18 Janeiro 2019
Surgem, nos EUA e na Espanha, experimentos em que um sindicalismo renovado articula-se as redes municipais anticapitalistas. Como coexistem? Seriam possíveis também no Brasil?
Alexander Kolokotronis é estudante de PhD em Ciência Política na Universidade de Yale. Ele é o fundador da Student Organization for Democratic Alternatives, ex coordenador da NYC Network of Worker Cooperative e ex assistente de desenvolvimento na cooperativa laboral Make the Road em Nova York. O artigo foi publicado por Roarmag e reproduzido por Outras Palavras, 16-01-2019. A tradução é de Marianna Braghini.
Uma revolução municipalista é impossível sem o apoio e cooperação dos sindicatos laborais. Em alguns casos, eles próprios podem tomar a dianteira em lançar essa mudança. Para seguir esse caminho de forma efetiva, a esquerda deve compreender a composição e a estrutura diversas da classe trabalhadora — lançando, com os nascentes movimentos municipalistas, um apelo para a democracia sindical. Experimentos em democracia participativa podem ser tentados e testados nos sindicatos, abrindo possibilidades para uma subsequente implementação a nível municipal.
Novos fatos nos EUA e na Espanha estão mostrando que movimentos e candidatos pró-participação popular podem ganhar eleições municipais. Os exemplos incluem a eleição para prefeito de Chokwe Lumumba Jr. em Jackson, estado do Mississipi, com apoio de assembleias populares, redes de economia solidária e políticos progressistas. Um grupo de candidatos dos Socialistas Democráticos dos EUA (Democratic Socialists of America) [veja o vídeo a respeito deste movimento ao final do texto] está propondo a expansão da democracia participativa e das cooperativas de trabalhadores. Movimentos municipais estão proliferando como um meio de resistir a Donald Trump e à crescente extrema-direita.
Isso ocorre num momento em que os sindicatos tradicionais estão em declínio, necessitando de um processo interno de democratização para se revitalizarem. Para aumentar sua capacidade de atrair, gerar apoio entre a opinião pública e estender sua influência, os sindicatos devem também agir com visão política. É uma forma de alcançar o poder em nível municipal e trabalhar para transformá-lo.
Embora haja novidades positivas no estímulo a um movimento municipal, outros segmentos da esquerda estão às voltas com a vitória de Trump e o fracasso da democracia liberal. Nos EUA, um grupo de analistas localizam a fonte desses fatos nos quarenta anos de declínio das condições da classe trabalhadora. Ao defender um programa à la Bernie Sanders na revista Jacobin, Connor Kilpatrick escreve que “A classe trabalhadora é central para políticas progressistas que façam diferença porque ela tem os números, o incentivo econômico e a potência para paralisar os trilhos do capital.” Isso não é inconsistente com municipalismo. As diferenças em análise e programa político só emergem quando se enxerga apenas setores particulares da classe trabalhadora.
Há boas razões para reconhecer a contínua relevância de trabalhadores brancos, como faz Kilpatrick. A maior parte da atual classe trabalhadora é branca. Não pode ser vista raivosamente como “uma minoria em desvantagem numérica”. O New York Times estampou no pós eleição a seguinte manchete: “Por que Trump ganhou: Brancos da classe trabalhadora.” Esquerdistas lembram as primárias para presidente do Partido Democrata, demonstrando que a classe trabalhadora branca deu um apoio esmagador à agenda socialista democrata de Sanders, ante o neoliberalismo de Hillary Clinton. Os liberais têm ignorado as circunstâncias materiais da classe trabalhadora branca. E aconteceu que “Donald Trump não angariou votos da classe trabalhadora. Hillary Clinton os perdeu.” Alguns socialistas acreditam que isso requer um ousado retorno às políticas de classe. Que políticas identitárias paralisaram a esquerda e agora estamos pagando por isso com o ascenso da extrema-direta.
Mas a classe trabalhadora é composta por algo bem mais amplo que apenas o contingente de homens brancos rurais. Tal discurso arriscar reduzi “a classe trabalhadora” para “trabalhadores brancos caipiras” – esquecendo-se de que ela também pode ser negra, parta e de qualquer gênero e trabalham em setores fora da indústria manufatureira.
Como escreve Gabriel Winant em Dissent, “embora a ideia de uma nova classe trabalhadora ainda não seja amplamente aceita, suas características distintivas são familiares. Podemos descrevê-las, grosso modo por feminização, diversificação racial e precariedade crescente.
Ela inclui os trabalhos de cuidadores, imigrante, mal remunerado e a economia ‘de bicos’”. Um estudo recente identificou que “o percentual de filiação sindical é maior entre trabalhadores negros. Também notou que a classe trabalhadora norte-americana será majoritariamente não-branca, por volta de 2032.
Há outros indicadores de que é aí que reside o futuro da política de esquerda. As ocupações na economia do cuidado1 compreendem um crescente segmento de cooperativas de trabalhadores. A Cooperative Homecare Associates, a maior cooperativa de trabalhadores nos EUA, opera nessa economia do cuidado. A empresa, democrática e autogerida por seus funcionários, reúne mais de 1.500 trabalhadores-empregadores.
A economia do cuidado está crescendo a uma taxa enorme. De acordo com a Secretaria de Estatísticas Trabalhistas, “as ocupações e empresas na área da saúde devem registrar o maior aumento de empregos, entre 2014 e 2024.” Em diversos Estados dos EUA, as universidades e os hospitais ligados a elas são os maiores empregadores. Muitos dos empregos estão nas periferias das metrópoles, cuja classe trabalhadora é predominantemente não branca. As maiores cidades nos EUA estão entre as áreas mais diversificadas em raça e etnia.
Reconhecer tudo isso ajuda a identificar onde a esquerda pode construir o poder agora. Em termos imediatos, este poder não repousa na configuração da classe trabalhadora rural, branca e masculina. Se a esquerda trabalhar para isso, terá espaço para crescer nas cidades e dentre a classe trabalhadora multiracial. No entanto, um retorno para as políticas progressistas de então exigiria a defesa dos que são historicamente marginalizados.
Isso não significa abandonar a classe trabalhadora branca. Grupos como o Red Neck Revolt estão se provando efetivos em organizá-la na luta antifascista. A questão é qual papel os sindicatos podem desempenhar e onde serão mais efetivos. Abraçar uma agenda interseccional socialista hoje significa que sindicatos devem perseguir políticas que reconheçam a voz e o poder das mulheres e dos não brancos.
A escolha, portanto, não é entre os socialistas brancos e o neoliberalismo dos Clinton. Há uma outra política a escolher, uma fusão do melhor da esquerda dos EUA: a crescente política participativa de Jackson, com o foco municipal da Unite-Here, em New Heaven, Connecticut. A terceira escolha — esta fusão — é municipal, participativa e sindical.
Coalizões anti-fascistas ainda incipientes têm potencial para convocar uma nova política nos EUA. O municipalismo socialista pode ser um meio tanto para resistir à extrema-direita como para articular uma alternativa socialista democrática. Embora haja muito a criticar em Murray Bookchin, o teórico anarquista que idealizou a concepção de municipalismo nos EUA, os princípios básicos se mantêm.
Bookchin debate as possibilidades de avançar, dentro das cidades, em um programa mínimo e um programa máximo. O primeiro atende demandas de melhora no bem estar dos cidadãos e gera espaços de participação direta e empoderamento, que podem servir como os primeiros passos para uma transformação institucional mais ampla. O programa máximo é aquele em que o poder popular está no centro da transformação institucional: aqui, o poder de decisão é transferido do nível municipal da representação institucional para o de assembleias democráticas diretas.
O sindicalismo municipal oferece uma plataforma resistente e uma estratégia de longo prazo para garantir que a classe trabalhadora urbana e multirracial possua voz e poder. Embora seja mais fácil falar do que colocar o plano em ação, parece que os sindicatos estão melhor posicionados para fortalecer uma virada municipalista e para ser agentes da democracia participativa.
