23 Fevereiro 2019
“Eu não acho que os nossos tempos sejam melhores do que os do dilúvio”, disse o Papa Francisco na terça-feira passada, celebrando a missa matinal em Santa Marta. Assemelha-se realmente a um dilúvio universal a catástrofe de abusos e perversões sexuais clericais, verdadeiros e supostos, que afloram em todas as latitudes do mundo, precisamente enquanto, em Roma, os representantes de todos os episcopados nacionais se reúnem por convocação do sucessor de Pedro para reconhecer as próprias responsabilidades e tentar pôr em prática aquilo que é humanamente possível para proteger os menores e as pessoas vulneráveis dos abusos nos ambientes eclesiais.
A reportagem é de Gianni Valente, publicada em Vatican Insider, 22-02-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A cúpula ainda é representada como uma espécie de Apocalipse. A assembleia da última chance, do “agora ou nunca mais”, a prestação de contas final, a última oportunidade de sobrevivência para a Igreja, ofendida e intimidada pelas bordoadas preventivas daqueles que já disseram que tudo o que se fizer e se fará é pouco demais e chega tarde demais. Os pecados e os crimes dos indivíduos e dos grupos tornam-se, por sinédoque, a prova de uma culpa coletiva. Com todo o corpo eclesial devendo ser posto atrás das grades como tal, como aparato corrupto, como sistema omisso de cumplicidades criminosas, conivências mafiosas, acobertamentos de sacro bordel.
A passagem vivida pela Igreja certamente representa um momento de verdade. E também o é devido a fatores que geralmente não são colocados em primeiro plano na representação daquilo que está acontecendo.
Ainda em maio de 2014, no voo que o levava de volta a Roma da Terra Santa, o Papa Francisco tinha sugerido a raiz última da pedofilia clerical, quando comparara os clérigos pedófilos àqueles que fazem “missas negras”. Os abusos clericais sobre os fracos e os menores põem em causa, vertiginosamente, o mistério e a natureza da Igreja. A sua missão como instrumento da graça. Instrumento não autossuficiente, que só existe e pode viver, instante a instante, como reverberação e sinal da caridade de Cristo, que, encontrando-se e atraindo as pessoas para si, torna-as visivelmente Igreja.
Na história dos seres humanos, a Igreja é apenas a visibilidade dessa atração amorosa. Sem isso, até mesmo as estruturas e as práticas eclesiásticas podem se tornar fatores letais de perdição e infelicidade. Lugares para se consumar ritos sacrificiais perpetrados sobre a carne viva das pessoas. Como ocorreu com tantas vítimas de abusos clericais.
A abominação dos abusos sexuais clericais, documentada não como fenômeno marginal de casos isolados, mas como perversão endêmica em grandes áreas da classe eclesiástica, só pode ser olhada com lealdade e verdade se não se oculta outro dado de realidade, também vertiginoso: o simples fato de que a Igreja, por sua natureza, não se autorredime dos males por força própria, com meios humanos e estratégias humanas.
Esse é a autêntica distinção, esse é o jogo mais real que está sendo jogado nestes dias. Se censuramos esse dado de base, a crise da pedofilia e dos abusos clericais também se transforma em pretexto para se encerrar no círculo asfixiante das operações de política eclesiástica.
O nefasto ardor para explorar politicamente a catástrofe dos abusos sexuais do clero manifestou-se em formas grotescas e grosseiras, especialmente em amplos setores da rede global das direitas clericais. Com cardeais e agentes de imprensa alistados em tempo integral para despachar, com insistência obsessivo-compulsiva, o mantra segundo o qual a disseminação dos abusos sexuais é apenas um efeito colateral e secundário da invasão homossexual nas fileiras do clero.
A pista do “complô” homossexual visava a colocar o Papa Francisco em apuros, acusando-o de aberturas fantasmagóricas à cultura homossexual. Depois, como muitas vezes ocorre, a lama jogada no ventilador acabou caindo sobre todos.
A “caça aos gays no Vaticano” e nas altas hierarquias eclesiásticas, com as suas declarações editoriais mais recentes e esquálidas, continua tocando personagens de primeiro plano e círculos influentes dos pontificados anteriores. E atesta como são vãos e ilusórios até mesmo os argumentos de quem, para enfrentar a crise, pede para aumentar as doses de doutrinamento moral “rigorista” sobre questões de sexo nos seminários, nos noviciados e nas universidades eclesiásticas.
Nas recentes temporadas eclesiais, e particularmente durante o longo pontificado wojtyliano, as lideranças da Igreja tinham reservado uma atenção particular para reafirmar, também na formação dos sacerdotes, as regras e os conteúdos da moral sexual católica. No entanto, precisamente nessas temporadas, abundavam os abusos que hoje vieram à luz do sol. As infâmias cresciam no tempo em que a moral sexual parecia ter se tornado o prego fixo da linguagem eclesial. Infecções e patologias que certamente não pouparam círculos e clãs clericais cada vez mais voltados a ostentar seus rigorismos pseudodoutrinais (não sem obter discretas recompensas, muitas vezes, em termos de poder eclesiástico).
A infecção dos abusos clericais contra menores e pessoas vulneráveis revela, de modo traumático, a não autossuficiência do corpo eclesial, a sua inabilidade de moldar a si mesma como“Societas perfecta" em virtude de coerências morais proclamadas e desfraldadas.
O Papa Francisco, abrindo a cúpula sobre a proteção dos menores na Igreja, também repetiu que devem ser aplicadas com urgência, em todo o mundo, as “medidas concretas e eficazes” para desmantelar todo resíduo de omissão e acobertamento/remoção eclesiástica diante dos abusos clericais.
Mas a própria raiz desse mal obscuro torna inapropriada qualquer abordagem que pretenda “pôr as coisas no lugar” abrindo mão da necessária graça de Cristo. E que aponte para o credenciamento como instrumentos suficientes de autopurificação os protocolos disciplinares definidos, os controles mais rígidos, as denúncias mais zelosas, a vigilância mais intensa, as repressões mais diligentes. Ou, talvez, os cursos de conscientização, de direção espiritual e de formação permanente.
Diante do abismo da pedofilia clerical, a reação neorrigorista homofóbica e a tecnocrática “politicamente correta”, embora ideologicamente distantes, acabam compartilhando, com ênfases diferentes, os mesmos reflexos condicionados afins à antiga heresia donatista. Aquela que, nos primeiros séculos cristãos, queria remover do próprio Cristo a eficácia dos sacramentos e dos meios de salvação administrados na Igreja e fazer com que ela dependesse da dignidade e da impecabilidade dos seus ministros. A heresia que pretendia construir uma “Igreja de puros” e de perfeitos através da rigorosa fidelidade ao Evangelho das origens, confiada não ao dom da graça momento a momento, mas obtida pelo esforço heroico de coerência moral e de rigorosa aplicação militar de procedimentos disciplinares.
No decorrer da história, toda vez que a Igreja pretendeu se emendar sozinha dos seus males, ela acabou se assemelhando a uma organização de inteligência à mercê de dossiês e de chantagens. Congestionada pelo desprezo dos “lapsos” e dos contaminados.
Toda a estrutura eclesial não conseguirá dizer nada de útil e de interessante aos homens e mulheres que esperam a salvação de feridas e doenças se ela também não se reconhecer como mendicante de cura. Se não for Cristo mesmo que cure também as doenças da própria Igreja. Se o desejo de conter os encobrimentos dos abusos tiver como horizonte o de salvaguardar a “empresa-Igreja”, o seu bom nome de benemérita organização social, e não coincidir com a dor por ter ferido a carne de Cristo, com a mendicância do Seu perdão e com o pedido de que seja o próprio Cristo que salve as vidas – até as mais destruídas – de vítimas e carnífices.
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A cúpula sobre os abusos e a armadilha ''donatista'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU