A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 2º Domingo do Advento, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto de Lucas 3,1-6.
“Esta é a voz daquele que grita no deserto: ‘preparai o caminho do Senhor’” (Lc. 3,4).
Estamos no tempo do Advento, alimentando uma esperança ousada; para isso, é preciso fazer descer ao nível do chão o orgulho de nossos montes elevados, a presunção de nosso ego inflado, a altura de nossa vaidade...
O pano de fundo deste tempo litúrgico é a experiência bíblica do deserto, lugar onde podemos nos sintonizar com Deus, escutar melhor o seu chamado para sermos presenças inspiradoras neste velho mundo.
Deserto passa a ser tempo de purificação e de vida em marcha: somos povo peregrino deixando-nos conduzir somente por Deus. O deserto é território da verdade, o lugar onde vivemos do essencial. Ali não há lugar para o supérfluo; ali não podemos viver acumulando coisas sem necessidade; ali não é possível o luxo nem a ostentação. O decisivo é discernir e buscar o melhor caminho para orientar nossa vida em direção à “Terra Prometida”.
De maneira solene, o Evangelho deste domingo apresenta o início da atividade de João Batista, situando nas coordenadas concretas de tempo e lugar, os acontecimentos que marcarão a história da humanidade. O evangelista Lucas tem interesse em destacar os nomes dos personagens que controlavam, naquele momento, as diferentes esferas do poder político e religioso; são aqueles que planejam e dirigem tudo.
No entanto, o acontecimento decisivo de Jesus Cristo foi preparado e aconteceu fora dos espaços de influência política e religiosa, sem que os poderosos percebessem o que estava acontecendo nas periferias da história. Assim, a Graça e a Salvação de Deus banham a história a partir de baixo, dos últimos. O essencial não está nas mãos dos poderosos; eles que controlam as diferentes esferas do poder político e religioso, aqui não decidem nada.
É nesse contexto que Lucas afirma com toda firmeza que “a Palavra de Deus foi dirigida a João, filho de Zacarias, no deserto”. Não em Roma, nem no recinto sagrado do Templo de Jerusalém, mas no deserto. João Batista não é um funcionário do Templo, é um profeta. As instituições e o poder não querem profetas em suas fileiras: homens que pensem, que anunciem, deem ânimo ao povo, ou que denunciem as mazelas do poder desumanizador.
Por isso, muitos profetas aspiravam tanto o deserto, símbolo de uma vida mais despojada e melhor enraizada no essencial, uma vida ainda sem estar “distorcida” por tantas infidelidades a Deus e tantas injustiças com o povo. Neste marco do deserto, o Batista anuncia o símbolo grandioso do “batismo”, ponto de partida de conversão, purificação, perdão e início de vida nova.
Voltar ao deserto: esta é a mensagem chave deste segundo domingo do Advento. Trata-se de aprender a simplificar, centrando-nos no essencial, pois só com o essencial podemos viver no deserto, sem adornos falsos, sem complexos de superioridade. Esta é a maior graça que Deus pode nos comunicar: conduzir-nos de novo ao deserto, para simplificar, para dialogar, para partilhar... Voltar ao deserto para renunciar as comodidades falsas, para sermos nós mesmos, esvaziar-nos e assim poder viver simplesmente como humanos. É do deserto que surge uma nova “voz”: desafiante, mobilizadora, que nos traz para o essencial; voz que tem forte ressonância em nosso coração.
Estamos imersos numa confusão de vozes que nos distraem, nos saturam e nos fazem viver na superficialidade. As vozes barulhentas que procedem dos grandes centros de poder e dos meios de comunicação são vozes ocas, estéreis, sem consistência, e que se dispersam no ar. Com isso vamos perdendo a sensibilidade para captar as vozes delicadas que procedem do mais profundo de nós mesmos.
A realidade na qual vivemos clama por vozes corajosas, que despertem a vida, as consciências e apontem para um horizonte de sentido. Estamos saturados de vozes carregadas de morte, de ódio, de intolerância...
O Tempo do Advento é um forte apelo de retorno ao coração. Só a voz que vem “lá das quebradas do deserto” é capaz de sintonizar-se com as tênues vozes que brotam do nosso ser profundo; “Voz divina” que desperta nossas vozes. Só ela é capaz de ativar nosso ser original, mobilizar nossos recursos, desbloquear nossa vida, desencadeando um movimento inovador que nos faz entrar em comunhão com todos e com o Todo.
Para ouvir a desafiante voz do Batista é preciso deslocar-nos para o deserto, sair dos espaços fechados e atrofiados. O lugar determina nossa maneira de pensar, de sentir, de amar. A voz que vem dos amplos espaços do deserto tem um impacto rompedor nos nossos espaços rotineiros (físicos, afetivos, psicológicos, sociais, religiosos...); assim, somos impulsionados a sair daquilo que nos dá a sensação de segurança e conforto. Advento não é para acomodados! É para os(as) inquietos(as).
Só o encontro com a “voz” do Precursor pode quebrar o modo arcaico e petrificado de pensar, viver e amar. Só o encontro das duas vozes reacende em nós o desejo de uma transformação contínua. Sabemos que a “voz” não é só expressão de uma interioridade, articulando sentimentos, pensamentos, sonhos...; toda voz particular também carrega em si a dimensão comunitária; a voz de cada um é caixa de ressonância da voz da humanidade.
Nesse sentido, o Advento é um tempo privilegiado para unir nossas vozes, para fazer emergir uma voz solidária, que assume a voz sufocada de tantos sofredores e excluídos. São tantas as vozes travadas nas gargantas de muitos e que não encontram meios para se expressar. Com isso, a “voz” que nos chama à Vida acaba caindo “no deserto”, ou seja, não encontra destinatários, porque nos encontramos dispersos, distraídos em mil ocupações, vivendo na superficialidade.
Somos chamados ao deserto onde a voz da Vida ressoa com mais intensidade, sem ser sufocada pelo “vozerio crônico”. Com sua austeridade e simplicidade, o deserto não é lugar de experiências superficiais.
A profundidade da identidade de uma pessoa é testada e experimentada no deserto. O deserto é o grande auditório para ouvir Deus; “solidão” cheia de presença. Ainda que sozinhos, sentimo-nos solidários, em comunhão com todos. A proximidade de Deus vai ser sentida e percebida.
Ao tomar distância do estressante ritmo cotidiano, teremos a possibilidade de reconhecer a voz de Deus em nós com outra intensidade e com outra força. Assim, a experiência de deserto passa a ser “tempo e lugar” de decisão, de orientação da vida, de enraizamento de nossos valores, de consciência maior da nossa identidade pessoal e da nossa missão... O mestre do deserto é o silêncio; o deserto tem valor porque revela o silêncio, e o silêncio tem valor porque nos revela Deus e a nós mesmos.
“Preparem o caminho do Senhor, endireitem suas estradas...”
- O que está “torto” em minha vida pessoal, relacional, espiritual... que precisa ser endireitado?
- Quais são os grandes caminhos tortos, presentes na sociedade de hoje, que clamam por minha presença e meu compromisso, para endireitá-los?
- Que caminhos posso ajudar a construir para despertar uma nova esperança nestes tempos tão sombrios? Como endireitar os caminhos para que chegue mais rápido o Reinado de Deus?