Uma razão principal: dinheiro. Os sindicatos mal têm recursos para competir com capitalistas em plano nacional. Ainda assim, têm recursos substanciais e os controlam de forma autônoma. Além do dinheiro, os sindicatos têm suas sedes, instalações, escolas, espaços de reunião e uma variedade de outros recursos. A questão é saber em que nível estes recursos seriam usados de forma mais efetiva e, em especial, coordenar esforços municipalistas em múltiplos municípios.
A força do municipalismo repousa na ramificação e em sua atenção ao particular – algo que os melhores sindicatos têm e aproveitam. Para enfrentar as pressões que sofrem, também devem encontrar força em sua multiplicidade. Não apenas a que há num dado local, bairro ou cidade, mas a que está no núcleo das noções de confederalismo.
Diferentes agentes de mudança irão surgir, no processo articulação entre sindicatos e movimentos municipalistas, a depender dos contextos. Nas regiões metropolitanas, em que predominam serviços de educação e saúde, a “nova” classe trabalhadora sindicalizada pode ser este agente. Onde serão conduzidas as reuniões? Quem fará as votações (quando for preciso escolher candidatos ou como parte de um processo participativo)? Os sindicatos podem fazer uma parte substancial deste trabalho, se empregarem seu poder auto organizativo e seus recursos para um fim político.
Antes que isso possa acontecer, entretanto, deve haver uma democratização dos próprios sindicatos.
Como frisei em outro artigo para a revista ROAR, os conceitos e modelos de democracia sindical permaneceram ralos. Elaborar orçamentos de forma participativa pode ser parte de um modelo de sindicato democratizado. Estes orçamento participativos podem ajudar a estimular a consciência de classe, servir como meio para formação educacional dos trabalhadores (particularmente na área de auto administração) e ajudar a transformar a burocracia em uma forma de administração iterativa e colaborativa.
Elaborar orçamentos de forma participativa também tem uma característica interseccional. É espaço para inclusão e empoderamento de imigrantes. Foi também um recurso crescentemente utilizado pelo movimento Black Lives Matter. Uma pesquisa na agenda pública acerca de orçamento participativo identificou que os negros estavam proporcionalmente muito representados.
Rossana Mercedes, integrante das Black Youth [Juventude Negra], escreve que “testemunhou em primeira mão o poder organizativo de pessoas negras no orçamento participativo.” Mercedes recorda que “pessoas que estiveram encarceradas, majoritariamente homens negros, atuavam juntos por meio de uma organização comunitária local e decidiam como gastar os impostos em seus bairros. A juventude negra comunicava o processo aos vizinhos batendo de porta em porta, levando a eles o voto para construir apoio aos projetos que propõem em suas comunidades.” Mercedes vai além, imaginando “o que poderíamos fazer com o Community Development Block Grants, os bilhões em orçamento federal disponíveis para comunidades de baixa remuneração.”
O orçamento participativo tem o potencial de ajudar a assentar e expandir este trabalho, além de se conectar com ele. Pode ser uma forma organizacional que conecta materialmente sindicatos a grupos comunitários, com o apoio e criatividade das lideranças e associados. Pode criar as alianças necessárias para um real movimento e programa municipalistas. Pode até haver múltiplos sindicatos e múltiplos processos locais de orçamento participativo, remanescente das assembleias regionais uma vez já organizadas pela Ordem dos Cavaleiros do Trabalho no século XIX.
Os sindicatos podem até mesmo ajudar grupos comunitários a atingir seus objetivos, investindo seu capital fiscal e capital social. Um processo de orçamento participativo em sindicatos, por exemplo, poderia incluir uma rubrica de orçamento para relações externas comunitárias. Membros do sindicato poderiam propor ideias e construir projetos que beneficiem diretamente ou trabalhem junto com uma comunidade mais ampla.
Esse orçamento participativo sindical poderia, então, fluir para iniciativas democratizadas de “Negociação pelo Bem Comum”. Seriam parcerias entre sindicatos e organizações comunitárias empenhadas em lutas pelo acesso à moradia, garantia de creches para todos, transformação do ensino, melhoria dos serviços públicos, por exemplos.
Há outros caminhos em que processos sindicais democráticos podem ser criados para fins mais amplos. Um meio de fazer isso poderia um processo participativo de mapeamento. Aqui, os próprios membros trazem seus “conhecimentos situados localmente” e “pontos de vista” para mapear um local ou região de trabalho ou região de trabalho. Por exemplo, um grupo de escolas públicas depara-se com dificuldades em atender os direitos das pessoas com deficiência. Processos de mapeamento participativo poderiam ser formalmente conectados ao que se debate nas mesas de negociação entre sindicatos e empregadores. Isso reorientaria os sindicatos para as preocupações das comunidades, ao mesmo tempo em que obrigaria as lideranças sindicais a agir em sintonia com estas.
Processos de orçamento participativo e de mapeamento, envolvendo sindicatos, também preparariam os trabalhadores sindicalizados a tomar parte nos processos de orçamento participativos a nível municipal. Além de cultivar confiança, isso treinaria os membros do sindicato para operar em processos de orçamento participativo de larga escala. Se estas iniciativas incluíssem grupos comunitários não-trabalhistas, as coalizões entre ambos os setores acumulariam experiências, capacidade política e confiança mútua. Se trabalharem com uma diversidade de de grupos e associações comunitárias, os sindicatos também poderão facilitar a criação de um setor empreendimentos controlados por trabalhadores.
Diversos sindicatos de trabalhadores nos serviços de educação e saúde já enxergam a municipalidade como uma chave para engajamento político. Em New Heaven, EUA, um grupo de organizadores da UNITE-HERE [Uma coalizão de sindicatos de trabalhadores em alimentação e hospedagem dos EUA e Canadá] foi eleito para o conselho municipal. Lá, uma coalizão de sindicatos e grupos comunitários conclamou a Universidade de Yale – com sucesso – a contratar 500 moradores das comunidades negras e latinas. O Sindicato dos Professores de Chicago já lançou diversos professores como candidatos para o conselho municipal e a prefeitura. E também forjou publicamente laços com grupos comunitários, conferindo ao sindicato a reputação de praticar “sindicalismo de movimento social”. Nessas cidades, aumentam tanto o poder dos trabalhadores organizados como o da população como um todo. A chave é imbuir o movimento de estrutura e propósito democráticos.
Por meio de que articulações todo este esforço poderia ser coordenado? Uma possível resposta são os Socialistas Democráticos dos EUA [Democratic Socialists of America – DSA], a organização socialista que mais cresce, com 25 mil membros. Inúmeros membros demonstraram compromisso com uma mudança social mais ampla, além de manterem foco no movimento trabalhista socialismo bem como um mais focado no movimento trabalhista. O sindicalismo municipalista dá conteúdo a este compromisso.
Além disso, como a DSA está empenhado em criar uma comissão sindical, seria sábio considerar como a democracia sindical pode ajudar na construção do socialismo municipalista. A subseção três da resolução das prioridades determina que “a DSA é comprometida com a construção de sindicatos laborais democráticos que empoderem e ativem todos os os membros.” Colocando para frente uma mistura de reformas que incluem deveres do sindicato, orçamento participativo e a negociação pelo bem comum adicionam um peso programático a esta declaração.
As sementes de um programa municipalista já estão sendo preparadas, no movimento trabalhista. Uma vez plantadas, podem tramar tanto a democratização do sindicato quanto a da própria cidade. Este não é o único caminho para o municipalismo radical, mas é a promessa da nova classe trabalhadora. É a promessa de uma democracia socialista e sindical no século XXI.
1 Referência aos trabalhadores em serviços como cuidado de idosos, crianças, doentes etc
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Sindicatos e democracia radical, união possível? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU