05 Junho 2017
Ele é refém de uma lenda negra refletida até mesmo pelo dicionário da RAE. A terceira acepção de jesuíta é “hipócrita, astucioso”. Poucas instituições da influência universal da Companhia de Jesus foram tão admiradas e odiadas ao mesmo tempo em 500 anos de história. E tão dadas a ressurreição. Após sua queda em desgraça sob o pontificado de João Paulo II, esta ordem religiosa viu como, em apenas uma década, um dos seus se sentava pela primeira vez na cadeira de Pedro.
Um poder político que serviu de exército católico contra a Reforma, defendeu os indígenas americanos e evangelizou a Ásia para ser perseguido por reis que viram nele uma ameaça. Um poder de conhecimento que cultiva a ciência, educa os mais humildes, dirige universidades de elite e ao mesmo tempo se postulou como inimigo do Iluminismo. Uma história de luzes e sombras. Quem hoje lidera os discípulos de Inácio de Loyola é, desde outubro passado, o primeiro Superior Geral nascido fora da Europa e a única pessoa que – de forma figurada – poderia dizer que é chefe do Papa Francisco pelo passado jesuíta de Jorge Bergoglio.
Arturo Sosa (Caracas, 1948) é alguém que parece um reflexo no espelho do Pontífice. Um é o Papa negro (Sosa) e o outro é o Papa branco (Francisco), as duas figuras mais poderosas do catolicismo. O apelativo de papa negro nasceu pela influência atribuída aos gerais jesuítas no governo da Igreja e pela cor de suas vestimentas. Sosa é latino-americano, como Bergoglio, progressista, como Bergoglio, e vitalício no cargo (salvo renúncia aceita), como Bergoglio. Dirige uma multinacional que está presente em 127 países e conta com 18 mil membros que foram descritos pelo escritor (e jesuíta) Pedro Miguel Lamet como “CEOs da Igreja”.
Arturo Sosa mora na cúria geral de Roma, situada a 100 metros da Praça de São Pedro, com 56 companheiros. Uma placa na porta anuncia que o prédio faz parte da jurisdição diplomática da Santa Sé. Na hora indicada aparece o Pe. Patrick Mulemi, jesuíta da Zâmbia e responsável pela comunicação da ordem, para me acompanhar até o andar de cima.
A entrevista é de Jorge Benítez, publicada por El Mundo, 31-05-2017. A tradução é de André Langer.
Somos recebidos pelo Arturo Sosa em uma sala de reuniões com um forte aperto de mãos e ele agradece ao jornalista por ter vindo de Madri. O padre Mulemi tira um gravador e uma câmera digital e senta-se na outra ponta da longa mesa de madeira. De repente, seu sorriso parece transformar-se em uma ampulheta.
O Papa Francisco é visto com simpatia pela esquerda na Espanha e até mesmo pelos ateus. O papa é de esquerda?
"Essa é uma categoria difícil de trabalhar. O Papa viveu momentos políticos difíceis em um continente que tinha guerrilhas e ditaduras militares. Para mim, Bergoglio é um homem do Concílio Vaticano II. Este acontecimento foi muito importante para a Igreja da América Latina, uma ocasião ideal para contornar muitas coisas. Ele viveu esta revolução interna em seu país. Falamos de um período em que a Companhia de Jesus elege o Padre Arrupe como geral dos jesuítas, uma pessoa que alentou essa transformação e que o nomeia provincial em uma época muito tensa... A esquerda disse que Bergoglio era de direita e a direita, que ele era de esquerda. Acontece que ele não se deixa levar por um vento ou por outro. Tem seu próprio pensamento. Depois, quando é nomeado bispo de Buenos Aires, conheceu muito bem a periferia de sua diocese. É essa experiência como pastor em um lugar complexo que ele proporciona como Papa."
Sua eleição e a de Francisco parece que terminaram com o eurocentrismo no governo da Igreja.
"Não concordo com essa questão do eurocentrismo se atendemos a uma definição como doença. A Igreja se expandiu em seus primórdios graças à generosidade e a audácia da Europa. É verdade que neste continente há um processo de secularização, mas também não podemos esquecer que desde muito cedo a Igreja se considera católica, isto é, universal, e isso nos permitiu gozar de uma grande diversidade. Essa foi uma das primeiras tensões que a Igreja primitiva viveu: decidir se devia ser judaica ou católica."
O que sentiu quando viu o cardeal Bergoglio saudar a multidão, muito próximo daqui, eleito como o primeiro Papa jesuíta da história?
"Reconheço que foi uma grande surpresa."
O Padre Sosa usa colarinho e veste um suéter de lã e calça cinza. A sala, assim como os corredores e elevadores, é funcional, longe da espetacularidade do Gesù, sede do Superior Geral (e o Santiago Bernabeu da devoção jesuíta) nos primeiros séculos. O Gesù, talvez, não seja a mais bonita das 900 igrejas que existem em Roma, mas é a mais esplêndida, de um barroco anfetamínico – como deve ser todo barroco – que reflete o poderio da Companhia em seus primeiros anos e cujo desenho marcou a arquitetura jesuíta em todo o mundo.
A priori, este neto de cântabro não era o favorito nas apostas para ser o novo papa negro. Os jesuítas consultados para fazer esta reportagem acreditam que foi uma escolha acertada, porque o novo Superior Geral combina uma “importante formação intelectual” – é doutor em Ciências Políticas e licenciado em Filosofia – com o compromisso social. Foi definido como alguém que “sabe ler o mundo”; no entanto, em pouco tempo, sua leitura já encontrou detratores dentro da Igreja. Falamos de alguém que questionou o rigor dos Evangelhos e definiu a Teologia da Libertação, anátema até pouco tempo atrás na cúria vaticana, como uma “lufada de ar fresco”.
O padre Sosa foi eleito superior dos jesuítas de acordo com os critérios centenários da ordem. Durante quatro dias, os congregados com direito a voto participaram de um processo conhecido como murmurações, uma série de conversas em que os participantes do conclave jesuíta abordam temas que vão desde a idoneidade de um irmão para ocupar o cargo, seu estado de saúde ou sua capacidade de liderança. Trata-se de um sistema em que impera a sobriedade, afastado da pompa que envolve uma eleição papal. Suas normas proíbem fazer campanha por ninguém e fazer julgamentos de valor. Uma vez eleito o novo líder, este vai à capela, faz o juramento como geral e dirige-se até o quarto que Santo Inácio ocupava no Gesù.
Um amplo setor da sociedade sente que no Vaticano reage-se com muita lentidão às mudanças sociais. Estão as leis da Igreja escritas em pedra?
"A Igreja está há milhares de anos funcionando e mudando as coisas. Não devemos simplificar sua história. A lei é um instrumento e sempre viveu do debate. Foram necessários séculos para aceitar determinadas doutrinas, desde os Evangelhos até o Credo. A Igreja nunca foi uma pedra, embora, às vezes, seja vista dessa maneira. Quando terminou o Concílio Vaticano II, eu tinha 18 anos e uma vontade muito grande de ver todas as mudanças em 10 anos. Já se passaram 50 anos e ainda restam muitas coisas por fazer. O debate não parou nem vai parar."
Eu falo de questões concretas, como um maior protagonismo da mulher na instituição, o reconhecimento dos direitos dos homossexuais ou o uso de anticoncepcionais.
"O papel da mulher na sociedade não foi fácil, as sociedades ainda são muito machistas. No Evangelho a presença da mulher é muito clara..."
Referia-me ao seu acesso ao sacerdócio.
"Jesus não atendeu às normas comuns das mulheres do seu tempo. Mulheres sempre o acompanharam. A Igreja nunca existiu sem elas. Para mim, são as grandes transmissoras da fé. Chegará o momento em que seu papel será mais reconhecido. A Igreja do futuro tem que ter uma hierarquia diferente, com alguns ministérios diferentes. Eu apelo à criatividade feminina para que dentro de 30 anos tenhamos comunidades cristãs com outra estrutura. O Papa já abriu a porta do diaconato [cargo clerical que não pode presidir a Eucaristia] criando uma comissão. Em seguida, outras portas poderiam se abrir. O problema é se a Igreja muda e reflete uma relação diferente entre homem e mulher."
E em relação ao matrimônio gay?
"Uma coisa é o pensamento público e oficial e outra, o que acontece nas comunidades. Uma coisa é a homossexualidade e outra é meu companheiro homossexual, aquele que faz parte da minha família, do meu entorno. Na vida religiosa há homossexuais e eles não são perseguidos, fazem parte da comunidade. O sacramento [do matrimônio] é outro tema; uma coisa é reconhecer o estatuto civil para que não haja discriminação e outra coisa é o aspecto teológico. Os sacramentos não nascem assim (estala os dedos)."
A Companhia de Jesus viu-se salpicada pelos casos de abusos sexuais que atingiram o clero. Ela teve um comportamento exemplar em muitas dioceses, denunciando e apoiando as vítimas, mas em outros casos participou de um silêncio vergonhoso.
"Devo dizer que isso foi muito doloroso. Estas coisas foram mantidas muito ocultadas, e descobri-las foi, repito, muito doloroso, com o envolvimento de pessoas muito reconhecidas. Se é assim, devemos reconhecê-lo e aprender a ser transparentes. Isso não é somente um problema com o jesuíta que está envolvido, mas há uma pessoa que é vítima. Na maioria dos casos, os dois são vítimas, porque uma pessoa pode ter sofrido abusos antes ou se é acusado..."
Mas uma criança é muito mais vulnerável...
"Sim, quando é uma criança e quando não são crianças. Mas, às vezes, houve acusações que foram mentiras comprovadas. Conheço várias dessas mentiras impulsionadas por vinganças ou por razões econômicas, pessoas acusadas e condenadas a priori. Na última Congregação Geral da Companhia deixamos claro que a salvaguarda dos menores é prioritária. Mais da metade dos jesuítas trabalha com crianças ou com adultos vulneráveis. Criamos protocolos de comportamento, de vigilância, formas de agir quando há uma denúncia com a diretriz de investigar sempre. O Papa já o disse: “Tolerância zero”. Quando há casos, devem ser tomadas as medidas eclesiais e civis correspondentes."
Em relação a isso queria lhe perguntar sobre as indenizações às vítimas e as sanções impostas aos culpados de abusos dentro da ordem. Muitos dos casos que vieram à tona prescreveram no marco da justiça comum de muitos países.
"Nós pagamos muitíssimas indenizações, em sua maioria nos Estados Unidos e na Europa. São cumpridas tanto as sentenças civis como as canônicas. O risco deste problema sempre existe, mas nem por isso vamos deixar de educar. Hoje somos muito mais conscientes como humanidade da necessidade de proteger mais as crianças. Também é verdade que, estatisticamente falando, há grupos sociais mais abusadores, embora isso não nos desculpa. Nada é justificável, nem mesmo pela história pessoal do abusador. É preciso saber como agir."
Sosa nunca se furtou a discutir a questão político-social venezuelana. Embora discreto, não esquece sua formação de cientista político. Além disso, conhece muito bem a história do país: seu pai ocupou cargos importantes no governo. Em muitas ocasiões mostrou-se muito crítico com o chavismo.
Em 1992, foi mediador no frustrado golpe militar que teve no jovem Hugo Chávez um dos seus líderes. Naqueles dias, os golpistas exigiram proteção no momento em que seriam transladados à prisão, porque temiam ser vítimas de um atentado. E ele foi um dos garantes da sua segurança. Ninguém vislumbrava que sacerdote e comandante se transformariam nas duas personalidades mais importantes da historia recente da Venezuela. No momento em que se realiza esta entrevista, o presidente Maduro acaba de anular a ordem de fechamento do Parlamento. Os protestos nas ruas e a pressão internacional fizeram o regime recuar nas últimas horas.
A Venezuela é hoje uma democracia frágil ou uma ditadura?
"É uma democracia tão frágil que se rompeu. Se compararmos os parâmetros que medem uma ditadura ou uma democracia com a Constituição aprovada em 1999, estamos cada vez mais longe. Nela o chavismo se caracterizou pelo reconhecimento radical dado aos direitos humanos. Mas estamos muito longe do seu cumprimento. Sofre-se um dos índices de mortes violentas mais altos do mundo, há desnutrição, falta de remédios, não há uma educação de qualidade, nem infra-estrutura... Uma democracia na qual as eleições não acontecem nos seus devidos tempos e na qual os poderes públicos não se respeitam mutuamente não é séria."
O padre Sosa faz uma breve análise sobre a situação social venezuelana. Explica os problemas do país derivados da falta de distribuição do petróleo, o que, na sua opinião, impede há décadas o desenvolvimento de uma sociedade mais justa. Enquanto ele fala olho para a contagem do gravador e a cara do padre Mulemi. O tempo está acabando. Dois dias antes, recebi uma mensagem eletrônica sua na qual dizia que a duração da entrevista seria de 30 minutos – o acordo inicial estipulava uma hora – devido à agenda apertada do padre Sosa. “Última pergunta, por favor”, disse em inglês. Eu ainda tenho muitas. “É seu trabalho”, me disse Sosa rindo, também em inglês.
Peço ao Superior Geral que sejam duas. Ele aceita.
Cada dia a ciência nos diz que muitas das coisas que fazemos, das doenças que sofremos, se devem à herança genética. Está o livre arbítrio em perigo?
"Penso que a ciência nos ajuda e permite criar melhores condições para que o ser humano possa desenvolver sua liberdade. Ninguém discute a condição do homem como alguém que pode escolher e também compreender suas limitações. Há condicionantes sociais que permitem compreender coisas e temos que corrigir a desigualdade para ajudar a decidir livremente."
Para terminar, gostaria de lhe perguntar se acredita que o mal é um processo da psicologia humana ou provém de uma entidade superior.
"Do meu ponto de vista, o mal faz parte do mistério da liberdade. Se o ser humano é livre, pode escolher entre o bem e o mal. Os cristãos acreditam que somos feitos à imagem e semelhança de Deus. Portanto, Deus é livre, mas Deus sempre escolhe fazer o bem porque é todo bondade. Criamos imagens simbólicas, como o diabo, para expressar o mal. Os condicionamentos sociais também representam essa imagem, já que há pessoas que agem assim porque estão em um ambiente onde é muito difícil fazer o contrário."
Verdugo do tempo, o Pe. Mulemi, amável e estressado, me acompanha até a porta de saída. Pergunto-lhe se a Igreja do Gesù, que está do outro lado do rio, está aberta a esta hora. Ele me diz que sim. Um segundo depois de se despedir, sai correndo escadas acima com sua mochila, sua câmera e seu gravador a tiracolo. Ele precisa acompanhar o Pe. Sosa para uma reunião no Vaticano. Um lugar onde seguramente alguém anterior a Einstein advertiu que o tempo é relativo.
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O único ‘chefe’ do Papa. Entrevista com Arturo Sosa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU