22 Junho 2018
Há algo de alarmante no vai e vem febril e anômalo entre a Roma vaticana e o Chile para apurar a verdade sobre os abusos sexuais cometidos pelos sacerdotes daquela nação. O tormento e a determinação de Francisco permitem adivinhar isso.
O comentário é de Massimo Franco, publicado em Corriere della Sera, 21-06-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O papa quer ir até o fim e encerrar um caso que o expôs demais de modo imprevisto. O caso mostrou reticências, subestimações, mentiras, cinismo de parte do episcopado latino-americano; e uma desinformação sobre o verdadeiro porte dos escândalos, que não parou nem mesmo perante a exigência de proteger a figura de Jorge Mario Bergoglio.
É verdade que o Chile, visto da Europa, é quase mais remoto do que a Argentina. No entanto, essa feia história latino-americana corre o risco de se tornar um símbolo da dificuldade até mesmo do papa argentino de enfrentar com eficácia o problema da pedofilia na Igreja Católica.
“Esses escândalos não terminarão. E o escândalo chileno está se revelando como o espinho mais doloroso do papado...”, admitem pessoas próximas a Francisco, descrevendo seu sofrimento e seu assombro. A “sua” América Latina se demonstrou tão severa quanto o Norte do mundo em relação aos sacerdotes que se mancharam com crimes tão odiosos.
Mas, acima de tudo, talvez pela primeira vez, Bergoglio teve que fazer as contas com suas próprias convicções; e reconhecer que eclesiásticos considerados de confiança o haviam informado perigosamente mal. O escândalo tem reflexos vaticanos, porque repropõe o tema da seleção dos conselheiros papais e, às vezes, o da tendência de Francisco a preferir as indicações de pessoas amigas, ou supostamente tais, em relação às dos órgãos institucionais do Vaticano.
Os investigadores papais, Dom Charles Scicluna e o Pe. Jordi Bertomeu, que estiveram no Chile para recolher notícias, relatar e decidir o que fazer, também têm uma tarefa difícil por essa razão.
É como se o Vaticano tentasse remediar um erro de avaliação que, à primeira vista, parece inexplicável; mas que corre o risco de rachar a estratégia da “tolerância zero” contra a pedofilia iniciada por Bento XVI e continuada vigorosamente justamente por Francisco.
As renúncias em massa oferecidas há um mês ao pontífice argentino pelos 34 bispos chilenos foram um gesto inédito e traumático: embora não se entenda até o fim se foram apresentadas para ajudar o pontífice a agir ou quase como um gesto de desafio diante da deslegitimação do episcopado.
Os adversários de Bergoglio tentam credenciar maliciosamente a segunda versão. A única certeza é que aquilo que aconteceu é o resultado de uma corrente de reticências.
O cardeal Francisco Errázuriz, considerado um dos grandes eleitores de Francisco no conclave de 2013, membro do Conselho dos Nove, chamado para coordenar as estratégias da Igreja no mundo, não quis ou não soube entender o drama das vítimas; e, quando o escândalo estourou, ele chegou a defender que não era sua função informar o papa sobre problemas desse tipo; e isso apesar de ele supostamente ter se oposto à nomeação do bispo de Osorno, Juan Barros, removido sob a pressão da opinião pública chilena como um dos principais indiciados de pedofilia.
Além disso, alguns sítios católicos têm afirmado que, desde 2015, muitos estavam cientes do que estava acontecendo no Chile. A própria Congregação para a Doutrina da Fé havia assinalado repetidamente, com relatórios escritos, que algo não estava bem e que, portanto, eram necessárias investigações mais aprofundadas.
E, nos últimos dias, veio à tona o perfil controverso de um jesuíta espanhol, Germán Arana, guia espiritual de Dom Barros. Arana seria um sacerdote ouvido por Francisco. E agora é levantada a dúvida de que ele possa ter enganado o papa sobre Dom Barros: pelo menos até o dia 21 de janeiro passado, quando, durante o voo de volta do Chile, Francisco explicou que tinha mandado estudar o caso de modo aprofundado.
“Realmente não há evidências de culpabilidade e realmente parece que elas não serão encontradas”, disse o pontífice. Acrescentando, no calor do momento, que se tratava de “calúnias”. As suas palavras provocaram uma reação dura, de modo nada ritual, do arcebispo de Boston, Patrick O’Malley. E, poucas semanas depois, levaram Francisco a reabrir toda a questão.
O resto é crônica recente. O papa recebeu as vítimas chilenas no Vaticano, pedindo-lhes desculpas com palavras fortes e inequívocas. E, na viagem para a Irlanda que ele fará em agosto, se encontrará com as vítimas dos abusos do episcopado irlandês. Porém, há algo de circular e repetitivo nessas dinâmicas.
O esquema parece imutável. Acusações das vítimas. Investigações confusas, difíceis, muitas vezes cercadas por um halo de constrangimento e reticência. No fim, desculpas da Igreja. Às vezes, causas milionárias.
O resultado é o ultimato de fato às hierarquias eclesiásticas e a sensação de que nem mesmo o papa consegue romper o muro dos silêncios. Isso acontece do Chile à Irlanda, passando pela Austrália, pelos Estados Unidos, onde, nessa quarta-feira, 20, foi vetada ao cardeal Theodore McCarrick qualquer atividade, por causa de uma velha acusação de pedofilia.
Mas chama a atenção a ausência de uma elaboração cultural do fenômeno: uma análise que permita à Igreja Católica uma estratégia preventiva capaz de impedir que ela se encontre novamente no banco dos réus.
Até agora, ela só conseguiu reagir, sofrendo uma agenda ditada pelos outros. Não foi capaz de refutar as teses, em alguns casos instrumentais, que projetam sobre o Vaticano a suspeita de continuar protegendo a “cultura do sigilo” e os crimes perpetrados nas sombras.
Por isso, teme-se que aquilo que está acontecendo no Chile seja apenas a última etapa de um “escândalo infinito”. Os monsenhores que vão e vêm do Chile como virtuosos inquisidores, provavelmente, são os primeiros a ter consciência disso.
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As acusações contra a Igreja e o desafio de derrubar o muro dos suspeitos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU