28 Julho 2018
"A cultura clerical como um todo está indiciada pelo escândalo McCarrick. Mas, utilizar o caso para jogar a culpa sobre o Papa Francisco não tem nada a ver com proteger as crianças nem honrar as vítimas de abuso sexual clerical", escreve Michael Sean Winters, jornalista, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 27-07-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Católicos conservadores finalmente decidiram levar a crise de abuso sexual clerical a sério. Por quê? Porque seu antigo Nêmesis, cardeal Theodore McCarrick foi acusado de crimes indizíveis e porque acham que podem usar esta crise para atacar o Papa Francisco. É deplorável.
Na Catholic News Agency, o novo editor J.D. Flynn escreveu um ensaio que entrega o jogo da direita. Flynn apresenta alguns bons argumentos. Eu concordo que foi errado que os bispos não se incluíssem em 2002 dentro das restrições da Carta de Dallas para Proteção da Criança. E ele está correto em observar que ainda não descobrimos, e merecemos saber, a quem o bispo Paul Bootkoski de Metuchen e o arcebispo John Myers de Newark compartilharam as informações de que estavam fazendo acordos com os seminaristas, que não eram menores, mas que alegaram má conduta sexual por parte de McCarrick.
Mas, Flynn tenta espalhar a culpa. "Cardeal Joseph Tobin sucedeu Myers em Newark em 2017, e o bispo James Checchio sucedeu Bootkoski em Metuchen no ano anterior", aponta Flynn. "Cardeal Donald Wuerl sucedeu McCarrick diretamente em Washington em 2006. Aqueles homens tinham consciência da propensão de McCarrick para jovens seminaristas?"
Ele escreve: "Mesmo assim, parece praticamente impossível imaginar que Wuerl não tenha sido informado sobre os acordos sobre seu predecessor". E, sobre Tobin, ele escreve: "Foi relatado que ele foi escolha de McCarrick para liderar em Newark". Então ele parte para cima de um dos conselheiros mais próximos do Papa Francisco, cardeal Sean O'Malley, para questionar, citando uma notícia do New York Times sobre O’Malley receber uma carta com as alegações de McCarrick. "O que resta a ser esclarecido é se O'Malley comunicou os dois conjuntos de relatos ao Papa Francisco, e eles não agiram por intervenção de Francisco e do Vaticano, ou se as alegações não foram, por alguma razão, comunicadas ao Papa", escreve Flynn.
Eu gostaria de ver essa carta. Gostaria de saber se na verdade incluía alegações ou apenas boatos.
Flynn não é o único escritor fazendo afirmações com base em especulações. O conservador americano, Rod Dreher vai ainda mais longe.
"McCarrick há muito tem sido ligado a Francisco. Como eu escrevi no outro dia, o amigo de longa data e protegido de McCarrick, bispo Kevin Farrell, foi nomeado cardeal por Francisco e se tornou chefe de gabinete do Vaticano, responsável pela política da família para a Igreja em todo o mundo. Farrell aprovou o livro do padre James Martin defendendo a afirmação dos LGBTs na Igreja Católica e está supervisionando a reunião mundial sobre a família no próximo mês em Dublin, onde o padre Martin vai dar uma palestra."
E isto:
"E o cardeal Tobin? Como eu escrevi no outro dia, a influência de McCarrick com Francisco é a razão que se acredita estar por trás da rápida ascensão do Arcebispo Joseph Tobin na (sic) Indianapolis, que foi feito cardeal por Francisco, então se mudou para Newark, antiga arquidiocese de McCarrick."
Dreher, assim como Flynn, cita a notícia do New York Times sobre uma carta enviada pelo pe. Boniface Ramsey ao cardeal O'Malley e, finalmente, atualiza seu artigo com um comentário de alguém auto identificado como "Augustinus":
Farrell, Tobin e mais um grande: Cupich. McCarrick é a razão principal para que Cupich esteja em Chicago. Os últimos três cardeais americanos todos devem algo à patronagem ou intervenção de McCarrick.
Eu não sou jornalista, mas tenho uma boa noção de como certas nomeações episcopais se deram. É verdade que McCarrick selecionou Kevin Farrell para ser seu vigário-geral e bispo auxiliar em Washington, mas quem quer que seja que viesse a Washington provavelmente selecionaria Farrell para esse ou outro trabalho semelhante: ele é muito inteligente, muito organizado e muito pastoral. Sua transferência para Roma não teve nada a ver com McCarrick e muito a ver com O'Malley, Wuerl e Cupich.
Porque Wuerl saberia de alguma coisa sobre os acordos em New Jersey a não ser que McCarrick contasse? O primeiro, em 2005, foi feito quando Wuerl ainda era bispo de Pittsburgh e em 2007 ele tinha acabado de chegar a Washington. Eu suspeito que McCarrick não contou a ninguém porque é óbvio que ele estava mentindo para si mesmo nos últimos 60 anos e ele não iria ter problemas em mentir para os outros quando perguntado sobre os rumores.
Não obstante, McCarrick não tinha nada a ver com o fato de Joe Tobin se tornar cardeal, nem com sua transferência para Newark. Papa Francisco o conhecia pessoalmente por terem ido a um Sínodo juntos e, como muitos bispos latino-americanos, o então cardeal Bergoglio conhecia o então pe. Tobin de seu tempo como o superior geral dos Redentoristas.
Ross Douthat, no New York Times, se junta a este coro de tolos alegando que Tobin considera McCarrick "mentor" e que ele teria feito lobby para sua elevação. Uma pergunta rápida para Douthat: quando, precisamente, suas carreiras coincidem? Eu tive mentores. Geralmente eles moravam na mesma cidade ou nós trabalhávamos no mesmo escritório. Uma correção à história de Douthat. Ele originalmente declarou incorretamente que Tobin tinha sido auxiliar de McCarrick. Quando esse erro foi corrigido, talvez ele também devesse ter corrigido a alegação sobre a tutoria.
A ideia que McCarrick teve algo a ver com a passagem de Blase Cupich de Spokane para Chicago é ridícula. Os nomes que culminam com o apontamento do cardeal seguem esta ordem: cardeal Oscar Maradiaga, O'Malley, Wuerl e Francis George, com o falecido arcebispo John Quinn também fazendo seu papel.
McCarrick pode ter reivindicado o crédito por algumas nomeações episcopais chaves. Se não me engano, também reivindicou crédito pela eleição do Papa Francisco. Mas, veja o que está acontecendo aqui. Wuerl, O'Malley, Tobin, Cupich e McElroy são do time Francisco, então se alguma da história de McCarrick respingar neles e, portanto, no Papa, ótimo. Eu não me lembro da Catholic News Agency fazer um reboliço quando o arcebispo John Nienstedt foi removido do escritório: pessoas "sabiam" sobre suas travessuras por muito tempo também. Um escritório de advocacia realizou um inquérito e os resultados nunca se tornaram públicos. Será que a Catholic News Agency vai atrás daquele relatório para torná-lo público? Bispo Robert Finn nunca foi acusado de má conduta pessoal, mas ele foi condenado em tribunal de falhar em denunciar pedofilia. Nienstedt e Finn não eram liberais e não havia nenhuma maneira de culpar seus casos a Francisco ou a seus conselheiros mais próximos dos EUA.
Curiosamente, Flynn não reconhece o motivo para que muitos não acreditem nos rumores em torno de McCarrick: A fonte de muitos deles era a antiga praça de Flynn, a Chancelaria em Lincoln, Nebraska. Em 2001, quando The Washington Post recebeu um fax contendo rumores sobre McCarrick e sua casa de praia, o fax teve origem na Chancelaria em Lincoln. Bispo Fabian Bruskewitz era o bispo na época e odiava McCarrick por outras razões. Bruskewitz também não demonstrou qualquer preocupação especial para as vítimas de abuso sexual clerical. Ele foi um de apenas dois bispos que repetidamente se recusou até mesmo a conduzir a auditoria anual determinada pela Carta de Dallas. Flynn, como esperado, não menciona este fato.
Concordo que existam alguns cardeais que devem ser questionados sobre o que sabiam ou não sobre McCarrick, mas proponho uma lista diferente: Cardeal Angelo Sodano, Secretário de estado ao Papa João Paulo II de 1991 até 2006; Cardeal Giovanni Battista Re, substituto ou "chefe de gabinete" de Papa João Paulo II de 1989 até 2000 e, em seguida, prefeito da Congregação para os Bispos de 2000 até 2010; e, mais especialmente, cardeal Stanislaw Dziwisz, secretário pessoal do Papa João Paulo II por todo seu pontificado e, em seguida, cardeal-arcebispo de Cracóvia.
Sabemos que Sodano odiava o único cardeal americano que tentou bloquear McCarrick, cardeal John O'Connor. Não sei se O'Connor sabia sobre as alegações de má conduta sexual, mas ele não gostava da ambição de McCarrick. Sabemos que Sodano e Dziwisz ambos protegeram o pe. Marcial Maciel Degollado, e foram muito bem pagos pelos seus esforços. Sabemos que McCarrick angariou grandes somas tanto para a Igreja Católica na Polônia quanto para os dirigentes poloneses que trabalhavam em Roma. Sabemos que Re se envolveu em todas as decisões importantes e, com os outros dois, essencialmente tocou a Igreja nos últimos anos do pontificado de João Paulo II na medida em que a saúde do Papa se deteriorava. Mas, estranhamente, nem Flynn, Dreher ou Douthat menciona estes três.
E, finalmente, há o caso de Papa São João Paulo II, ele mesmo. Eu concordo que McCarrick deveria renunciar ao seu cardinalato ou ser demitido pelo Papa Francisco (Nota de IHU On-Line: no dia 28 de julho, a exclusão do colégio cardinalício foi confirmada pela Sala de Imprensa do Vaticano). Mas, e o Papa que fez McCarrick cardeal? Quem fez Hans Groer cardeal? Keith O'Brien cardeal? George Pell cardeal? Bernard Law cardeal? Quantos cardeais precisam ser desonrados por cometer abusos sexuais ou os encobrir antes que alguém questione a canonização "Santo Subito" do falecido pontífice?
O Papa São João Paulo II se recusou a enfrentar o mal que o cercava e lhe faltava uma das principais habilidades que um papa, ou qualquer líder, precisa: João Paulo II foi um péssimo juiz de caráter. Buscando aqueles que exemplificavam seu sacerdócio “heroico", ele concedeu o poder a bajuladores e criminosos. Sua Congregação para os Bispos estava interessada na remoção de qualquer um que questionasse Humanae Vitae, mas se esqueceram de se perguntar sobre o estupro de crianças ou sobre a invenção de desculpas para aqueles que o fizeram.
Eu entendo que existam razões teológicas pelas quais é impossível retirar o "São" do nome de alguém. Além do mais, eu sou quase um universalista e espero que haja espaço para todos no céu, até grandes pecadores como eu. Além disso, santidade e probidade moral são duas coisas diferentes, e a santidade é o que leva para o céu. Mas, e um enorme mas, nós poderíamos pelo menos implementar uma moratória em nomear escolas de "João Paulo, o Grande". O culto de João Paulo II não deve ser encorajado. Vamos trazer de volta a velha e muito sábia regra de que nenhuma causa de canonização será considerada até que uma pessoa tenha morrido há 100 anos.
A cultura clerical como um todo está indiciada pelo escândalo McCarrick. Mas, utilizar o caso para jogar a culpa sobre o Papa Francisco não tem nada a ver com proteger as crianças nem honrar as vítimas de abuso sexual clerical. Dreher, que tem uma das mentes mais interessantes da direita Católica, parece que com a intenção de colocar a culpa pelo escândalo no clero gay, me parece ridículo e ofensivo.
A Catholic News Agency não é uma agência de notícias: é o braço de propaganda da máfia católica de Denver, que visa canibalizar a Igreja Católica nesse país por suas extremidades, honrando o magistério de João Paulo II e a política do arcebispo Charles Chaput acima de tudo. Ainda fiquei chocado com a maneira em que ensaio de Flynn parecia infundido com um sentimento de repulsa de quem recém havia descoberto o assunto. Ele não prestou atenção nesses muitos anos no que o NCR tem reportado sobre o escândalo?
Há muito que a Igreja precisa fazer alguma coisa para enfrentar o câncer eclesial que está devorando suas entranhas. O Editorial do NCR apoia algumas dessas coisas, assim como eu. O caso de McCarrick especialmente aponta para a necessidade de algum processo pelo qual rumores sejam diferenciados de alegações, mas também, de alguma forma, averiguados. Mas, enquanto analistas conservadores estão mais interessados em distorcer a crise para fins ideológicos, devemos ter cuidado com o que eles aconselham.
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Conservadores distorcem escândalo McCarrick para atacar Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU