Por: João Vitor Santos | 18 Março 2017
Com a empáfia do conquistador que quer se apossar do mundo, o europeu chega ao Brasil e começa a tecer as estratégias para tomar esse chão como seu. Basta uma rápida folheada nos livros de História do Brasil para perceber que, mesmo fixados aqui, tanto portugueses quanto seus descendentes já nascidos no país sempre cederam à corte do estrangeiro que estava de olho na riqueza de suas terras. Para o advogado Mozar Dietrich, essa gênese se atualiza hoje na proposta do governo de Michel Temer de flexibilizar as regras para venda de propriedades a não brasileiros. “A cobiça sobre o Brasil é imensa, pois, além do Pré-Sal, temos a Floresta Amazônica, as maiores jazidas de ferro e nióbio do mundo, terras com imenso potencial agrícola, pois somos o país com a maior área de insolação/ano do mundo, extensas praias para instalação de parques eólicos, e, no caso do nosso Pampa, imensas áreas cobiçadas pelas empresas produtoras de pasta de celulose”, completa.
Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Mozar analisa as consequências dessas ações sobre os biomas brasileiros. E dispara: “o risco para o país é imenso, trata-se de um atentado à soberania nacional”. Além disso, observa que primeiro se quer vender a terra e depois a intenção é flexibilizar a legislação ambiental para assegurar a exploração mercantil. “Mesmo que essas empresas consigam adquirir terras com as mudanças nas legislações, se mantidas as atuais exigências ambientais, elas dificilmente obterão autorização para o plantio, pois não há como harmonizar monocultivo de eucaliptos em vasta escala com proteção ambiental”, alerta.
Mozar Dietrich | Foto: Comusa / Divulgação
Mozar Artur Dietrich é advogado, foi diretor de Cidadania do Governo do Estado do Rio Grande do Sul na gestão Olívio Dutra, entre 1998 e 2001, assessor especial do ministro do Desenvolvimento Agrário no primeiro mandato de Lula, e superintendente Estadual do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra-RS, entre 2006 e 2010.
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Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como compreender as questões de fundo na proposta de mudança de regras para venda de terras no Brasil para estrangeiros? Por que as terras brasileiras interessam?
Mozar Dietrich - Primeiramente, precisamos elucidar alguns pontos deste tema candente. Ele não é, absolutamente, um tema novo. O Brasil já nasceu vendido para os estrangeiros, pois as capitanias hereditárias não eram nada mais do que doação de praticamente todas as terras brasileiras para estrangeiros. Falido o sistema das capitanias, passou-se ao processo de concessões de sesmarias. Inicialmente também eram feitas doações de áreas de até dez léguas quadradas (aproximadamente 430 mil hectares), tanto para nacionais, quanto para estrangeiros.
Em 1808, Dom João VI [1] alargou ainda mais esse processo de concessão de sesmarias a estrangeiros.
Em 1850, com a primeira Lei de Terras do Brasil, a Lei 601, pela primeira vez, já em 350 anos de existência do Brasil, passou-se a restringir um pouco essas concessões a estrangeiros. Essa Lei também criou a Faixa de Fronteira, com 6 léguas de largura (66 Km). Nessa faixa não podiam ser vendidas terras para estrangeiros sem o prévio consentimento do Conselho de Defesa Nacional. Desse momento em diante, os governos brasileiros, antes abertamente favoráveis à venda de terras a estrangeiros, passaram a impor algumas restrições. Isto ocorreu no bojo de um crescente nacionalismo no mundo, que se acentuou no início do século XX. Os Estados passaram a buscar o aumento de suas possessões e não a entrega das mesmas aos estrangeiros.
Na Constituição Federal de 1934, criou-se uma figura nova, a faixa de segurança, que era de 100 Km de largura em nossas fronteiras, e, depois, na Constituição de 1937, aumentou-se a Faixa de Fronteira para 150 Km de largura, que é a mesma de nossos dias, pois foi reafirmada pela Constituição de 1988. Todas essas constituições, no entanto, impuseram uma condição para a venda de terras nas faixas de fronteiras para estrangeiros: que fosse previamente consultado o então Conselho de Segurança Nacional, atual Conselho de Defesa Nacional. Sem essa consulta, prévia, os negócios, mesmo concretizados, eram nulos. Esta legislação ainda vige, apesar de abertamente ser burlada e não existirem mecanismos eficazes de fiscalização de irregularidades, como, por exemplo, cartórios que simulam vendas legais a estrangeiros à margem da lei, omitindo dados sobre a nacionalidade ou usando laranjas para titular as terras adquiridas.
No restante do país, entretanto, fora da faixa de fronteira, sempre houve uma maior liberalização de venda de terras para estrangeiros, com algumas restrições. Essas restrições legais, no entanto, carregam várias contradições. Por exemplo, áreas com até três módulos (No Sul e Leste isto representa algo em torno de 80 hectares. Já no Centro e Norte pode chegar a 450 hectares) podem ser vendidas a estrangeiros sem nenhuma restrição. Para adquirir áreas de 3 até 50 módulos, que é o limite, já há necessidade de procedimentos especiais e fiscalizados por cartórios e pelo Incra.
No entanto, por outro lado, essas legislações afirmam, desde o Império, que os estrangeiros não podem adquirir mais do que um quarto da área dos municípios, e pessoas de uma mesma nacionalidade não podem adquirir mais do que 40% deste um quarto. Ora, aplicando-se essas “restrições” a um município como São Félix do Xingu, no Pará, por exemplo, os estrangeiros podem comprar cerca de 2.105.325 hectares desse município. Isto é de uma largueza absurda. Tanto é assim que este instituto foi mantido na proposta de abertura total que o governo Temer agora pretende implantar.
Outra contradição é que tais vendas eram até mesmo facilitadas e mesmo utilizadas como política pública. Veja o exemplo da doação que o Império fez à Royal Ferry, empresa inglesa que construiu a ferrovia RS–SP. Essa empresa simplesmente ganhou uma faixa de terras de 10 Km de largura ao longo de toda a via nos dois lados. Imagine-se uma faixa de terras de 20 Km de largura do RS a SP doada para estrangeiros. Foi essa concessão e o trabalho de expulsar os posseiros e moradores dessa área (índios, negros, mestiços, cafuzos) que gerou a Revolta do Contestado [2], em Santa Catarina, no início do século XX, que terminou num banho de sangue de toda essa população pobre.
Outro exemplo ainda mais grotesco e triste é o do Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais, o SPILTN, mais conhecido por SPI (órgão federal antecessor da Fundação Nacional do Índio - Funai). O SPI é de triste memória por ter sido tomado por grandes casos de corrupção, torturas e morte de índios e venda de patrimônios florestais e de terras indígenas, mas nunca é lembrado pelas outras três siglas de seu nome, o LTN, de Localização de Trabalhadores Nacionais. E isto foi o mais grave da ação do SPILTN, pois cabia-lhe a política pública de assentar, nas terras já ocupadas pelos índios, os ditos trabalhadores nacionais (negros, mulatos, cafuzos, caipiras, sertanejos, caboclos – os filhos de ninguém, segundo Darcy Ribeiro [3]).
Esses trabalhadores nacionais eram de fato jogados sobre as terras indígenas e sobre os próprios índios. Mas, enquanto isto, os trabalhadores estrangeiros (migrantes alemães, italianos, japoneses, poloneses) eram assentados largamente em terras que a União ou os estados iam liberando para esses estrangeiros. Eram as grandes colonizações por trabalhadores estrangeiros que foi largamente aplicada em todo século XIX e parte do XX. Contudo, a bem da verdade, essas concessões de terras a estrangeiros eram pequenas, lotes de colonizações em torno de 40 hectares. Muito diferente do que o atual governo pretende ao alargar para 100.000 ou 200.000 hectares a liberação de vendas de terras a estrangeiros.
Outro ponto importante a destacar inicialmente e que desnuda e denuncia a indecência desta atual proposta do governo Temer em escancarar as terras brasileiras aos estrangeiros, é que, mesmo que já haja na legislação atual a liberação de venda de terras para estrangeiros dentro da faixa de fronteira, há o limite expresso em leis de somente vender até 3 mil hectares por adquirente. E essa limitação já vem desde 1850 e se fortaleceu século XX adentro. Ou seja, até agora, um estrangeiro pode, sim, comprar dentro da faixa de fronteira até 3 mil hectares, isto somando todas as terras que ele venha a adquirir. O que se quer agora é passar simplesmente de 3 para 100 ou 200 mil.
Assim, a grosso modo, podemos dizer que desde 1850 há um certo freio à aquisição de terras por estrangeiros. Pelo menos na faixa de fronteira, que é uma área considerável de nosso país, pois representa 27% das terras brasileiras e que ainda possuem uma oferta ou possibilidade de aquisição, pois são áreas ainda grandes e pouco habitadas, onde mora menos de 5% de nossa população.
E essa legislação impunha um certo freio à liberação de venda de terras aos estrangeiros, apesar de ser elástica, pois há casos vergonhosos no Brasil, como as extensas áreas do oeste da Bahia já ocupadas por fazendeiros norte-americanos, ou extensas áreas de litoral nordestino, de praias paradisíacas, já de propriedade e cercadas por empresas hoteleiras europeias, sem falar no vergonhoso Caso Jari [4] (em pleno regime militar). Mas, como o governo atual já está vendendo a Petrobras e o Pré-Sal, nossa maior riqueza, a venda de terras aos estrangeiros é um problema menor para esses entreguistas. A cobiça sobre o Brasil é imensa, pois, além do Pré-Sal, temos a Floresta Amazônica, as maiores jazidas de ferro e nióbio do mundo, terras com imenso potencial agrícola, pois somos o país com a maior área de insolação/ano do mundo, extensas praias para instalação de parques eólicos, e, no caso do nosso Pampa, imensas áreas cobiçadas pelas empresas produtoras de pasta de celulose, que enxergam no Pampa uma imensa monocultura de eucaliptos.
IHU On-Line - No que consiste especificamente a proposta de mudança de regras para venda de terras a estrangeiros que está na pauta do governo de Michel Temer?
Mozar Dietrich – Basicamente, as diferenças entre as legislações já centenárias no Brasil sobre aquisição de terras por estrangeiros e as propostas de mudança dessas legislações pelo atual governo são as seguintes:
a) Não há mais diferenciação de tamanho de propriedade a ser adquirida dentro da faixa de fronteira ou fora dela. Mesmo em faixas de fronteira se poderá adquirir áreas com centenas de milhares de hectares. Apenas é mantida a exigência de que tais aquisições, em faixa de fronteira, tenham o assentimento prévio do Conselho de Defesa Nacional. Esse assentimento do Conselho, no entanto, não é nenhum problema ou entrave, pois a absoluta maioria dos conselheiros são membros do governo, além do presidente e do vice. Os membros militares do Conselho, que poderiam representar uma oposição com viés nacionalista, que poderiam se opor à venda de nosso território até mesmo por simples questões geopolíticas, são minoria.
b) As legislações atuais são relativamente exigentes quanto à caracterização do que seja uma empresa estrangeira e empresa nacional. Para ser empresa nacional tem que ter sede no Brasil, ter capital e acionistas majoritariamente brasileiros. Já a proposta de Temer subverte esses conceitos totalmente. Diz que “as restrições estabelecidas na Lei não se aplicam às pessoas jurídicas brasileiras, ainda que constituídas ou controladas direta ou indiretamente por pessoas privadas, físicas ou jurídicas estrangeiras”. Ou seja, é um engodo, pois pessoas jurídicas brasileiras, mesmo que constituídas fora do Brasil, controladas direta ou indiretamente por estrangeiros, não são consideradas estrangeiras. Como assim, uma empresa “brasileira”, constituída fora do Brasil, com capital e sócios majoritariamente estrangeiros, não é estrangeira? É quase um escárnio. E mais: diz ainda a proposta que “a proibição não se aplica às Companhias de Capital Aberto com ações negociadas em bolsa de valores no Brasil ou no exterior”. Ora, qualquer companhia, mesmo estrangeira que possua negócios em qualquer bolsa de valores, estará livre da lei para adquirir terras no Brasil. Me parece que tudo está permitido. Assim, essa nova lei vai permanecer somente para dar uma roupagem de oficialidade ao ato, mas é um ato completamente entreguista de nossas terras.
c) Pode parecer estranho, mas não é, o fato de a proposta manter a dispensa de qualquer autorização para a aquisição por estrangeiros quando se tratar de imóveis com áreas não superiores a dez módulos. Ou seja, até dez módulos (cerca de 1.500 hectares no Centro e Norte) não precisará autorização. Nas legislações atuais essa liberalidade é sobre áreas com até três módulos. Contudo, na legislação atual, para um estrangeiro adquirir áreas de 3 a 50 módulos tem que realizar um procedimento junto aos cartórios e Incra. A proposta atual, por um lado, libera geral até 1.500 hectares e, por outro, silencia sobre tetos máximos acima desses 1.500. Portanto, não é estranho, trata-se de uma cortina de fumaça para esconder o “liberou geral”.
IHU On-Line - Durante sua passagem pelo Incra, o senhor combateu a compra de terras por empresas estrangeiras. Como se deu essa resistência e quais os obstáculos que tiveram de ser enfrentados?
Mozar Dietrich – Na verdade, a única ação que procuramos aplicar no Incra, no período de 2006 a 2010, foi a de que se respeitassem as leis. Recebemos na ocasião uma série de denúncias de que empresas do setor de celulose estavam adquirindo e registrando em cartórios locais centenas de áreas no bioma Pampa (todas em faixa de fronteira). Notificamos as empresas e os cartórios, conforme determina a Lei, para que viessem ao Incra realizar o procedimento de análise desses negócios e para que o Incra encaminhasse os processos ao assentimento prévio do Conselho de Defesa Nacional.
Nossa grande surpresa foi constatar que já havia centenas de áreas adquiridas e a maioria registrada em cartórios, tudo de forma ilegal. Uma das empresas, inclusive, criou uma subsidiária brasileira para dar caráter nacional ao ato, mas o sócio presidente era o mesmo da empresa-mãe multinacional. Mesmo que os procedimentos fossem irregulares, as empresas se comprometeram seguir, a partir de então, procedimentos legais. Ocorre que tais procedimentos requerem uma complexa ação, como a análise das cadeias dominiais, análise de contratos, pareceres jurídicos. Tudo foi feito da maneira correta e acabou que emitimos pareceres ao Conselho de Defesa Nacional dando conta das irregularidades e crimes cometidos, inclusive pelos cartórios, e opinamos pelo indeferimento das solicitações e a nulidade de todos os negócios feitos.
Isto causou uma grande e furiosa reação, pois a maioria dessas centenas de áreas já havia sido paga, os antigos proprietários já haviam saído das terras, e as empresas já estavam inclusive plantando eucaliptos, a maioria ainda sem licenças ambientais. Houve uma correria à Brasília de bancadas ruralistas pressionando o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o próprio Conselho de Defesa Nacional. Vários deputados inclusive, além de atacar o Incra, que estava apenas cumprindo e fiscalizando a lei, propuseram até mudanças na legislação de faixa de fronteira, alegando que no Rio Grande do Sul não havia mais a necessidade dessas ressalvas em nossas fronteiras. Os procedimentos se arrastaram por anos e tudo ficou sobrestado. As empresas alegaram perda de ativos e prejuízos e abandonaram inclusive projetos de construção de plantas de celulose em municípios da Fronteira Oeste. Recentemente, uma matéria jornalística mostrou uma imensa parcela de produtores rurais que caíram no engodo do plantio de eucaliptos, e agora não há mercado para essas vendas e suas terras estão praticamente inutilizadas.
Até o presente momento, essas mobilizações não tiveram êxito na alteração legal e na facilitação da compra de terras por estrangeiros. Frente ao atual quadro, no entanto, se o governo Temer conseguir modificar a tal ponto as legislações como se comentou antes, tudo cairá por terra; nossas fronteiras, que já são abertas, serão escancaradas aos estrangeiros.
IHU On-Line - Que relação é possível se estabelecer entre a proposta de mudança de regras para venda de terras para estrangeiros e a flexibilização de licenciamentos ambientais, defendidos pelo atual governo?
Mozar Dietrich – A necessidade de flexibilização dos licenciamentos ambientais para a exploração de monoculturas de eucaliptos no bioma Pampa, por exemplo, é das principais reivindicações desses setores. Mesmo que essas empresas consigam adquirir terras com as mudanças nas legislações, se mantidas as atuais exigências ambientais, elas dificilmente obterão autorização para o plantio, pois não há como harmonizar monocultivo de eucaliptos em vasta escala com proteção ambiental. Simplesmente não há como.
Esta foi mais uma tentativa dessas empresas junto ao Incra na ocasião. Buscaram o órgão com projetos de plantio consorciado com outras culturas, com criação de gado bovino e ovino. Tinham o descaramento de afirmar que esses consórcios eram possíveis nos dois a três primeiros anos, mas depois não eram mais possíveis, pois as florestas se fechavam e só mais eucaliptos permaneciam. A ideia de seus belos powerpoints na ocasião era obter a anuência do Incra para os licenciamentos ambientais. Ficou evidente que era mais um engodo e o Incra não deu sua anuência aos licenciamentos.
IHU On-Line - De que forma a liberação de terras a estrangeiros se configura como uma ameaça ao bioma Pampa?
Mozar Dietrich – Certamente o Pampa será o bioma mais afetado por essa nova legislação, pois 100% do Pampa se situa na Faixa de Fronteira brasileira. As terras do Pampa são em sua maioria muito férteis e se prestam para várias culturas com plena observância dos ditames de proteção ambiental. A produção de gado de corte e leiteiro já tem séculos e convive harmonicamente com o Pampa. A crescente produção de frutíferas e oleaginosas também é assim. A maior ameaça que, diga-se de passagem, já está acontecendo, é a monocultura do eucalipto.
Mesmo com as legislações atuais, que já vimos são um pouco permissivas, essa triste realidade de desertos verdes de eucaliptos já impera em imensas áreas em nosso Estado, imagine com uma lei que libera total, que não impõe freios. Não deixa de ser estranha, além de triste, essa obsessão do governo Temer de entregar tudo a estrangeiros. O Pré-Sal, nossa maior riqueza, já foi. Os maiores recursos do orçamento da União estão sendo drenados para pagar juros dos rentistas mundiais, por isto necessitam retirar dos gastos sociais, da saúde, da educação, da segurança, da previdência. Agora, querem vender nossas terras, com um pálido e mentiroso discurso de que isto trará investimentos da ordem de 45 bilhões de dólares nos próximos anos.
O risco para o país é imenso, trata-se de um atentado à soberania nacional. E o estranho é que o Brasil está indo na direção contrária à do mundo, pois os demais países estão se fechando, no mínimo economicamente, e jamais sequer falam em vender suas terras.
IHU On-Line - Como a produção em terras geridas por empresas multinacionais pode impactar na produção agrícola do Pampa?
Mozar Dietrich – Na verdade, este impacto já está ocorrendo em vasta escala. Quem viaja pelo Rio Grande do Sul, na região do Pampa, que praticamente é a metade sul do estado, depara-se com imensas e infindáveis plantações de monocultura de eucaliptos. Mas das estradas ainda não se tem a noção real do quadro. Quem tem acesso à ferramenta Google Earth pela Internet pode fazer um passeio aéreo pelo Pampa Gaúcho e verá o que de fato já está ocorrendo, e que, no meu entender, é desastroso.
As imensas manchas verdes que se estendem para todas as regiões são monoculturas de eucaliptos que já destruíram imensos nichos ecológicos do Pampa, e isto inexoravelmente. Essa imensa massa verde, que não produz nada de alimentos, somente pasta de celulose para exportação, traz pelo menos três grandes e graves consequências:
a) Uma alteração grande e repentina nas cadeias produtivas e sociais das regiões, contribuindo para o êxodo rural, a destruição de cadeias produtivas já instaladas, a diminuição da produção de alimentos. Milhares de produtores rurais estão vendendo ou arrendando suas terras para o plantio de eucaliptos. Esse processo inclusive já vem promovendo uma reconcentração de terras na região, mesmo em regiões onde o Instituto Nacional de Reforma Agrária, o Incra, já promovera redistribuições de terras.
b) Um grande impacto nos processos de recarga dos lençóis freáticos, inclusive no Aquífero Guarani [5], pois, a par de não haver comprovação de que plantios de eucaliptos secam e drenam solos, é consenso que o consumo de água por esses vegetais equivale ao índice pluviométrico do Pampa como um todo. Eucalipto pode não secar o solo diretamente, mas seca indiretamente, pois consome todo o volume de chuvas que cai na região, impedindo a infiltração de excedentes no subsolo. Por sua vez, isto altera os fluxos dos cursos d’água, inclusive secando córregos e riachos. Isto é um agravamento de um fenômeno já visto há décadas nas grandes regiões de plantio de arroz, em nossa Fronteira Oeste, onde se verificam inúmeros arroios que secaram. O problema, portanto, é das monoculturas em larga escala.
c) A destruição total do solo, tanto por seu esgotamento devido à monocultura dos eucaliptos, quanto ao que resta após as colheitas. Muito se fala nos desertos verdes onde há os monocultivos dos eucaliptos, mas pouco se fala dos desertos dos tocos que restam após a colheita, que tornam a terra absolutamente impraticável, a não ser mediante grandes investimentos. Trata-se de uma terra morta com o plantio dos eucaliptos e uma terra arrasada após a colheita, que se presta, quando muito, a mais uma safra de eucaliptos. Existe um caso emblemático que exemplifica isto. Em 2006, o Incra-RS recebeu da União uma área de terras de 25 hectares próxima ao centro de Pelotas, para o assentamento de famílias que poderiam produzir hortigranjeiros. Contudo, tratava-se de uma área onde houvera um plantio de eucaliptos. Na Autarquia a área era conhecida como a “Área dos Tocos”. O Incra acabou tendo que desistir da área, pois a mesma tinha seu valor de mercado em torno de R$ 300.000,00, ao passo que o orçamento de maquinário para o destoque e recuperação de solo ultrapassava os R$ 500.000,00. Ou seja, plantar monoculturas de eucaliptos destrói a flora, a fauna e a própria terra. Sob qualquer aspecto, trata-se de um deserto, que infelizmente avança sobre o Pampa.
IHU On-Line - Quais os desafios para se aliar preservação à produção de alimentos no Pampa?
Mozar Dietrich – O bioma Pampa não é uma região de baixa produção, de terras pouco produtivas, ou de secas sazonais, como costumam alardear os que mantêm e defendem as estruturas agrárias da região, essencialmente composta por grandes latifúndios. Costuma-se dizer que a metade Sul do estado (Bioma Pampa) é a metade pobre, ao passo que a metade Norte é a parte rica. Este discurso esconde nitidamente o objetivo de impedir ou atacar o processo de reforma agrária, parcelamento e redistribuição de terras na região.
Quem ataca os processos de reforma agrária quer manter latifúndios que serviriam somente para a produção de gado de corte em sistema extensivo. A metade Norte do Estado é rica exatamente porque nela foi feito um quase completo processo de parcelamento, com as imensas colonizações. Foi isto que propiciou o crescimento e a riqueza, minifúndios e população. Portanto, com relação à metade Sul, o que existe na verdade é o contrário do que se propala. Trata-se de terras altamente produtivas, ricas em mananciais de água, clima excelente para determinadas culturas, como se vê recentemente com a uva, frutíferas, produção de leite.
Mas, desgraçadamente, ainda são imensos e inumeráveis latifúndios. Assim, o grande desafio é transformar a prática dos monocultivos em larga extensão, e daí não se pode somente criticar o eucalipto, mas também a soja e outras monoculturas. O desafio é a diversidade de plantios, com culturas que se adaptam ao solo e ao clima, como também tem sido o exemplo da olivicultura, de cooperativas de produção de uva, leite e seus derivados. O desafio também é o de planejar ambientalmente as regiões, preservando corredores ecológicos, áreas de mananciais, de recarga de aquíferos, e demais Áreas de Preservação Permanente.
Essencialmente o grande desafio é desconcentrar a terra, redistribuindo-a para implantar regiões de agricultura familiar. É necessário também povoar ou repovoar o Pampa, pois a baixíssima concentração humana na região também é um entrave ao desenvolvimento com sustentabilidade.
IHU On-Line - Além do Pampa, que outros biomas podem ser impactados pela liberação da venda de terras a estrangeiros?
Mozar Dietrich – Não há como evitar que todos nossos biomas sejam atingidos drasticamente por essa medida. Além do Pampa, já citei outros dois biomas que já estão sofrendo esses impactos: a Mata Atlântica, pela pressão imobiliária/hoteleira sobre nosso maravilhoso litoral nordestino, que já incrustou feudos naquelas praias, mesmo ilegalmente, e o Cerrado no oeste baiano, onde se sucedem imensas e contíguas “farms” norte-americanas, produzindo soja ao estilo cowboy.
Acredito, no entanto, que o maior alvo e cobiça estrangeira seja a Floresta Amazônica, pois ela agrega as maiores potencialidades tanto de flora, quanto de minérios do planeta. O fato já recentemente consumado, também absolutamente vergonhoso e triste para todos nós brasileiros, é o caso da Golden Sun, empresa mineradora de ouro canadense, que recebeu do governo Temer a liberação de extração de ouro na grande volta do Xingu, parte do rio que secou com o fechamento das comportas de Belo Monte [6].
A Golden Sun já se instalou ali e começou a operar, mesmo contra a pressão dos povos indígenas da região. A Funai alega que não deu anuência para essa mineração. Especialistas dizem que o montante de dejetos e rejeitos dessa mineração será maior do que o da Samarco, cujas barragens se romperam e causaram o maior desastre ecológico da história do Brasil. Mas, ao que parece, o governo Temer ignora tanto as legislações quanto os efeitos dessa ação. E os índios não têm conseguido barrar o processo, nem da Belo Monte, e nem agora da extração de ouro.
IHU On-Line - Em que medida a discussão sobre a terra no campo pode impactar no debate sobre a terra urbana? E por que é tão importante discutir sobre posse da terra, seja no campo ou na cidade?
Mozar Dietrich – A questão da posse da terra é uma das maiores ficções do Direito no Brasil. Somos de uma tradição jurídica, ensinam nossos doutos, na qual se diz que a posse é mais importante do que a propriedade. Quem ensina isto sempre utiliza o exemplo do usucapião [7], onde de fato o posseiro acaba ganhando a terra em detrimento do proprietário que não cuidava de sua posse. Ocorre que isto é somente verdadeiro em pequenas causas, de um pequeno posseiro contra um pequeno proprietário. Quando passamos as grandes lides, onde grupos de posseiros reivindicam áreas de terras ocupadas sobre latifúndios rurais, ou latifúndios urbanos mantidos por imobiliárias ou proprietários que especulam nos mercados de terras, daí a posse vira pura ficção mesmo.
Nessas situações o normal é haver decisão judicial contrária aos posseiros e despejos de massas de pobres. Nesses casos nossos juízes privilegiam a propriedade e não a posse. Por quais razões? Este tema deveria ser debate permanente e profundo tanto na sociedade, quanto nos tribunais, quanto nas academias, pois o país ainda possui imensos vazios populacionais, tanto rurais, quanto urbanos, ao passo que temos imensas massas humanas ainda sem terras para plantar ou mesmo morar. Mas, infelizmente, se dá o contrário em nosso país, até mesmo porque as bancadas ruralistas e seus parceiros são maioria no Congresso.
Nossa Constituição é explícita e forte ao anunciar que a propriedade, e aí está incluída a propriedade urbana, tem que cumprir sua função social, caso contrário deve ser desapropriada e destinada a assentamentos urbanos ou rurais. Mas o Incra não tem forças suficientes, nem é dotado por instrumentos e normativas robustas para fazer frente a essa realidade, nem temos exemplos de prefeitos que tenham assumido essas lutas para distribuir terras urbanas com mais justiça e igualdade.
Resultado disto é que o Coeficiente de Gini [8] tem demonstrado que a concentração de terras tem aumentado no Brasil, mesmo após todos os esforços feitos pelos governos anteriores ao atual. Somos um dos países com a maior concentração de renda do mundo e certamente o de maior concentração de terras. O que esperar que aconteça com as medidas já anunciadas pelo governo Temer e mais esta agora de abrir completamente nosso mercado de terras aos estrangeiros? Não precisa ser vidente ou especialista para ver o que vai acontecer. Nos próximos anos o Coeficiente de Gini irá mostrar que aumentou a concentração de terras, tanto urbanas, quanto rurais. Certamente.
Notas:
[1] D. João VI de Portugal (1767-1826): cognominado O Clemente, foi rei de Portugal de 1816 até sua morte. Segundo dos filhos de D. Maria I de Portugal e de seu tio Pedro III, herdeiro da coroa como príncipe do Brasil e 21º Duque de Bragança após a morte do irmão mais velho, José, Duque de Bragança em 11 de setembro de 1788, vitimado pela varíola. Em novembro de 1807, D. João VI decidiu pela transferência da corte portuguesa para o Brasil, evitando ser aprisionado com toda a família real e o governo, tornando possível manter a autonomia portuguesa a partir do Rio de Janeiro. Sobre a vinda da família real ao Brasil, leia a IHU On-Line número 263, de 24-06-2008, intitulada A Corte Portuguesa no Brasil. Mitos e verdades, disponível para download aqui. (Nota da IHU On-Line)
[2] Guerra do Contestado: conflito armado entre a população cabocla e os representantes do poder estadual e federal brasileiro travado entre outubro de 1912 e agosto de 1916, numa região rica em erva-mate e madeira disputada pelos estados brasileiros do Paraná e de Santa Catarina. Originada nos problemas sociais, decorrentes principalmente da falta de regularização da posse de terras e da insatisfação da população hipossuficiente, numa região em que a presença do poder público era pífia, o embate foi agravado ainda pelo fanatismo religioso, expresso pelo messianismo e pela crença, por parte dos caboclos revoltados, de que se tratava de uma guerra santa. A região fronteiriça entre os estados do Paraná e Santa Catarina recebeu o nome de Contestado devido ao fato de que os agricultores contestaram a doação que o governo brasileiro fez aos madeireiros e à Southern Brazil Lumber & Colonization Company. Como foi uma região de muitos conflitos, ficou conhecida como Contestado, por ser uma região de disputas de limites entre os dois estados brasileiros. (Nota da IHU On-Line)
[3] Darcy Ribeiro (1922-1977): etnólogo, antropólogo, professor, educador, ensaísta, romancista e político mineiro. Completou o curso superior na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, no ano de 1946. Trabalhou como etnólogo no Serviço de Proteção ao Índio, e, em 1953, fundou o Museu do Índio. Foi professor de etnologia e linguística tupi na Faculdade Nacional de Filosofia e dirigiu setores de pesquisas sociais do Centro de Pesquisas Educacionais e da Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, além de ocupar, no biênio 1959/1961, o cargo de presidente da Associação Brasileira de Antropologia. Foi eleito em 8 de outubro de 1992 para a Cadeira n. 11 da Academia Brasileira de Letras. Ainda sobre Darcy Ribeiro, leia também nesta edição da IHU On-Line a entrevista com Paulo Ribeiro, presidente da Fundação Darcy Ribeiro, sobre o antropólogo e educador brasileiro. (Nota da IHU On-Line)
[4] Projeto Jari (Jari Florestal e Agropecuária): é o nome de uma fábrica existente às margens do Rio Jari, para a produção de celulose e outros produtos, que teve início em 1967. O projeto foi idealizado pelo bilionário norte-americano Daniel Keith Ludwig e seu sócio Joaquim Nunes Almeida. Ele mandou construir uma fábrica de celulose no Japão, na cidade de Kobe; usando tecnologia finlandesa da cidade de Tampere, foram construídas duas plataformas flutuantes com uma unidade para a produção de celulose e outra para a produção de energia. A unidade de energia produzia 55 megawatts e era alimentada por óleo BPF a base de petróleo com opção para consumo de cavacos de madeira. (Nota da IHU On-Line)
[5] Aquífero Guarani: uma das mais importantes reservas hídricas do planeta, sua manutenção está relacionada à capacidade de recarga, que ocorre em território brasileiro, no estado de Mato Grosso do Sul. Sobre o aquífero guarani, confira a entrevista especial realizada pelo site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Águas do Aquífero Guarani: um recurso nobre, com Ricardo Hirata, em 02-08-2006, disponível em http://bit.ly/1uZOXWl. (Nota da IHU On-Line)
[6] Na seção Notícias do Dia, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, é possível conferir diversos textos sobre a questão. Entre eles, “Os Estados Unidos ganham no Brasil. Artigo de Raúl Zibechi”, publicado nas Notícias do Dia de 28-10-2015. (Nota da IHU On-Line)
[7] Usucapião: é um modo de aquisição da propriedade e ou de qualquer direito real que se dá pela posse prolongada da coisa, de acordo com os requisitos legais, sendo também denominada de prescrição aquisitiva. (Nota da IHU On-Line)
[8] Coeficiente de Gini: é uma medida de desigualdade desenvolvida pelo estatístico italiano Corrado Gini, e publicada no documento "Variabilità e mutabilità" ("Variabilidade e mutabilidade" em italiano), em 1912. É comumente utilizada para calcular a desigualdade de distribuição de renda, mas pode ser usada para qualquer distribuição. Ele consiste em um número entre 0 e 1, onde 0 corresponde à completa igualdade de renda (português brasileiro) ou rendimento (português europeu) (onde todos têm a mesma renda) e 1 corresponde à completa desigualdade (onde uma pessoa tem toda a renda (português brasileiro) ou rendimento (português europeu), e as demais nada têm). O índice de Gini é o coeficiente expresso em pontos percentuais (é igual ao coeficiente multiplicado por 100). (Nota da IHU On-Line)
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A histórica e eterna entrega da terra brasilis ao estrangeiro. Entrevista especial com Mozar Dietrich - Instituto Humanitas Unisinos - IHU