12 Mai 2018
Francisco procura levar a Igreja e seus membros de volta ao básico do Evangelho em relação àquilo que significa ser um seguidor de Cristo.
A reportagem é de Robert Mickens, publicada por La Croix Internacional, 11-05-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Deveria estar claro agora que aqueles que estão mais escandalizados e confusos com o Papa Francisco encontram-se nas fileiras do clero católico e entre os leigos com uma mentalidade clericalista.
Eles julgam o primeiro papa que veio do Novo Mundo e o único jesuíta a ser eleito bispo de Roma como não convencional e não institucional, para dizer o mínimo. E isso tem pouco a ver com o seu local de nascimento ou pertença à maior ordem religiosa masculina da Igreja.
Francisco, assim como o santo de Assis cujo nome ele escolheu após a eleição ao papado, perturba seus críticos clericalistas porque ele é um discípulo radical de Jesus Cristo. De fato, ele talvez seja o papa mais radicalmente evangélico desde os primeiros séculos do cristianismo.
Nos últimos cinco anos, ele tentou libertar a Igreja Católica do seu apego não evangélico e obstinado às instituições e às estruturas dominantes (em implosão) moldadas na Roma imperial, às alianças com poderes sociopolíticos que usam a Igreja tanto quanto ela os usa, e a uma tradição jurídico-intelectual que às vezes parece mais ligada às filosofias greco-romanas do que ao próprio Evangelho.
Em seu último e importante documento, uma exortação apostólica intitulada Gaudete et exsultate, o franciscano de 81 anos procura levar a Igreja e seus membros de volta ao básico do Evangelho em relação àquilo que significa ser um seguidor de Cristo – e, mais pontualmente, àquilo que significa viver uma vida santa e centrada em Cristo.
“Ser santo não significa revirar os olhos num suposto êxtase”, diz ele em uma das frases que saltam da página (GE 96).
Ao contrário, Francisco deixa muito claro que a verdadeira santidade tem a ver com seguir – “sine glossa” – as Bem-aventuranças (Mt 5, 1-12) e estar atento ao grande critério do Juízo Final (Mt 25, 31-46).
Repetindo as palavras que Jesus proclamou no Sermão da Montanha, o papa diz que somos bem-aventurados (isto é, santos) quando somos mansos e misericordiosos, pobres de espírito e puros de coração.
Somos santos na medida em que somos pacificadores e pessoas que têm fome e sede de justiça, padecemos com os outros e aceitamos que, por causa de tudo isso, seremos ridicularizados e perseguidos.
E, quando morrermos, a santidade das nossas vidas será medida não por quantas novenas rezamos ou pelos dias santos de guarda que observamos, mas pelo modo como tratamos os pobres e os mais marginalizados, desprezados e necessitados entre nós.
Porque, do modo como os tratamos, teremos tratado o próprio Cristo. Segundo o Evangelho de Mateus, essas são as próprias palavras declaradas por Jesus.
Mas, por causa das regras e dos regulamentos canônicos que se tornaram tão ligados ao que significa ser um bom católico, nós provavelmente, com demasiada frequência, deixamos de ver muitas das pessoas santas ao nosso redor.
E, em vários momentos ao longo da história, a hierarquia da Igreja marginalizou e até puniu essas pessoas inspiradas no Evangelho, porque não satisfaziam suas exigências e expectativas institucionais, jurídicas e teológicas.
Francisco sabe disso muito bem. E, no relativamente pouco tempo que ele é papa, ele honrou aqueles que sofreram nas mãos da Igreja pela sua escolha radical de viver as Bem-aventuranças.
A última figura que ele destacou foi Zeno Saltini (1900-1981), um padre italiano que fundou uma comunidade intencional nos anos 1940 para cuidar de órfãos de guerra e das crianças abandonadas.
O Pe. Zeno modelou seu grupo de “Pequenos Apóstolos” (L’Opera Piccoli Apostoli) a partir da vida dos primeiros cristãos, como relatado nos Atos dos Apóstolos. Ele reuniu mulheres solteiras e alguns outros padres para ajudar a formar uma comunidade onde não haveria propriedade privada e onde todas as coisas fossem postas em comum.
Além disso, ele e seus seguidores eram partigiani antifascistas. E, por isso, foram condenados ao ostracismo.
Em 1948, pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial, eles ocuparam um antigo campo de concentração na Itália central e o renomearam como Nomadelfia (que significa “a lei da fraternidade”). Forças poderosas na Itália tentaram fechá-lo, e o Vaticano fez pouco para detê-las.
De fato, em 1952, o Santo Ofício (a atual Congregação para a Doutrina da Fé) ordenou que o Pe. Zeno deixasse Nomadelfia e retornasse à sua diocese. Por obediência, ele fez isso, e o projeto quase chegou ao fim.
Mas um rico patrono doou mais de 400 hectares de terra para os nomadelfianos, que somavam mais de 1.100 habitantes na época. Embora a maioria tenha se afastado, cerca de 400 deles se mudaram para o novo local, vivendo principalmente em tendas.
O Pe. Zeno, que achava difícil manter a comunidade atuante à distância, pediu ao Papa Pio XII que o laicizasse, para que ele pudesse voltar aos seus filhos e salvar a fundação. Seu desejo foi concedido.
Mas, nove anos depois, João XXIII restaurou o Pe. Zeno ao sacerdócio e abençoou sua contínua liderança a esse extraordinário apostolado.
Nomadelfia começou a florescer, montando suas próprias escolas e formando uma companhia de dança e de entretenimento para ajudar a gerar apoio financeiro para a comunidade.
Então, no verão de 1980, o Pe. Zeno levou seus filhos para a residência papal em Castel Gandolfo, onde se apresentaram para o Papa João Paulo II. Cinco meses depois, o padre morreu de ataque cardíaco.
João Paulo II visitou Nomadelfia em 1989, e, uma década depois, a diocese de Grosseto abriu um processo para a causa de beatificação-canonização do Pe. Zeno.
Quer ele fosse santo ou não, o padre certamente levou uma vida de santidade, como definida pelo Evangelho. E é por isso que o Papa Francisco visitou Nomadelfia na última quinta-feira – para dar mais apoio à comunidade de inspiração evangélica e prestar homenagem ao seu fundador.
“A Lei da fraternidade, que caracteriza a vida de vocês, foi o sonho e o objetivo de toda a existência do Pe. Zeno, que desejava uma comunidade de vida inspirada no modelo delineado nos Atos dos Apóstolos”, disse ele aos residentes.
Esse não é o primeiro padre antifascista e progressista que Francisco procurou elevar como modelo de serviço e discipulado cristãos.
No ano passado, ele rezou nos túmulos dois outros clérigos italianos – Primo Mazzolari e Lorenzo Milani. Ao longo de suas vidas, os dois padres foram perseguidos e humilhados pela sua própria Igreja por causa de suas posições muito avançadas e progressistas sobre pacifismo, ecumenismo e igualdade social.
O Pe. Mazzolari (1890-1959) era pároco na cidade de Mântua, no norte da Itália.
Muitos apontam para os seus escritos e seu serviço para destacar uma “Igreja dos pobres”, da liberdade religiosa e do pluralismo, que ajudou a plantar sementes importantes que começaram a dar fruto no Concílio Vaticano II. Muitos na Igreja o consideravam suspeito por causa de sua denúncia contra a teoria da guerra justa.
O Pe. Milani (1923-1967), que era de Florença, montou escolas para crianças pobres na zona rural da Toscana, onde seu bispo o enviou como uma espécie de exilado. Seu crime foi ter defendido o direito à objeção de consciência e ter encorajado sentimentos antiguerra. De fato, ele foi processado por causa disso.
A visita privada do Papa Francisco aos túmulos de Milani e Mazzolari foi vista não apenas como a reabilitação desses dois padres ativistas, à luz das suspeitas persistentes que alguns católicos italianos ainda podem manter. Ela também foi, em grande medida, um endosso às suas ideias e ensinamentos.
No mês passado, o papa elevou outro padre profético que muitas vezes desafiava as zonas de conforto católicas quando foi à região italiana de Apúlia, no sul do país, para marcar o 25º aniversário de morte do bispo Tonino Bello (1935-1993).
O padre Tonino – como ele insistia em ser chamado depois de se tornar bispo em 1982 – viveu de uma forma simples e foi um exemplo do que o Papa Francisco gosta de chamar de pastor que tem o “cheiro de ovelhas”. Ele era, na verdade, um padre das ruas.
O Pe. Tonino, que evitava honrarias e armadilhas clericais, dizia que as únicas vestes que a Igreja precisa são o Evangelho e um avental – para lavar os pés dos outros, como Jesus fez.
O bispo, que morreu prematuramente de câncer no estômago, foi um grande promotor da participação dos leigos nas estruturas decisórias e nos apostolados de serviço na sua diocese. E, como presidente da Pax Christi Itália, ele foi franco na sua oposição à Guerra do Golfo.
Saltini, Mazzolini, Milani e Bello…
Massimo Faggioli levantou um ponto importante sobre esses homens da sua Itália natal, homens que muitas vezes foram incompreendidos e difamados: “Eles eram padres radicais” – diz Faggioli – “e não ‘liberais’.”
Ao visitar os locais de sepultamento dessas cativantes figuras cristãs – e ao reconhecer tantas outras como elas – o Papa Francisco pontuou de uma maneira mais tangível a mensagem central da Gaudete et exsultate.
Nota IHU On-Line: Massimo Faggioli participará do XVIII SIMPÓSIO INTERNACIONAL IHU. A VIRADA PROFÉTICA DE FRANCISCO. Possibilidades e limites para o futuro da Igreja no mundo contemporâneo, que acontece do dia 21 a 24 de maio, na Unisinos, Campus Porto Alegre. Faggioli apresentará a conferência "O Papa Francisco na história papal do século passado e a periodização do seu pontificado", dia 22 de maio, às 9h.
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Papa continua reabilitando radicais e rebeldes da Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU