08 Abril 2018
O padre Reginald Foster, que ainda é amplamente reconhecido como a principal autoridade viva em latim do mundo, às vezes exclamaria, meio de brincadeira, com um típico floreio iconoclasta, que, se ele fosse papa, assinaria como lei 101 decretos para reformas irrevogáveis da igreja em seu primeiro dia no ofício e, em seguida, renunciaria 24 horas depois. Isto é, se antes ele não fosse encontrado morto em sua cama, lendo a Imitação de Cristo!
A reportagem é de Robert Mickens, publicada por La Croix International, 06-04-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Com 78 anos de idade hoje, o padre carmelita foi o principal latinista do Vaticano de 1970 a 2009 e um professor de longa data da Universidade Gregoriana, onde até mesmo (e, o que é irônico, especialmente) estudantes com tendências mais tradicionalistas absolutamente o amavam. Mas uma séria crise de saúde forçou Foster a se aposentar em sua Milwaukee natal, nos Estados Unidos, onde – devotamente – ainda dá aulas particulares em uma língua literária que já foi falada fluentemente, como ele gosta de dizer, “por todas as prostitutas da Roma antiga.
“Reggie” deleitava-se em chocar seus estudantes na Gregoriana com tais observações sugestivas. E ele apreciava especialmente fazer o papel de bobo da corte durante seus quase 40 anos na seção latina da Secretaria de Estado, particularmente durante o longo reinado de São João Paulo II. Suas gargalhadas, às vezes bizarras, nasciam de sua frustração com aquilo que ele uma vez lamentou em relação ao Vaticano, chamando de “teologia falsa, abuso das escrituras, tradições cegas, ameaças infernais e invocações irreverentes de algum D-e-u-s para cobrir tudo”.
Reginaldus conhecia bem aquele mundo. E, embora ele possa ter exagerado um pouco os seus defeitos, ele não os exagerou demais. Ele lia e supervisionava a tradução latina de quase todos os documentos vaticanos, grandes ou pequenos, que foram publicados durante suas quatro décadas de serviço a quatro papas diferentes (incluindo João Paulo I). Tendo chegado pela primeira vez a Roma como estudante em 1962, logo no início do Concílio Vaticano II, esse “amante latino” (o título real de um programa semanal que ele fazia na agora extinta Rádio Vaticano) viu de tudo.
O cenário fictício do Pe. Foster – um papa autocrático ou monárquico que, sozinho, decreta reformas em massa e, depois, imediatamente renuncia – veio à mente muitas vezes nos últimos meses. As reminiscências têm sido ocasionadas pelo crescente número de artigos e comentários privados oferecidos pelos católicos voltados à reforma e chamados de “católicos do Vaticano II”, que ficaram desapontados com o Papa Francisco diante daquilo que consideram um programa de reformas fracassado ou paralisado.
Paradoxalmente, muitos desses católicos não teriam escrúpulos se Francisco governasse a Igreja da mesma maneira não colegial que eles condenaram em alguns de seus antecessores. Eles fechariam os olhos para essa forma “não Vaticano II” de ser papa, apenas se ele implementasse suas reformas particulares e satisfizesse suas agendas eclesiais únicas, especialmente nomeando bispos e autoridades vaticanas que compartilhassem seus pontos de vista e removendo aqueles que não o fizessem.
Talvez, assim como os tradicionalistas católicos e os neotridentinistas, esses católicos pró-Vaticano II em particular não entendem suficientemente a verdadeira eclesiologia do Concílio ou o projeto de reforma do papa atual.
Ele está todo contido no projeto de seu pontificado, a exortação apostólica de 2013, Evangelii gaudium (A Alegria do Evangelho).
Em primeiro lugar, o Papa Francisco quer reforçar o princípio da colegialidade episcopal, a responsabilidade de governo compartilhada entre o bispo de Roma e todos os outros bispos em comunhão com ele. Embora fosse mais eficaz e rápido para ele tomar decisões unilateralmente e emitir decretos (a ditadura é sempre mais eficaz), isso seria prejudicial para o objetivo de incutir a colegialidade na vida da Igreja, um processo que exigirá muito tempo, paciência e provavelmente muitos erros dolorosos.
Em segundo lugar, Francisco quer ampliar o escopo da governança colegial a uma noção muito mais ampla de responsabilidade pela vida da Igreja, na qual todos os batizados desempenham um papel e têm voz. Isso se chama “sinodalidade”, na qual pastores e povo caminham juntos. Tornar este processo uma parte normal da vida eclesial será ainda mais problemático, demorado e propenso a acidentes do que a plena implementação da colegialidade episcopal.
Em terceiro lugar, é preciso distinguir cuidadosamente entre as reformas institucionais mais concretas que o Papa Francisco está tentando realizar e aquelas reformas que outros gostariam que ele fizesse. Muitos comentaristas deram notas baixas ao papa por ele não ser capaz de reformar os setores financeiros ou de comunicação do Vaticano. Basicamente, eles acreditam que o programa abrangente de seu pontificado tem sido a Cúria Romana e a reforma do Vaticano.
Eles não prestaram atenção. Essa era a expectativa de vários cardeais que o elegeram para o papado há cinco anos. Isso nunca foi uma agenda que Francisco inventou ou adotou especificamente por conta própria. Pelo contrário, como latino-americano e o primeiro forasteiro romano desde Pio X (1903-1914), ele concentrou a maior parte de sua atenção na Igreja longe do Vaticano. Autoridades curiais no “centro” da Igreja chamam-nas paternalisticamente de “províncias”. Francisco, com grande empatia e solicitude, chama-as de “periferias”.
Seria estranho e contraproducente para o papa gastar muito do seu tempo e energia reformando o centro, quando seu foco é capacitar e erguer a Igreja em outras partes distantes do mundo.
Assim, ele delegou a reforma da Cúria a outros, especialmente porque decidiu que não queria, nem era capaz, de impor sua maneira de fazer isso. Por exemplo, Francisco deixou claro desde o início de seu pontificado que sua preferência era fechar o chamado Banco do Vaticano (“São Pedro nunca teve uma conta bancária”, disse ele várias vezes desde o início). E, assim como fizera pouco depois de se tornar arcebispo de Buenos Aires, ele queria separar a Igreja de sua associação ou administração de instituições financeiras. Ele acreditava na época, e eu suspeito que ainda mais agora, que as instituições da Igreja deveriam ser, ao contrário, um cliente de instituições financeiras geridas externamente.
Mas… é difícil fechar um banco offshore que funcionou tão eficazmente por tanto tempo e no qual tantas pessoas têm interesses profundamente confiados. O papa pareceu ter decidido bastante rapidamente confiar a reforma financeira do Vaticano à facção no último conclave que se reuniu em torno do cardeal Angelo Scola. Assim, ele pediu que o cardeal George Pell, um de seus principais membros, liderasse essa reforma. O australiano foi além de sua autoridade e alienou muitas autoridades-chave do Vaticano, causando uma reação que não deveria surpreender ninguém. Agora ele foi embora – não porque Francisco o removeu, mas porque as autoridades judiciais australianas o convocaram para enfrentar acusações relacionadas a abusos sexuais.
O papa lidou com a clamada reforma das comunicações da mesma maneira. Essa reforma foi originalmente exigida pelo cardeal Pell e por alguns outros membros de um antigo comitê de cardeais que assessorou o papa em questões financeiras. O objetivo original era atacar a Rádio Vaticano, um empreendimento evangelizador não comercial que custava à Santa Sé muitos milhões de dólares por ano para pagar centenas de empregados e cobrir custos operacionais – sem propaganda ou outras receitas.
Ninguém sabe por que o Papa Francisco escolheu as autoridades que escolheu para supervisionar a reforma das comunicações, mas – como ele fez com muitas outras coisas envolvendo as instituições dentro do Vaticano – ele permitiu que eles prosseguissem sem oferecer um mínimo de envolvimento pessoal. Ele só interveio recentemente durante a confusão envolvendo o prefeito original da Secretaria para as Comunicações porque foi forçado a fazê-lo. No entanto, ele não removeu o prefeito, apenas o rebaixou levemente.
Alguns se perguntaram se o papa lavou as mãos em relação ao drama interno do Vaticano. Às vezes, ele parece não ter interesse algum com aquilo que ocorre na Cúria Romana. A confusão em torno da desastrosa reforma das comunicações e sua tolerância ou indiferença em relação às autoridades que regularmente o contradizem (como o cardeal Robert Sarah) pelo menos sugeririam isso.
Pode-se argumentar que ele decidiu que travar tais batalhas seria muito custoso e prejudicial para as reformas reais que ele prevê, coisas que são muito mais ambiciosas e abrangentes do que a limpeza do Vaticano que alguns cardeais do último conclave imaginaram para seu pontificado.
Em vez disso, o Papa Francisco está reformando dia a dia a instituição do papado e o paradigma da Igreja global, lançando as bases para uma maior descentralização e uma reestruturação sinodal da autoridade e da tomada de decisões. Ele está estabelecendo processos que protegem e aprimoram a pregação do querigma (o cerne da fé cristã) como a fonte e o cume da missão e da identidade da Igreja, em vez de se concentrar obsessivamente nos ensinamentos morais e nas “regras mesquinhas”.
Francisco retomou o apelo de João Paulo II no fim do Grande Jubileu para avançar para águas mais profundas. Ele colocou a Igreja em uma nova jornada longe dos portos seguros ou dos espaços confortáveis das de nossas velhas instituições e estruturas em ruínas. Não está claro como ou quando ela chegará a alguma Terra Prometida. Mas devemos ter a confiança de que esse papa entende muito bem que a Igreja deve se mover rapidamente para lançar novas fundações que a posicionem para se adaptar melhor às maiores (e atualmente em curso) mudanças sociais na história da humanidade. Ele reconhece corretamente que a organização interna do Vaticano é “café pequeno” no esquema geral das coisas.
Mas o bispo de Roma não pode e não deve tentar fazer isso por conta própria. E os católicos não devem esperar que ele o faça. Não seria apenas um passo para sufocar os desenvolvimentos eclesiológicos do Concílio Vaticano II, mas também seria também uma contradição com o seu próprio programa de reformas.
E isso nos leva a um outro elemento em jogo aqui. É algo que muitos de nós não gostam de admitir ou sequer estão cientes. É aquilo que eu geralmente chamo de gene mutante no nosso DNA católico – a papolatria.
Isso é algo muito diferente do amor, respeito, solidariedade orante e devoção filial que todos os católicos são obrigados a oferecer ao bispo de Roma. Em vez disso, é uma idolatria divina do sucessor de Pedro e uma expectativa exagerada de que ele exerça poderes que ele não possui.
Seremos lembrados disso em algumas semanas, durante a primeira leitura na missa do Sexto Domingo de Páscoa (6 de maio). Ouviremos o Pedro original repreender um centurião chamado Cornélio, que se curvou para adorar aquele que muitas vezes é chamado de “primeiro papa”.
“Pedro o levantou [Cornélio], dizendo: ‘Levante-se. Eu também sou apenas um homem’ (Atos 10, 26)”.
De fato. E o Papa Francisco também.
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O papa não é um autocrata, mágico ou milagreiro: por que muitos católicos entendem mal o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU