo Fagnani – Isso, exatamente. E ainda aponta para a questão da legislação complementar.
IHU On-Line – E como ficou a classe política nesse projeto? Houve algum corte de privilégios para essa classe?
Eduardo Fagnani – Pois muito se falou, inclusive durante a campanha, que era necessário acabar com privilégios. É preciso, entretanto, entender melhor o que conta no projeto, mas, aparentemente, passará, aos que forem eleitos a partir de agora, a sujeição das mesmas regras do INSS, ou seja, 65 anos de idade para homem, 62 para mulher, sendo 20 anos para aposentadoria parcial e 40 para aposentadoria integral. Aparentemente, o projeto aponta nesse sentido.
IHU On-Line – A principal argumentação dos defensores da reforma da Previdência se ampara no aspecto do financiamento, alegando falta de recursos. A questão que se impõe, no entanto, é a seguinte: o problema dos recursos previdenciários é endógeno ao sistema ou exógeno?
Eduardo Fagnani – Há dois aspectos aí. Primeiro: o que me dá profunda irritação é este argumento de que sem a reforma da Previdência o país quebra. Isso é de um primarismo, algo quase rudimentar, por várias razões. Se eu tenho um problema de receita e despesa, que gera um déficit, tenho que trabalhar nas duas pontas. Ou eu corto a despesa, enfrento só as causas endógenas, ou aumento a receita. A previdência do INSS urbano, durante quase sete anos, entre 2007 e 2014, foi superavitária porque a economia cresceu. Então, se a economia cresce, cai a taxa de desemprego, aumentam os salários, aumenta a receita.
Outra fonte da seguridade social é, por exemplo, a contribuição sobre o faturamento. Se a economia cresce, aumenta o faturamento, aumenta o lucro e aumenta a receita. É evidente que sempre que a economia entra numa recessão você tem problemas, mas quando a economia cresce você resolve uma parte desses problemas. Então, a saída passa, em primeiro lugar, pelo crescimento da economia. Evidente que é isso, mas esse debate está completamente fora.
Uma outra questão também para contrapor essa ideia de que sem a reforma da Previdência o país quebra é a de que essa reforma vai dar uma receita de um trilhão em dez anos. São R$ 100 bilhões por ano. No Brasil, existe o maior programa de transferência de renda dos ricos do mundo. Somente de isenções fiscais, só o governo federal abre mão todo ano de quase R$ 400 bilhões. Nós pagamos 400 bilhões de juros e a sonegação no Brasil é de mais de 500 bilhões anuais. O governo, em vez de combater a sonegação com os instrumentos da tecnologia que estão disponíveis hoje – aliás, desde os anos 1990 a sonegação não é crime, a pessoa não vai presa porque sonega –, premia a sonegação com refinanciamento. Além disso, a PEC não propõe o fim do refinanciamento para enfrentar a inadimplência da Previdência: ela diz que o refinanciamento tem que ser de 60 meses — cinco anos, porque atualmente é de 25 anos —, mas este prazo de cinco anos não resolve o problema, pois o devedor não vai pagar para tirar um refinanciamento, ele vai pagar por dois anos e deixará de pagar de novo.
Se somarmos R$ 400 bilhões de isenções fiscais, R$ 400 bilhões de juros e 500 bilhões de sonegação, temos cerca de R$ 1,3 trilhão todo ano, são mais de 13 anos de economia com a reforma da Previdência. Claro, não dá para cortar tudo de uma vez, mas se o governo propuser cortar 30% desse R$ 1,3 trilhão, são cerca de R$ 400 bilhões por ano. Se cortar um terço desse programa extraordinário de distribuição de renda para os ricos, daria um montante de R$ 400 bilhões por ano, equivalente a quatro anos de economia da reforma da Previdência.
Como eu posso dizer que se o Brasil não fizer reforma da Previdência ele quebra? Isso sem falar na reforma tributária, porque o sistema tributário brasileiro é um dos mais injustos do mundo. A Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil - Anfip e a Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital - Fenafisco fizeram um estudo que mostra que tecnicamente é possível aumentar as receitas da tributação sobre a renda e o patrimônio em cerca de R$ 360 bilhões. A reforma tributária é o antídoto contra essa outra estultice, que se fala muito, que é a do terrorismo demográfico, pois o que eles dizem? Que antigamente havia dez trabalhadores ativos para um aposentado e isso tende a cair, e daqui a 30 anos serão dois ou três para cada aposentado, portanto não tem alternativa — isso está na primeira página do Power Point.
Essa é uma tendência que já está ocorrendo e que vai se intensificar com a revolução tecnológica — esse é um debate que se faz hoje na Europa — e os países capitalistas desenvolvidos resolveram isso em meados do século passado. Isto é, tem que fazer uma reforma tributária que seja progressiva, onde transita da base salarial para a base de renda e sobre o patrimônio. Logo, a saída para a Previdência é a reforma tributária. Mais um equívoco desse pensamento é que a Previdência é financiada apenas pelo trabalhador ativo, o que é uma mentira. Se pegarmos os países europeus, a Previdência é parte da Seguridade, e a Seguridade é financiada pelo sistema tripartite: empregador, empregado e governo através dos impostos gerais, que são progressivos nos países desenvolvidos. Em uma média que fizemos com 20 países europeus, a participação do Estado, nesse sistema tripartite, é de 55%, dos empregadores cerca de 30% e dos empregados aproximadamente 15%. Então, não é verdade que o financiamento da Previdência depende do trabalhador ativo.
O Brasil tem um sistema de financiamento tripartite desde a gestão Getúlio Vargas, e a Constituição Federal aprimorou esse sistema mas não fez a reforma tributária. Desde 1988 a seguridade social, que inclui a Previdência, é financiada pelo Cofins, a contribuição do empregado e do empregador. Nós copiamos o que foi possível copiar da experiência europeia. Outra alternativa para a questão demográfica (contribuintes x beneficiários) passa pela reforma tributária.
Então nós temos crescimento da economia, reforma tributária, revisão de isenções fiscais, combate à sonegação e redução da taxa de juros. Esses são os males, o que está errado no Brasil não é a Previdência, mas as inconsistências da política macroeconômica que garante um conjunto de benesses às camadas de maior renda. Nisso ninguém quer mexer. Vem cá, o objetivo não é acabar com os privilégios? Esses privilégios que eu acabei de falar são os verdadeiros privilégios.
IHU On-Line – Como deve ser a recepção dos congressistas à reforma da Previdência?
Eduardo Fagnani – Isso foge um pouco da minha área, mas o que tenho percebido é que a coordenação política do governo no Congresso apresenta muitos problemas. Outra coisa que estou percebendo é que a reforma do Bolsonaro é mais crítica, em termos de impacto, que a reforma do Temer. Se as pessoas começarem a fazer a conta – fazendo os cálculos em relação ao tempo de contribuição e idade, levando em conta a regra atual e a regra proposta – e perceberem as diferenças dos modelos, elas vão levar um susto. Isso terá rebatimento na classe política e o movimento social tem que mostrar para as pessoas qual o custo dessa reforma, o que certamente chegará aos parlamentares.
IHU On-Line – De tudo que se sabe até agora sobre o projeto, quais são, então, as questões de fundo?
Eduardo Fagnani – Os dois pontos centrais são: o fim da solidariedade do sistema social e a migração para o assistencialismo e para o sistema de seguro social. O seguro individual são esses planos de capitalização, cuja responsabilidade é do indivíduo. É como o plano de saúde, se você paga a prestação tem direito, se não paga não tem. A diferença, no caso da Previdência, é que se tem que pagar durante o período de 30 e poucos anos. Dada a situação do mercado de trabalho brasileiro, a população não tem condições de investir em um plano desses.
Se olharmos para daqui três décadas, veremos que saímos da seguridade para o seguro, porque o sistema de capitalização já foi implantado pelo servidor público, o Funprev, que é um fundo individual. Trata-se da legitimação de uma reforma implementada ainda no governo Fernando Henrique Cardoso em que os servidores passam a ter uma conta e um fundo individual, durante 35 anos. Ninguém discutiu esses custos, porque o que ocorre é que os novos entram nesse regime de capitalização, no plano federal, e o estoque tende a se esvaziar, porque as pessoas vão morrer. Então daqui a 35 anos haverá um megafundo de capitalização do servidor público, sendo que os custos dessa transição, que são elevados, nunca foram discutidos.
IHU On-Line – Qual a origem do déficit previdenciário do serviço público?
Eduardo Fagnani – Em parte pelos militares, em parte pela ausência de contribuição do setor público durante vários anos na transição dos anos de 1990. E, em parte porque os servidores públicos deixaram de contribuir para o sistema público e passaram a contribuir para os fundos individuais. No caso do INSS a ideia é criar a carteira [de trabalho] amarela, em que os jovens que entrarem no mercado de trabalho a partir de agora poderão optar por ela. O que vai acontecer é que esse jovem não vai ter opção, porque as empresas somente vão contratar pela carteira amarela, dizendo que não pagam benefícios e encargos sociais e o jovem será obrigado a pagar sozinho a própria previdência. Estamos caminhando da seguridade social para o seguro social. É uma transformação enorme.
Ainda há a correlação entre as reformas da Previdência, trabalhista e tributária. Eu estou chamando isso de reforma trigêmea. Foi feita uma reforma trabalhista que rebaixa os custos do mercado de trabalho e precariza as condições dos trabalhadores. Essa reforma “desfinancia” a Previdência pública; quer dizer que uma pessoa que trabalha por hora não vai contribuir para a Previdência. Para quem tem uma micro ou pequena empresa, a contribuição é muito menor do que a do empregado com carteira de trabalho. Nesse contexto o governo propõe uma reforma previdenciária que caiba na capacidade de financiamento de mercado de trabalho precário. Ela tem de ser muito exigente, colocando obstáculos para que as pessoas não consigam se aposentar e, com isso, reduzir os custos da Previdência.
A reforma tributária que devemos fazer, diz o governo, tem que ser aquela que reduza a carga tributária de 33% do PIB para cerca de 25% ou 27%. Há alguns balões de ensaio sobre a desoneração das pessoas jurídicas e outras coisas nessa linha. Não se pode esperar nada da reforma tributária, porque o objetivo é reduzir a carga, e a variável do ajuste é a seguridade social, que gasta 12% do PIB, que poderia ser reduzida para algo em torno de 6% ou 8%, reduzindo os custos da União para 27%. Esse é o projeto que vamos ter para o país, um avanço enorme do seguro social em contraposição à seguridade social, um sistema trabalhista precário e com bastante insegurança, capaz de financiar uma Previdência Social também precária. Tudo isso para poder viabilizar uma redução da carga tributária, que é o projeto liberal para o Brasil, o que, em última instância, acaba com os avanços de 1988. Esse é o desenho de país que vai se refletir daqui a 25, 30 anos.