Por: João Vitor Santos | 29 Novembro 2018
O Brasil tem um novo presidente, Jair Bolsonaro, que não só fez das redes sociais e do ambiente on-line o principal palco para sua campanha, como se pronuncia pela primeira vez como eleito através dessas plataformas e ainda vem anunciando seu ministério em primeira mão pelo Twitter.
“Fizemos, nas eleições de 2018, uma experimentação pelo avesso, pelo lado distópico das redes e das mídias digitais, o que não neutraliza e não anula o potencial de uso das mídias, plataformas, aplicativos, em um regime de democracia direta”, aponta a professora Ivana Bentes, doutora em Comunicação. Para ela, a experiência revela mais: “o tempo da política se tornou analógico e lento demais diante da velocidade das decisões a serem tomadas e essa governança em tempo real provoca muitas incertezas e riscos”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Ivana também reconhece que “os conservadores entenderam a disputa pela linguagem, a disputa do desejo, a disputa pelas formas e não só pelos conteúdos”. “E tiveram uma vitória significativa elegendo Jair Bolsonaro, uma figura caricatural e memética, como presidente do Brasil”, acrescenta. Enquanto isso, o PT, movimentos sociais e sindicatos que foram capazes de capilarizar muitas demandas em prol de uma construção democrática, de igualdade, parecem não ter entendido a necessidade da velocidade na política de hoje. “Esse tecido e essa base se esgarçaram por mil fatores. Agora temos um outro campo disputando a narrativa mainstream”, conclui. E acrescenta que “os movimentos tradicionais, a militância de base, que chega nos territórios, que disputa as ruas, tem que entender a linguagem das redes”.
Assim, observa que não se trata de demonizar as redes, nem acreditar que delas só é capaz de emergir o que de pior existe na política. “O uso das redes de forma fulminante em uma disputa eleitoral é o veneno, mas também o remédio”, aponta. Portanto, compreende que o grande desafio é pensar em como reinventar uma outra democracia, aquela que se dá em tempo real, no tempo das redes on-line. “Voltando a Paul Virilio, temos que pensar profundamente sobre a ‘dromoscopia’, sobre a relação entre velocidade e política, sobre o presentismo, sobre nossa capacidade de sobreviver ao aceleracionismo e inventar dispositivos que liberem essas forças potentes para o bem comum”, aponta.
Ivana Bentes | Foto: Arquivo Pessoal
Ivana Bentes é doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, com graduação e mestrado em Comunicação Social pela mesma instituição. Atualmente é professora associada do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ. Ainda, foi secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura de 2015 a 2016. Tem se dedicado a dois campos de pesquisa: Estéticas da Comunicação, Novos Modelos Teóricos no Capitalismo Cognitivo; e Periferias Globais: produção de imagens no capitalismo periférico. Desde 2009 é coordenadora do Pontão de Cultura Digital da ECO/UFRJ.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A senhora tem dito que a subcultura da internet tem produzido um estado de exceção digital. Gostaria que detalhasse essa perspectiva e analisasse como esse estado de exceção acaba transbordando para o mundo não digital.
Ivana Bentes – A eleição de Jair Bolsonaro é o primeiro resultado de um experimento político baseado em um novo modelo de negócio e governança: as fake news e a memética impulsionadas artificialmente em escala industrial. Um escândalo (denunciado em matéria da Folha de São Paulo do dia 8 de outubro de 2018)[1] com que a Justiça Eleitoral analógica não soube como lidar. O que é muito grave, pois foi um dos fatores de uma operação de psicologia de massa inédita, com um efeito de produção de “fatos” fabricados para dar credibilidade a opiniões de nichos, para funcionar como “viés de confirmação” de crenças, preconceitos, medos, operações de desmontes de reputações, de personalidades, criminalização de grupos políticos e sociais de forma avassaladora.
Penso em estado de exceção digital porque essa avalanche de fake news que deveriam ser combatidas pelo Tribunal Superior Eleitoral - TSE inundaram as redes e transformaram uma operação criminosa em algo padrão. As fake news, que eram uma exceção, se tornaram a regra na disputa eleitoral.
A cada eleição no Brasil se aguarda a “bala de prata” de um órgão de imprensa ou do campo oponente para derrubar – com um fato surpresa, dossiê, revelação bombástica – o opositor. E o que tivemos dessa vez? Um fluxo ininterrupto de “fait divers”. Ou o que chamam de a tática derivada de firehose, que significa “mangueira de incêndio”[2]. A “flodagem” nas redes, o esgoto público jorrando informações falsas para produzir um sentimento de ódio, de indignação, de revolta, diante de “tudo o que está aí”, mas focado em um partido, um campo e um candidato. Um fenômeno que só produziu uma reação no 2o turno por parte da candidatura de Fernando Haddad.
Obviamente essa não foi uma operação que começou nas eleições, mas se intensificou de tal forma que em sinergia com outros fatores (o descrédito com a política partidária, o discurso seletivo anticorrupção, o antipetismo alucinatório etc.) criaram um estado de exceção digital em que mentiras e fatos produziram uma nuvem tóxica capaz de criar um efeito de verdade, uma onda, um contágio, um “vazamento”, difícil de conter.
O estado de exceção digital também é uma forma de controle da pauta. Quem produz o fluxo, a inundação, controla a pauta. 84% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram na história dos "kits gays", e 74% sobre fraude nas urnas, conforme pesquisa IDEIA Big Data/Avaaz[3]. Ou seja, acreditaram que o governo conspirava para mudar o gênero das crianças, acreditava em mil afirmações, “notícias”, memes com conteúdos primários que poderiam ser desmentidos racionalmente. O estado de exceção digital produz a “verdade” por difusão, por circulação, por entupimento dos canais de mídia, por clicks, visualizações e listas de transmissão.
Há uma interconexão entre esse fluxo digital e seus efeitos no tecido social e vice-versa. O estado de hipnose e histeria que vivemos durante as eleições produziu ações reais: ataques aos opositores, violências e até crime. Não se trata de causa e efeito, mas sem dúvida que a liberação dos instintos mais primitivos, que leva um eleitor de Bolsonaro a assassinar um opositor político, como no caso do mestre capoeirista Moa do Katendê[4], é um efeito da hiperpolarização e dos discursos dogmáticos, onde se passa do discurso para a ação. Esse transbordamento não tem mão única. Temos dificuldade hoje para traçar as fronteiras entre real e virtual. Estamos no mesmo regime e ecossistema em que coevoluímos com as redes, as mídias digitais e as tecnologias.
IHU On-Line – Que ideia de democracia emerge dessa cultura de internet e redes sociais? E quais os desafios para reinventar uma democracia nesse contexto?
Ivana Bentes – Fizemos, nas eleições de 2018, uma experimentação pelo avesso, pelo lado distópico das redes e das mídias digitais, o que não neutraliza e não anula o potencial de uso das mídias, plataformas, aplicativos, em um regime de democracia direta. O teórico francês Paul Virilio[5] antecipou parte dessas questões, nos seus livros, sobre os limites e possibilidades de democracias e ditaduras em tempo real. Em Velocidade e Política[6], Virilio intuía a “ditadura da velocidade”, a produção de “verdades” e percepções pela aceleração e contração do tempo. Parecia apocalíptico e distópico, mas eis que coube ao Brasil, depois dos EUA, colocar em prática as teorias virilianas.
Quem estava nas redes e no WhatsApp nessas eleições teve essa experiência de ser abduzido, sugado, absorvido, por um campo de aceleração e contração do tempo. Algo que ultrapassava em alguns momentos nossa capacidade de análise, de crítica e de discernimento. Um “roubo” de pensamento. Um fluxo de informações que nos atropelava.
Paul Virilio aponta a relação entre os avanços tecnológicos e a logística militar em que a aceleração e velocidade, imperativos da logística dos campos de batalha, se tornam procedimentos e subprodutos que chegam à sociedade. As novas tecnologias derivadas das guerras colocam a velocidade e a aceleração no centro de uma série de transformações políticas, sociais e culturais. Mudam nossa percepção de tempo e de espaço e, agora, podemos dizer que mudam nossa percepção de verdade.
Como neutralizar esse “estado de exceção digital” e impedir o comportamento de manada ou enxameamento em tempo real? Como a vida on-line produz estados alterados da percepção coletiva? Esses componentes estariam colocando a democracia em risco? Temos a impressão que o tempo da política se tornou analógico e lento demais diante da velocidade das decisões a serem tomadas e essa governança em tempo real provoca muitas incertezas e riscos.
A Justiça e seus dispositivos, lentos demais, analógicos demais, não souberam responder ao fluxo de notícias falsas nas eleições de 2018. Os algoritmos do Facebook e seu efeito bolha, de isolamento em nichos e repertórios, as listas de transmissão com fake news direcionadas às crenças de grupos, podem influenciar comportamentos, humor, ações e desejos de forma muito mais veloz e fluida que as mídias tradicionais.
A aceleração da velocidade da informação e seu fluxo constante reduz a distância mental e emocional, uma redução drástica do tempo de reação, de interpretação, seleção e consumo. Por isso Paul Virilio fala de uma “ditadura da velocidade”. Vimos essas milícias digitais, alimentadas por fazendas de fake news em escala industrial, em ação nas eleições 2018. Conseguirão dar sustentabilidade às decisões de um Bolsonaro? Pois esse mesmo contingente pode ser também o foco de descontentamento e revolta. Essa é a lógica de mídias como a do WhatsApp, mídia usada de forma eficaz e fulminante para organizar um movimento como o dos caminhoneiros, mídia instável e volátil, fluida.
O governo Bolsonaro terá que conciliar duas lógicas opostas: o tempo lento e negociado da democracia representativa, com seus ritos políticos, e esse governo para as redes sociais, bem mais volátil, muito mais voraz e predador. Essa bipolaridade entre institucionalidade (o presidente eleito tem que cumprir a Constituição, tem que se submeter ao Congresso) contrasta com o delírio de onipotências das falas e ações para as redes sociais que geralmente ferem todos os protocolos e rebaixam a democracia à bravata e ao grito.
IHU On-Line – Ainda na época em que a chamada blogosfera era tida como novidade, e até mesmo no surgimento das redes sociais, havia a expectativa de que esses ambientes de certa desordem criadora inspirariam algo novo. Diante do que vemos hoje, podemos afirmar que esse projeto fracassou? Por quê?
Ivana Bentes – Não se trata de fracasso, mas de um processo que ao se expandir e massificar produziu efeitos colaterais. Porque a multidão de mídias, páginas, sites, canais no Youtube, influenciadores do Instagram, as celebridades instantâneas e os novos formadores da opinião, produziram realmente uma ruidocracia, uma nova ecologia midiática, um novo ambiente de controvérsias e disputas narrativas.
A questão é que a primeira blogosfera, o debate da cultura digital e da cibercultura, a explosão das mídias livres em 2013 no Brasil com o surgimento da Mídia Ninja[7] e de tantos outros grupos midialivristas, se massificou de tal forma que hoje as redes sociais e mídias digitais são um microcosmos de tudo o que a sociedade tem, de melhor e de pior. Cabe tudo nas redes, todos os valores, dos mais progressistas, de apreço pela diversidade, de defesa da liberdade de expressão, de defesa de princípios constitucionais até os discursos de ódio, o Brasil neoescravocrata e racista, os discursos machistas. As redes expressam toda essa complexidade social.
A primeira internet e a primeira blogosfera refletia apenas uma parte do campo social. Daí ter sido possível fabular uma utopia das redes e uma cultura de redes, uma governança pelas redes não problemática. Mas os estudos da cibercultura, com a sua massificação, logo tiveram que tratar de problemas como os discursos de ódio, a destruição instantânea de reputações, os linchamentos digitais, os comportamentos de manada.
O princípio de inovação, a “desordem criadora” dos ambientes digitais, seu potencial disruptivo não se esgotou. Junho de 2013 é um exemplo, com o nível de invenções em termos de linguagens e formas de organização ativistas, ações massivas usando as redes e com grande incidência no tecido social. Foram vários fenômenos, campanhas, o uso das redes na Primavera das Mulheres, em microlevantes. Eu diria até o contrário, estamos em um momento, com a apropriação das redes por todos os grupos sociais, com seus mil tons de verde e amarelo, mil tons de vermelho e rosa, com a apropriação tecnológica pela extrema direita e pelos mais diferentes ativismos, que as redes se instituíram não mais como simulacro do tecido social, mas como parte constitutiva dessas novas sociabilidades.
IHU On-Line – Por que a internet, e em especial as redes sociais, se tornam canais de disseminação e potencialização do ódio, nutrindo uma realidade sombria e totalitária?
Ivana Bentes – Antes de mais nada porque esses discursos já existiam, mesmo que sem visibilidade. O que as redes sociais produzem é a possibilidade de se vocalizar e criar comunidades de pertencimento em torno dos discursos de ódio, em torno de discursos autoritários e de intolerância. Enquanto não se encontra um ambiente cognitivo e afetivo para esses discursos, alguém que os legitime, eles ficam nas sombras.
O que vimos no Brasil foi a volta do reprimido, a explosão de um campo conservador que ficou contido pelo avanço, nas últimas décadas, de políticas públicas que empoderaram novos sujeitos políticos. Movimentos potentes ganharam voz e estamos vendo um contra-ataque. Ou seja, se perdermos essa perspectiva de “reacionarismo”, perdemos o principal para entender essa fúria e essa hiperpolarização que marcou essas eleições e que já vinha se desenhando no horizonte.
A “involução cultural” bolsonariana é um projeto social e político contra um campo, que tem como objetivo destituir esses novos sujeitos do discurso que emergiram: perseguir, neutralizar, denunciar. É uma revolução reacionária que não inventa nada em termos de valores, mas que reinventa a direita e o campo conservador em termos de linguagem. Aí sim poderíamos dizer que é uma direita que se apropriou das redes digitais, da memética, do humor e ganhou uma linguagem pop. A comunicação nunca foi tão estratégica na disputa de mundos e modos de ser.
IHU On-Line – Uma das críticas às redes sociais e ao ambiente virtual de hoje é a de que nos fazem operar em sistema de bolhas. De que forma essas relações, que são agenciadas por algoritmos, podem inebriar a relação com “o outro”, o exercício da alteridade?
Ivana Bentes – O que são as “bolhas” senão comunidades de pertencimento, microambientes de partilha do sensível, onde nos sentimos confortáveis? As bolhas sempre existiram, pode ser a bolha familiar, o clube, o ambiente de trabalho, as turmas, a igreja. Temos mil lugares em que construímos zonas de conforto para não encarar o contraditório, o dissenso etc. Mas mesmo nesses ambientes “protegidos” não controlamos os conflitos. As redes sociais fazem isso de forma muito mais eficaz, através dos algoritmos direcionados para nossas afinidades que funcionam como um filtro diante do caos. Além dos algoritmos, que não controlamos, mas que trabalham criando nichos, cercas, focando nossa atenção, as pessoas bloqueiam outros usuários, apagam mensagens desagradáveis, direcionam o que querem ver primeiro. Tudo isso restringe os repertórios e cria essa ilusão de um mundo perspectivado, a partir de nossos valores e crenças.
O que é mais preocupante não é viver em “bolhas”, mas transformar o outro em seu inimigo. É a demonização e criminalização do outro. Não é admitir o perspectivismo, mas desejar eliminar o outro, eliminar as outras bolhas. É o que se configura como as “guerras culturais”. Uma hiperfragmentação e multiatores em conflito.
A democracia deveria ser o regime justamente da convivência entre os diferentes, o que gosto de chamar de ruidocracia, mas entramos em um modo de disputa de hegemonia furioso. Todas essas tentativas de censura e intimidação de professores e universidades é esse regime de intolerância diante do outro. Processos de silenciamento, profundamente autoritários e fascistoides.
IHU On-Line – Como compreender a forma como Jair Bolsonaro e todas as ideias que representa germinam nesse solo que constitui o ambiente virtual da internet de hoje?
Ivana Bentes – As plataformas digitais e as redes, o uso de WhasApp são as tecnologias disponíveis nas disputas narrativas, disputas de mundo e de valores. A diferença é que agora essas tecnologias foram descentralizadas. Estão sendo usadas pelos muitos e com objetivos muito diversos e pouco democráticos. Ou seja, a democratização das mídias produziu bolhas capazes de se tornar hegemônicas, disputar as maiorias e sair vitoriosas.
O Partido dos Trabalhadores, os movimentos sociais e culturais, as comunidades eclesiais de base, os sindicatos, as organizações não governamentais etc. fizeram isso na era pré-internet constituindo uma rede vigorosa que produziu um amplo campo de valores e criou uma base e um tecido social das esquerdas. Esse tecido e essa base se esgarçaram por mil fatores. Agora temos um outro campo disputando a narrativa mainstream. A pergunta é: Mas que valores estão em disputa? Qual o efeito no tecido social da vocalização de discursos e valores conservadores ou de extrema direita?
Me parece que é uma redução de mundos e de possibilidades. Estou monitorando grupos bolsonaristas desde outubro e os discursos são assustadores. Difundem um quadro de como funciona o que chamam de “Marxismo Cultural”, uma teoria fantasmagórica (como a “ideologia de gênero” que não existe) e que é a base para denunciarem livros didáticos, artistas, professores, exposições de arte, ativistas, tudo como parte da mesma conspiração comunista, esquerdista, gayzista, abortista, feminista etc. contra o “cidadão de bem”. É o pânico diante de tudo que não é “normativo”. Uma normopatia. Então uma parte da “revolução cultural reacionária” é isto: o desejo de aniquilar o outro. Diminuir sua potência.
É também uma guerra contra o simbólico. Que aposta na literalidade. Como fez o Movimento Brasil Livre – MBL[8] com o escândalo da exposição Queer Museu[9], que conseguiu fechar uma exposição de arte em uma instituição privada, o Santander Cultural, e carimbar como pedófila, pornográfica. Mas isso não resiste, não se sustenta durante muito tempo. A lógica da histeria e do escândalo por desinformação e malversação se esgotou quando a mesma exposição veio para o Rio de Janeiro, com financiamento do próprio público, e ficou em cartaz no Parque Lage, tendo sido vista por milhares de pessoas e com censura livre.
O mais preocupante seria transformar essa literalidade, essa morte do simbólico, esse ataque contra a complexidade da arte e da cultura, em políticas públicas. O que temos que denunciar é esse horror diante de tudo que não é normativo. Essa lógica maniqueísta e dual, uma educação militarizada, uma arte literal. Essa estética realista conservadora seria a morte da arte e da cultura. Discursos conservadores que incitam a morte simbólica e real, e colocam em risco sujeitos políticos, como vimos com o assassinato de Marielle Franco[10] e tantos outros ataques e intimidações.
IHU On-Line – WhatsApp e Facebook transformam as relações sociais no mundo digital e analógico. De que ordem é essa transformação? E que conexões podemos fazer com a descentralização da produção e emissão de informação, tarefas que antes eram majoritariamente executadas pelos veículos de comunicação?
Ivana Bentes – O advento das redes é uma mutação antropológica com incidência nas formas de sociabilidade, afetos, na política, nos modos de ser. Coevoluímos com esses dispositivos. O próprio Facebook e WhatsApp não têm o total controle dos efeitos e riscos desses dispositivos e plataformas. Então, a sociedade tem que se proteger, tem que exigir que se quebre a caixa-preta dos algoritmos, tem que exigir resposta para a enxurrada de fake news que incide no resultado de uma eleição, tem que questionar eticamente o descontrole das redes. Porque se um modelo de negócio produz tantos efeitos colaterais, tem que ser questionado. As fake news, por exemplo, não são um acidente, a produção de notícias falsas direcionadas para um nicho são o próprio modelo de negócio do Facebook.
Estamos diante de tecnologias que têm o potencial de violação de direitos e precisamos nos proteger. Os regimes jurídicos analógicos falharam nas formas de prevenção, combate, pedagogia para reduzir danos ou, em último caso, judicializar as violações massivas nas redes sociais. O que preocupa é não apenas o grau de inverdades e manipulações nas notícias, memes, discursos, mas a sua comunicação massiva automatizada, essa velocidade de difusão que produz danos irreversíveis muitas vezes.
O impasse hoje é como gerir essas práticas e aplicativos com poder de automação que proporcionaram uma nova ecologia midiática. Não se trata de distinguir as mídias “profissionais” e corporativas (a chamada grande mídia) das mídias ativistas, de opinião, mídias livres etc. Mas pensar regimes de controle social e governança, responsabilidades corporativas, regimes jurídicos com a mesma eficácia para neutralizar os abusos e violações.
IHU On-Line – Que associação e dissociações podemos fazer entre as milícias digitais e a militância política tradicional, que sempre teve as ruas como principal espaço?
Ivana Bentes – Estamos vendo uma transformação nas formas de fazer e pensar a política institucional com a emergência de movimentos de novo tipo, que surgiram tanto no campo progressista quanto no campo conservador, e nessas eleições vimos a emergência do que chamei de “milícias digitais”, quando o ativismo viola a ética, pregando ódio e intolerância, utilizando as fake news como modo de operação e estratégia de domínio, como milícias, poderes fáticos.
Temos exemplos do ativismo digital em todos os campos e matizes. Mídias e redes com capilaridade e uma linguagem nova (Mídia Ninja, a plataforma 342 capitaneada por artistas e ativistas do mainstream), a primavera das mulheres utilizando as redes contra os machismos e patriarcalismo, a geração tombamento utilizando o consumo e a festa como forma de política etc. É essa linguagem pop, esse ativismo mainstream, com a mesma força das milícias digitais, que pode derrotar o obscurantismo.
O próprio MBL, um movimento de uma juventude ultraconservadora, soube usar o potencial memético das redes e as guerras culturais em seu favor, é um desses movimentos de novo tipo e a eleição de Bolsonaro é a sua primeira vitória política. A direita tem utilizado as redes sociais de forma memética, abusando das fake news e do sensacionalismo sem pudor e produzindo ondas de indignação, revolta, comoção na disputa de um mundo com menos Estado e mais mercado, que pode se aliar e se expressar de formas variadas, com a cara negra e jovem de Fernando Holiday[11] ou de Kim Kataguiri[12], que saíram das redes para mandatos parlamentares com milhões de votos, até a cara de um pastor-deputado evangélico que promete curar os gays e libertar os praticantes das religiões brasileiras de matriz africana dos demônios. Tudo isso é a “nova” política, mesmo que estejam em questões valores conservadores e ultrapassados, mas a forma, a linguagem, o uso das redes é novo.
Lembro aqui a fala de Pedro D’Eyrot, cantor da banda curitibana Bonde do Rolê e um dos fundadores do MBL em um depoimento para a Folha de S. Paulo (entrevista de 7/10/2016), deixando claro a consciência que têm da disputa no campo da linguagem:
“Partimos da tese de que faltava estética e apelo para difundir na sociedade uma visão de mundo mais liberal. A esquerda contemporânea desenvolveu uma roupagem romantizada para seus ideais e, assim, formou uma militância consistente. Era preciso – com o perdão da ironia – revolucionar o liberalismo.”
Ou seja, os conservadores entenderam a disputa pela linguagem, a disputa do desejo, a disputa pelas formas e não só pelos conteúdos. E tiveram uma vitória significativa elegendo Jair Bolsonaro, uma figura caricatural e memética, como presidente do Brasil.
Os movimentos tradicionais, a militância de base, que chega nos territórios, que disputa as ruas, tem que entender a linguagem das redes. Talvez os grupos de WhatsApp, as páginas do Facebook sejam tão importantes para esse trabalho de base quanto ir para as periferias, os interiores. Acho que essa deveria ser uma das pautas de todo o campo democrático. Formação pelas redes e para as redes.
IHU On-Line – Jair Bolsonaro é eleito presidente da República tendo a internet como seu ambiente principal de comunicação, e seu primeiro pronunciamento como presidente eleito foi feito através de uma “live”. O que isso representa? Que relações sobre a comunicação social e a democracia podemos inferir a partir dessas experiências de campanha?
Ivana Bentes – A comunicação nunca foi tão estratégica na disputa de mundos e modos de ser. O campo conservador conseguiu emplacar o discurso que as esquerdas “eram o sistema”, que tinham dominado tudo com o que chamam de “marxismo cultural”. Mas o que tivemos foi um interstício de menos de duas décadas de governos progressistas. Ou seja, estamos vendo uma regressão e reação furiosa diante de avanços significativos mas ainda pequenos no campo cultural nas últimas décadas.
A vitória de Bolsonaro é um dos capítulos da “guerra cultural” que está sendo travada desde que vimos o Brasil ser “desinventado”. Uma desinvenção que produziu uma reação furiosa. Nos últimos treze anos, o Brasil passou por uma mutação antropológica que jogou por terra, abalou ou pelo menos deslocou alguns dos nossos mitos fundadores mais caros em uma sociedade profundamente desigual.
As cotas raciais demoliram a narrativa apaziguadora da “mistura das raças” e da “escravidão doce”. O emergente discurso feminista, LGBTQI+, os corpos trans, mostraram o quanto o machismo e o patriarcalismo matam e violam corpos. A “brancocracia” foi confrontada nos seus privilégios. Os banhos de sangue diários nas periferias e favelas foram assumidos pelo próprio Estado. Vimos o quanto de racismo e ódio aos pobres e negros o Brasil ainda produz e quanto a escravidão moldou nossas instituições e elites. Movimentos potentes ganharam voz e estamos vendo um contra-ataque.
Jair Bolsonaro é o triunfo dos memes na política. Os bolsonarianos colocaram em prática tudo o que nós vínhamos fabulando: a potência da cultura digital, a apropriação tecnológica pelos muitos, o poder dos desorganizados, tudo se efetuou pelo seu avesso.
2018 é um anti-Junho de 2013, ou sua face mais sombria. Ou seja, o veneno. O uso das redes de forma fulminante em uma disputa eleitoral é o veneno, mas também o remédio. Como viver em uma democracia em tempo real? Como conciliar a democracia participativa com a velocidade das redes, com decisões em tempo real? Voltando a Paul Virilio, temos que pensar profundamente sobre a “dromoscopia”, sobre a relação entre velocidade e política, sobre o presentismo, sobre nossa capacidade de sobreviver ao aceleracionismo e inventar dispositivos que liberem essas forças potentes para o bem comum.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Ivana Bentes – De tédio não morreremos!
Notas:
[1] O Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na seção Notícias do Dia de 19-10-2018, em seu sítio, reproduziu essa informação. (Nota da IHU On-Line).
[2] Saiba mais aqui. (Nota da entrevistada).
[3] Saiba mais aqui. (Nota da entrevistada).
[4] Saiba mais aqui. (Nota da entrevistada).
[5] Paul Virilio (1932): urbanista e filósofo francês. Estuda e critica efeitos perniciosos da velocidade nas relações sociais contemporâneas, desde os seus reflexos no processo cognitivo até suas implicações na política. É autor, entre outros, de Guerra pura (São Paulo: Brasiliense); O espaço crítico (Rio de Janeiro: Editora 34); A máquina de visão (Rio de Janeiro: José Olympio); Velocidade e política (São Paulo: Estação Liberdade); A bomba informática (São Paulo: Estação Liberdade) e Ville panique (Paris: Galilée). Reproduzimos duas entrevistas com Virilio sobre o seu livro Ville Panique, uma na edição 108 da IHU On-Line, de 05-07-2004, e outra na edição 136, de 11-04-2005. Dele, também foi publicada outra entrevista na 95ª edição da IHU On-Line, de 05-04-2004. (Nota da IHU On-Line).
[6] São Paulo: Estação da Liberdade, 1996. (Nota da IHU On-Line).
[7] Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação): é uma rede descentralizada de mídia de esquerda, com atuação em mais de 250 cidades no Brasil. Sua abordagem é conhecida pela militância sociopolítica, declarando-se ser uma alternativa à imprensa tradicional. O grupo ganhou repercussão internacional na transmissão dos protestos no Brasil em 2013. (Nota da IHU On-Line).
[8] Movimento Brasil Livre (MBL): movimento político brasileiro que defende o liberalismo econômico e o republicanismo, ativo desde 2014. Em seu manifesto, cita cinco objetivos: "imprensa livre e independente, liberdade econômica, separação de poderes, eleições livres e idôneas e fim de subsídios diretos e indiretos para ditaduras". (Nota da IHU On-Line).
[9] Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira: foi uma exposição artística brasileira apresentada no Santander Cultural, na cidade de Porto Alegre. A exposição gerou polêmica devido a inúmeras acusações de apologia à pedofilia, à zoofilia e ao vilipêndio religioso. O Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na seção Notícias do Dia, em seu sítio, publicou uma série de textos sobre a polêmica. Entre eles Queermuseu e o avanço da direita na rede; e “Caso Queermuseu mostra que são tempos de intolerância. Da direita, mas também da esquerda”. Leia mais aqui. (Nota da IHU On-Line)
[10] Marielle Franco [Marielle Francisco da Silva] (1979-2018): socióloga, feminista, militante dos direitos humanos e política nascida no Rio de Janeiro. Filiada ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), elegeu-se vereadora do Rio de Janeiro na eleição municipal de 2016, com a quinta maior votação. Crítica da intervenção federal no Rio de Janeiro e da Polícia Militar, denunciava constantemente abusos de autoridade por parte de policiais contra moradores de comunidades carentes. Em 14 de março de 2018, foi assassinada a tiros. Os autores do crime ainda não foram identificados. (Nota da IHU On-Line).
[11] Fernando Holiday [Fernando Silva Bispo] (1996): político nascido em São Paulo (SP), filiado ao Democratas (DEM), elegeu-se vereador de São Paulo com 48.055 votos nas eleições de 2016, sendo o primeiro homossexual assumido a ocupar tal cargo. É um dos coordenadores do Movimento Brasil Livre – MBL e ficou conhecido por convocar protestos favoráveis ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. (Nota da IHU On-Line).
[12] Kim Kataguiri (1996): político, ativista conferencista, conhecido por ser cofundador e coordenador do Movimento Brasil Livre, sendo uma das principais figuras do movimento liberal brasileiro moderno. Kataguiri é neto de imigrantes japoneses. Em outubro de 2015, a revista americana Time classificou Kataguiri como um dos jovens mais influentes do mundo naquele ano. Nas eleições de 2018, foi eleito deputado federal por São Paulo pelo DEM. Foi o quarto candidato mais votado. (Nota da IHU On-Line).
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Velocidade e política: os desafios para vivenciar uma democracia em tempo real. Entrevista especial com Ivana Bentes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU