10 Junho 2017
“O deserto, pela sua natureza, predispõe tudo para que, na vida de quem o habita, não haja nenhum Deus além do Senhor, nenhuma outra realidade objeto de adoração e de culto. Esse desejo de servir a um único Senhor é acompanhado por uma rejeição da mentalidade mundana, do modo de pensar, de agir, de julgar próprio de quem serve a vários mestres, de quem adapta os próprios comportamentos não à conformidade com o Evangelho, mas sim ao seu grau de oportunidade e conveniência, ao sucesso, ao dinheiro ou, mais simplesmente, à vida tranquila que eles asseguram.”
A opinião é do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 21-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quando o Édito de Constantino em 313 d.C. consagrou a liberdade de culto cristão e a adoção do cristianismo como religião do império, a variada fermentação de “radicalidade” que habitava amplos setores do mundo cristão viu-se confrontado com um desenvolvimento inesperado da Igreja: o cristianismo conheceu a sua primeira autêntica “crise de crescimento”.
Desaparecidas as perseguições, desaparecia também o “testemunho” por excelência, aquela martyria oferecida por aqueles que estavam prontos para derramar o próprio sangue para afirmar a fé no Senhor Jesus, morto e ressuscitado.
Assistia-se a uma progressiva expansão do número de fiéis e, no mesmo ritmo, a um enfraquecimento das exigências exigidas aos catecúmenos e aos recém-batizados: assim, a história da comunidade cristã primitiva de Jerusalém e as vidas dos mártires da fé começou a ser lidas como testemunhos de uma “era de ouro”, em que o Evangelho tinha sido vivido com pureza e integridade já perdidas. À forma por antonomásia da santidade, o martírio de sangue, somou-se a do eremitismo, caracterizada por uma “separação”, um anacorese, uma retirada a um lugar deserto.
A área original desse movimento ascético abraçava todo o Egito, a Palestina e a Síria: a partir daí, experiências independentes e paralelas de um vida eremítica e cenobítica se estenderiam gradualmente à Capadócia e ao Ocidente, começando pelas zonas mediterrânicas da Gália e da Itália. O deserto permaneceria, em todo o caso, como elemento comum caso para as várias experiências, carregado como é de reminiscências bíblicas, dos 40 anos de Israel à espera de entrar na terra prometida, até os 40 dias de tentações vividas por Jesus no início do seu ministério público: lugar de provação e tentação, mas também de compromisso entre Deus e o seu povo, como canta o profeta Oseias.
Mas o que buscavam os primeiros monges e, em particular, os eremitas, fugindo na solidão do deserto? Ou, melhor, do que fogem com essa anacorese? Acima de tudo, do já onipotente poder do império: no deserto, o imperador não busca súditos para impor tributos, nem adoradores que o venerem, nem envia para lá funcionários que o representem ou colonos que limpem o terreno, no máximo, limita-se a recrutar lá alguns nômades para o seu exército. Nesse sentido, a fuga para o deserto é contemporânea e não posterior ao testemunho do martírio de sangue: são duas maneiras para afirmar com toda a própria vida que se quer servir apenas ao Senhor, e, muitas vezes, a escolha por uma ou outra é imposta pelas condições externas.
O deserto, pela sua natureza, predispõe tudo para que, na vida de quem o habita, não haja nenhum Deus além do Senhor, nenhuma outra realidade objeto de adoração e de culto. Esse desejo de servir a um único Senhor é acompanhado por uma rejeição da mentalidade mundana, do modo de pensar, de agir, de julgar próprio de quem serve a vários mestres, de quem adapta os próprios comportamentos não à conformidade com o Evangelho, mas sim ao seu grau de oportunidade e conveniência, ao sucesso, ao dinheiro ou, mais simplesmente, à vida tranquila que eles asseguram.
No entanto, o eremitismo, justamente devido à sua especificidade até mesmo dentro do fenômeno monástica, sempre seria lido e interpretado de modo ambivalente: por um lado, ele é considerado como a forma excelente de vida monástica, apta para poucos; por outro, entreveem-se os seus limites na impossibilidade anexa de servir aos irmãos no cotidiano e no risco de trocar a vontade própria pela do Senhor.
Justamente por isso, a tradição monástica do Ocidente, assim como do Oriente, a partir da Regra de Bento até a práxis contemporânea no deserto egípcio, sempre considerou possível a abordagem à vida eremítica somente depois de um tempo prolongado de vida comunitária e o consentimento de um pai espiritual. Historicamente, isso aconteceu muitas vezes, continua acontecendo e seria desejável, de certa forma, que sempre acontecesse.
Mas o inverso também é atestado: quase todas as novas formas de vida cenobítica – começando pelo próprio Bento – têm origem na retirada ao deserto do ermo de um homem sozinho, que abandona tudo e todos, e que somente depois é alcançado por alguns discípulos, para os quais ele aceita ser guia e redigir uma “regra” de vida.
Nas últimas décadas, tornou-se visível o fenômeno de um desenvolvimento da vida eremítica em diversas Igrejas locais. O que dizer, depois de uma atenta escuta de muitos daqueles que empreenderam esse caminho e de uma observação do seu modo e estilo de viver o eremitismo? Eu posso dizer que algumas são autênticas vocações à solidão, que surgiram depois de um tempo de vida comum, na qual se experimentou a submissão recíproca e a obediência a um guia espiritual. Mas diversas outras, na verdade, parecem ser ou uma fuga do ministério, e portanto do presbitério da Igreja local, ou uma solução encontrada por quem, pela sua singularidade, não é capaz de vida comunitária e dá forma a uma vida consagrada “faça-você-mesmo”.
Dói dizer isso, mas permanecem válidas as severas palavras de São Basílio, que, na Regra divulgada, analisa e denuncia todos os riscos da vida eremítica. A vida monástica, de fato, é uma vida “longa”, e é muito difícil, sem ser observado e eventualmente corrigido, manter a disciplina e o estilo. É preciso se perguntar, por exemplo, que solidão é aquela de quem, no seu próprio ermo, recebe hóspedes a todas as horas e em todas as estações, em uma vida onde não é sequer conservada a regra mais comum da clausura monástica, que garante que, no espaço da vida ordinária, outros não tenham acesso.
Hoje, parece-me que há entusiasmo demais, até mesmo por parte de bispos que têm a tarefa de vigiar e compaginar os carismas na Igreja: um entusiasmo semelhante àquele que, há cerca de 20 anos, acompanhou as “novas comunidades”, com o resultado de termos hoje, diante dos olhos, situações no mínimo não exemplares ao oferecer um testemunho cristão.
Os perigos, portanto, estão muito presentes e, por isso, é necessário vigiar para que essa fuga não seja fuga desdenhosa dos homens, mas sim fuga da mundanidade, distanciamento capaz de oferecer novas perspectivas ao contemplar as realidades cotidianas e, portanto, de tornar o monge ainda mais próximo do coração dos seus próprios irmãos.
Eremitas ou anacoretas não deveriam buscar o “extraordinário”, o excêntrico: aliás, sair da cotidianidade da vida ordinária para ser extraordinário significaria levar consigo o modelo mundano que foi abandonado. Thomas Merton, que, nos últimos anos da sua vida, passou do mosteiro trapista ao ermo, gostava de repetir que os monges dos primeiros séculos entreviam o deserto como possibilidade para fugir do naufrágio que ameaçava a sociedade e a Igreja. Por isso, retirando-se à parte, não pretendiam pôr em segurança apenas a si mesmos: conscientes da própria incapacidade de fazer o bem aos outros enquanto permanecessem se debatendo em meio aos destroços, eles confiavam que, assim que conseguissem pôr os pés em terra firme, não só seriam capazes, mas teriam até o dever de arrastar atrás de si o mundo inteiro rumo à salvação.
Verdadeiramente, o “deserto” se revela, ainda hoje, uma categoria espiritual mais do que geográfica ou física: retirar-se à parte, não compartilhar o modo de pensar e de agir da maioria, aceitar a provação e a privação para saborear aquilo que se considera realmente essencial, fazer silêncio para aprender a escuta, conservar a solidão para saber ler no próprio coração e no alheio são todos elementos que alguns indivíduos – em todos os tempos e em todos os lugares – captam como verdade própria, até assumi-los como totalidade da própria condição e como sinal capaz de oferecer consciência e sentido de vida àqueles que se aproximam deles.
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Conservar o “deserto”. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU