09 Julho 2018
Há algumas semanas, o Papa Francisco terminou uma de suas missas matinais em Santa Marta e, ao sair, trocou duas palavras com um conselheiro próximo. A pergunta era bastante rotineira. A resposta foi sincera.
– Tudo bem, Santidade?
– Muita pressão, desabafou Jorge Mario Bergoglio.
A reportagem é de Daniel Verdú, publicada em El País, 08-07-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O pontificado do Papa Francisco passa por uma fase decisiva. Depois de cinco anos e meio intensos, algumas de suas grandes reformas encalharam ou se encontram decolando. A transformação econômica, a estratégia de comunicação do Vaticano, a luta contra os abusos ou a reformulação da Cúria deram resultados díspares.
A euforia inicial diminuiu, assim como parte do eco midiático. Em breve, será a hora de renovar o impulso reformista com nomeações para cargos relevantes ainda pendentes na Secretaria de Estado, no Conselho de Assessores (C9) e em postos estratégicos da área econômica.
Em junho, ele continuou a acelerada configuração de um Colégio Cardinalício cada vez mais à sua medida, em que os purpurados que ele nomeou já superaram o resto. Mas as vozes críticas não param. São setores conservadores. Poucos e muito localizados, principalmente na área estadunidense, eles assinalam fontes de seu entorno. “Lá, a direita é organizada e tem dinheiro”, aponta um cardeal veterano. São vozes persistentes, agressivas e, de acordo com algumas das fontes consultadas, já pensam no substituto de Francisco.
A ala “ultra” entra para matar. Considera que Bergoglio, de 81 anos, não agiu até agora como corresponde a um pontífice. O jornal conservador Il Tempo trouxe uma grande manchete na semana passada, com grande entusiasmo tipográfico: “Habemus Papam”. Uma ironia que surgiu de um discurso em que o atual chefe da Igreja comparou o aborto por razões médicas (malformações, doenças...) com as práticas nazistas para preservar a pureza da raça.
No mesmo sermão, ele também enfatizou que uma família é formada apenas por um homem e uma mulher, algo que tranquilizou a curva mais exaltada da Igreja. Como se um papa pudesse dizer o contrário. “Ele é o chefe da Igreja Católica, não de uma organização progressista. Em temas sociais, ele é aberto, mas, doutrinalmente, é tão ou mais conservador do que Bento XVI. Quem pensa que ele pode aprovar o aborto ou os casamentos entre pessoas do mesmo sexo está muito equivocado. É claro que essa não será a sua herança”, diz um membro da Cúria que despacha com ele.
Francisco absorve a pressão e não costuma transmiti-la. Mas sempre que tem a oportunidade de fazer um discurso perante a Cúria – e já são cinco –, ele se queixa das fofocas, da falta de lealdade. Da “lógica desequilibrada e degenerada das intrigas ou dos grupelhos”, como ele disse no Natal passado no tradicional discurso a seus empregados.
Nos últimos meses, viu até o acusarem de herege. “Essas críticas tocam seu coração. Nunca tivemos na Igreja uma revolta tão forte dos conservadores contra o papa. Essa frente esteve tradicionalmente do lado do pontífice, e o que ocorre com Francisco é incomum. É difícil entender que passem de adorar Bento XVI a se comportar assim com Francisco”, assinala um conselheiro.
A corrente reacionária é liderada pelo cardeal Raymond Burke e espera que esse pontificado passe para a história como uma mera anedota. Mas será nos próximos tempos quando ficará clara a dimensão de seu legado, dentro e também fora da Igreja.
A missão política dos últimos papas mudou. O polonês Karol Woytila foi o pontífice que ajudou a derrubar o muro entre Leste e Oeste. E o atual – o primeiro em 13 séculos que não vem da Europa – procura derrubar a barreira invisível entre o Sul e o Norte. Ele tenta isso com a defesa das migrações – matizada ultimamente, quando assinala que só devem chegar os que possam ser acolhidos – em atos como a missa em São Pedro da última sexta-feira para celebrar o quinto aniversário da viagem a Lampedusa; a ecologia, à qual dedicou uma encíclica, ou a pobreza. Pode-se ver isso em todos os seus gestos e nas nomeações da cúpula eclesial.
Um dos últimos cardeais, por exemplo, é Konrad Krajewski, chefe do escritório de esmolas. Um homem distante da arrogância principesca a que se costumava conceder o anel e o chapéu vermelho, e que sabe de cor o nome de todas as pessoas sem-teto que vivem ao redor do Vaticano e da estação Termini. Tudo isso, sem dúvida, fará parte da pegada de Francisco, que também penetrou no mundo secular, onde o impacto social de sua obra é mais apreciado. Porque, às vezes, ele dá a sensação de que tem mais apoio fora da Igreja do que dentro, onde aqueles que esperavam reformas maiores estão impacientes, e as lutas pelo poder obstruíram áreas cruciais, como a econômica.
As finanças e o céu sempre se deram mal. Mas, depois de anos de caos, o Vaticano homologou suas regras e controles às do restante dos países. “O Moneyval [o órgão europeu que supervisiona a lavagem de dinheiro] certifica isso”, dizem fontes da Santa Sé especializadas nessa área.
O Banco do Vaticano (IOR), que gerencia cerca de 5,7 bilhões de euros, fechou mais de 5.000 contas suspeitas desde 2013. Reduziu-se o déficit, e há novos órgãos de inspeção. Os banqueiros agora expiram seus pecados nos tribunais e não são enforcados em uma ponte. Prova disso é o julgamento por lavagem de dinheiro e malversação de fundos do ex-presidente do IOR, Angelo Caloia, realizado nesta semana.
Mas auditores gerais foram demitidos em circunstâncias estranhas (espionagem, denúncias de coação e insinuações de corrupção), e, cada vez que alguém é contratado para trazer ordem, acaba sendo cortado.
O chefe de tudo isso era o cardeal australiano George Pell. Uma espécie de superministro de finanças que se encontra, há um ano atrás, em seu país, à espera do julgamento por acobertamento de abusos contra menores. Ninguém o substituiu.
Francisco decidiu confiar em Pell apesar das sombras que o acompanhavam de Ballarat, seu pequeno povoado natal, onde ocorreram centenas de abusos sexuais quando ele era sacerdote.
Muitos opinam que a sua ausência do Vaticano neste ano foi boa. “Havia uma guerra entre ele e o cardeal Calcagno [ex-presidente do órgão que gerencia o importante patrimônio da Santa Sé: 3.724 unidades imobiliárias no valor de cerca de 2,7 bilhões]. Muitos homens lutando por seus territórios, por cada centímetro de poder e influência...”, assinala um assessor. O que ninguém entende é por que não se nomeou um substituto. “Não é uma boa mensagem”, insiste essa pessoa, cética perante a possibilidade de que Pell tenha apresentado a sua renúncia ao papa, embora sua recusa em fazer isso compromete seriamente a linha de tolerância zero para com os abusos, algo crucial para o pontificado.
A viagem ao Chile de janeiro passado, uma peregrinação supostamente tranquila, converteu-se uma tempestade embaraçosa. Uma jornalista perguntou ao papa sobre os casos de abuso de menores de um sacerdote chileno e o encobrimento do caso por parte do bispo Juan Barros. “Não deveriam tê-lo deixado exposto a essa situação”, assinalou um empregado vaticano. Francisco escutou a pergunta e respondeu com raiva que eram “calúnias” e que não havia provas. Ele decidiu. “É o seu estilo. Ele acompanha algumas coisas muito de perto. E, se lhe perguntam, ele responde. Mas tem muita popularidade”, assinala um importante membro da Cúria.
Pouco tempo depois, ele assumiu o erro, pediu desculpas, encarregou uma grande investigação e deu uma grande guinada, que terminou com um convite às vítimas ofendidas no Chile para viajarem para Santa Marta, e uma história limpeza entre os bispos chilenos, que apresentaram sua renúncia em bloco. Esse foi um ponto de virada.
Ao chegar, Francisco anunciou que continuaria com a política de tolerância zero contra os abusos sexuais iniciada por Bento XVI. Ele criou uma comissão pontifícia para prevenir esses casos. Mas as duas vítimas que ele incluiu no novo aparato de prevenção abandonaram a comissão batendo a porta e denunciando a obstrução sistemática de suas propostas. Especialmente pela Congregação para a Doutrina da Fé, então presidida pelo cardeal Gerhard Müller, como assinalou Marie Collins, máxima especialista no assunto e ex-membro da comissão do Vaticano.
O purpurado alemão não foi renovado. “O papa mostrou boa disposição em assuntos concretos, mas não fez mudanças estruturais determinantes que possam ser mantidas depois dele. Quando outro pontífice chegar, com outra atitude, poderá retroceder. Essas mudanças estruturais seriam a única coisa que garantiria a segurança das crianças no futuro. No Chile, ele agiu bem, mas isso deveria se estender para toda a Igreja, e não ser casos isolados”, disse Collins por telefone.
Uma vez, perguntaram a João XXIII quantas pessoas trabalhavam no Vaticano. Ao que o pontífice respondeu ironicamente: “Mais ou menos a metade...”. A realidade é que são cerca de 4.800. Uma estrutura pesada que requeria uma transformação. Houve nomeações de mulheres, reduziu-se o número de dicastérios (ministérios do Vaticano), a estrutura é mais horizontal. E, para além de que se espera uma nova Constituição Apostólica da Cúria ou a certificação de um histórico degelo nas relações diplomáticas com a China, que (de acordo com fontes familiarizadas com o assunto, poderia ocorrer em 2019), há quórum para dizer que Francisco empreendeu uma reforma das formas.
“Ele é 100% jesuíta. Ele entende o pontificado como uma missão, como se fosse sua a diocese”, assinalam fontes do Vaticano. E haverá mudanças tangíveis realizadas por Francisco difíceis de desfazer, como a transferência da residência do papa para Santa Marta, um movimento para se afastar do enclausuramento autorreferencial do Palácio Apostólico. Um gesto que também tem seu reflexo no compromisso com a abertura ecumênica a outras religiões. Mas o que acontecer no próximo conclave determinará se outros giros são definitivos.
Na quinta-feira, 28 de junho, Francisco criou 14 novos purpurados: 11 têm menos de 80 anos e terão voz e voto para eleger o próximo pontífice. Os cardeais eleitores nomeados por ele (59) já são maioria em comparação com aqueles deixados por João Paulo II (19) e por Bento XVI (47).
Embora o avanço no controle do colégio não garanta nada (Bento XVI foi um dos dois únicos cardeais que João Paulo II não tinha criado quando o substituiu), o órgão de decisão – com 125 cardeais, cinco a mais do que o limite indicativo fixado por Paulo VI – tem agora uma composição mais heterogênea e periférica.
Há purpurados de cinco continentes e de 83 países, e uma grande parte praticamente não se conhece. Alguns, como o japonês Thomas Aquinas Manyo, sequer falam um idioma, para além do latim, que lhes permita se relacionar com seus colegas quando tiver que entrar na Capela Sistina e escrever um nome em um pedaço de papel.
As dinâmicas e a influência dentro do conclave estarão mais fragmentadas a partir de agora. Os possíveis lobbies ou pressões se diluirão com a multiplicidade de nacionalidades e de sensibilidades. Nos sinédrios vaticanos, sempre há disputas, e muitos insistem que é hora de que um italiano volte.
Mas as últimas nomeações não apontam para essa direção. “É possível que o próximo papa seja novamente americano ou hispano-falante”, afirma um veterano de alto cargo, representando cerca de 40% dos católicos. Fala-se até de um espanhol: o cardeal Juan José Omella. “É o homem de confiança do papa na Espanha, uma Igreja que ele aprecia e entende”, insiste essa fonte.
A Espanha é o único país que ofereceu um cardeal em cada um dos cinco consistórios celebrados por Francisco (no último, foram dois: Luis Ladaria, prefeito da crucial Congregação para a Doutrina da Fé, e o claretiano Aqulino Bocos).
Mas, para se celebrar um conclave, a sede de Pedro deverá estar vacante. Francisco deu a entender que seguirá os passos de Bento XVI – que renunciou em 11 de fevereiro de 2013 em meio a uma tempestade de escândalos – e se afastará quando não se sentir com forças.
“Os anos não passam em vão. E ele tem uma saúde que não é de carvalho. Mas está firme, é metódico, trabalhador, levanta-se muito depressa e é muito concentrado”, sublinhava o cardeal Bocos a este jornal um dia antes de sua nomeação. Uma renúncia, a curto prazo, não parece provável, ressaltam os especialistas. Entre outras coisas, porque se criaria a situação mais estranha na história da Igreja: três papas convivendo a poucos metros de distância. E, com dois, já foi um desafio.
No dia em que o consistório foi realizado, deu a volta ao mundo a foto da visita de Francisco a seu antecessor, para que abençoasse os novos cardeais. “O papa falso beija o anel do real”, intitulado um site. A realidade é que a convivência entre ambos, um fato insólito que poderia ter sido incômodo, tem sido excepcional.
Por isso, o Papa Francisco – conta um interlocutor – ficou muito chateado em março, quando o prefeito da Secretaria para a Comunicação, Mons. Dario Viganò, publicou uma carta particular que Ratzinger lhe tinha enviado.
Na missiva, ele defendia Francisco das críticas por uma suposta falta de preparação teológica, mas se escondeu um pequeno puxão de orelhas. O escândalo foi enorme, e Viganò acabou cessado em plena reforma da área da comunicação vaticana. A mudança da estratégia de comunicação havia sido apresentada em alta, com gigantes cartazes na Praça Navona com a foto do papa: a melhor marca da Igreja Católica hoje.
Francisco tem sido a reação audaciosa e fulgurante da Igreja ao descomunal desprestígio pelo que passou. Aos ventos de mudança que sopravam no mundo. A Divina Providência entendeu o que estava em jogo. Tudo devia ser novo. O primeiro papa jesuíta, o primeiro americano, também aquele que inaugurou o uso desse nome e o primeiro que conviveu com outro homem que se vestia igual.
A Igreja depois de Francisco? Um cardeal que participará do próximo conclave explica da seguinte maneira: “Há mudanças, uma nova atmosfera, a Cúria está mais aberta. Mas não está claro o que acontecerá com um novo papa. A chave está nas pessoas e na mentalidade. Também vimos gritos, discussões, decepções. Devemos esperar, pensar em longo prazo”. Uma medida capaz de ser estabelecida apenas por um pontificado.
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A hora do Papa Francisco: como será a Igreja deixada por Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU