17 Outubro 2017
O jornalista e pesquisador italiano Fabrizio Grasso diz que quando renunciou em 2013, o Papa Bento XVI transformou a instituição do papado para sempre. Entre outras coisas, o autor diz que “não é difícil imaginar um futuro próximo possível com mais de um papa emérito e, por consequência, um clube papal exclusivo, que bem poderia ser um protoparlamento do Estado do Vaticano”.
A reportagem é de Claire Giangravè, publicada por La Croix International, 16-10-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Os católicos tiveram de se acostumar com muitas novidades ultimamente. O Estado secularizado no Ocidente aos poucos vem marginalizando a fé, e os cristãos têm sido vítimas de perseguições ao redor do globo. E mais: a Igreja teve de conviver com o fato de que, pela primeira vez na história, há, atualmente, dois papas morando no Vaticano.
Embora muitos católicos facilmente se ajustaram à existência dual do Papa Francisco e do Papa Emérito Bento XVI, é inegável que uma outra porção não consegue deixar de comparar os dois papados, ou mesmo expressar uma preferência por um estilo em detrimento de outro.
Exemplos disso podem ser encontrados no fato de o Netflix ter começado as filmagens de um longa-metragem em torno dos dois papados, estrelando Anthony Hopkins como Bento XVI, mostrando que, pelo menos sob a vista do mundo secular, uma comparação entre estes dois papados pode contar com o apelo de uma audiência mais ampla.
Enquanto alguns preferem a ortodoxia do Papa Bento e sua doutrina clara e direta, outros gravitam em direção à abordagem pastoral e progressista do Papa Francisco, criando, segundo o jornalista e pesquisador italiano, um novo fenômeno dentro da Igreja Católica.
“Nem mesmo a Revolução Francesa, a Tomada de Roma e o Concílio Vaticano II (que criou um racha ainda existente dentro da Igreja) foram capazes de desestabilizar a instituição política ocidental”, escreve Fabrizio Grasso em sua mais recente publicação intitulada “A abdicação”.
Isto quer dizer, até 11-02-2013.
Nesta data, o Papa Bento XVI oficialmente renunciou à posição como papa, citando fadiga e idade avançada. Inúmeros ensaios, livros, estudos e análises se fizeram desde então, e Grasso está bem ciente de que a sua contribuição se apresenta tardiamente neste cenário e em meio de uma série infinita de comentários.
No entanto, o autor não focaliza a renúncia em si, o que encontra vários precedentes na história eclesiástica, mas sim no fato de Bento XVI escolher o título de Papa Emérito, em vez de Bispo Emérito de Roma, criando aquilo que ele percebe como uma ruptura fundamental dentro da Igreja.
Afinal, Bento continua a viver no Vaticano, veste-se de branco e é referido com “Sua Santidade”, tornando a sua renúncia, segundo Grasso, “incomparável à de seus antecessores”.
“O ‘sempre’ é também um ‘para sempre’ – não há mais um retornar ao privado. A minha decisão de renunciar ao exercício ativo do ministério não revoga isto”, disse Bento na sua última audiência geral.
“Não carrego mais o poder do ofício para o governo da Igreja, mas no serviço da oração estou, por assim dizer, no recinto de São Pedro”, completou.
A fim de tentar compreender as implicações possíveis, Grasso cita o arcebispo alemão Georg Gänswein, quem tem tido uma visão privilegiada dos dois papados uma vez que serve como prefeito da Casa Pontifícia para Francisco e como secretário do pontífice aposentado Bento XVI. Durante a apresentação de um livro em maio de 2016, Gänswein deixou em aberto a possibilidade de um “ofício petrino ampliado” com um membro contemplativo e outro ativo.
Gänswein apontou para uma continuidade entre os dois papados no que chamou de “Ausnahmepontifikat”, isto é, um “pontificado excepcional”. Tendo estas palavras em mente, Grasso se pergunta sobre se o arcebispo estava querendo dizer que “para guiar a Igreja e o papado, um papa não basta”.
As reflexões do escritor se baseiam grandemente no teórico político católico alemão Carl Schmitt e em seu conceito de teologia política. Grasso pega emprestado a definição do “político”, de Schmitt, definida como uma escolha que requer, inevitavelmente, uma justaposição entre amigo/inimigo. Esta dicotomia alimenta os nossos partidos e debates políticos, porém, de acordo com o autor, jamais consegue ganhar terreno dentro da Igreja, graças à transmissão secular do papado a uma figura singular, o papa, quem, sozinho, exerce a soberania e a autoridade.
“Soberania e autoridade [foram] paradoxalmente atingidas e, talvez, demolidas, pelo menos de um ponto de vista secular, com a abdicação de Ratzinger, a qual, ao alargar o ministério para englobar um membro contemplativo e um membro ativo, na verdade dividiu e multiplicou a autoridade e a soberania, as quais eram prerrogativas indivisas de um único pontífice”, escreve Grasso.
Segundo o autor, até 11-02-2013, “o papa era o último representante vivo da república christiana medieval”, onde os poderes sagrado e temporal estavam concentrados em um único papel impermeável à dinâmica do “nós versus eles”’ que alimenta e fomenta o debate político nas democracias modernas.
O que o autor descreve no livro é uma “internacionalização”, pela Igreja Católica, de um conflito, típico do domínio político, que nunca existiu antes. Este assunto é mais relevante dado que os dois pontífices reconhecem a autoridade e a posição um do outro, algo que nunca ocorrera na história papal.
Uma objeção que se pode levantar ao “filosofar” autodefinido pelo autor é sobre se essa divisão entre o papa e o papa emérito tem, de fato, alguma relevância real.
“Só precisamos procurar, no mecanismo de busca mais popular [da internet], pela frase ‘Benedetto contro Francesco’ (…) para nos vermos imersos em mais de 500 mil resultados, e se tentarmos com ‘Benedict vs Francis’, haverá mais de 400 mil resultados. Portanto, só em italiano e em inglês há quase um milhão de links que interceptam este conflito diretamente”, escreve Grasso.
O autor admite que uma grande parte destes links pode ser considerada lixo, mas ele também aponta para o grande número de organizações noticiosas e blogs, católicos e seculares, que também promovem a justaposição entre os dois papas, normalmente trazendo uma preferência entre eles. Afinal, escreve Grasso, a renúncia por Bento não foi somente um evento histórico como também um evento midiático global, que, sem dúvida, influenciou a percepção geral.
O livro evita trazer qualquer consequência tangível possível do paradoxo do papa duplo, mas levanta questões e possibilidades daqui para frente que poderiam sistematicamente mudar as distribuições milenares de poder dentro da Igreja.
“Até mesmo para aqueles com pouca imaginação, não é difícil imaginar um futuro próximo possível com mais de um papa emérito e, por consequência, um clube papal exclusivo, que bem poderia ser um protoparlamento do Estado do Vaticano”, acredita Grasso.
É impossível dizer se os papas a renunciar irão se transformar em algo relevante, e as implicações da renúncia histórica de Bento, bem como o seu papel como papa emérito, ficarão para a história julgar.
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Papa Emérito “multiplicou a autoridade” no papado, diz autor italiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU