21 Fevereiro 2020
“Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48).
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 7° Domingo do Tempo Comum, Ano A, que corresponde ao texto bíblico de Mateus 5,17-37.
O evangelho deste domingo é continuação do discurso de Jesus sobre o Monte, onde apresenta o modo original de ser e de viver dos seus seguidores; trata-se da nova justiça do Reino, onde Jesus vai até às raízes mais profundas de nosso ser para ativar o amor ali presente; este amor, aberto, oblativo, gratuito..., é capaz de uma nova relação até com os inimigos, em profunda sintonia com o modo de agir do Pai, que ama a todos, bons e maus, pois todos são seus filhos e filhas.
Mas, quando Jesus fala em amar os inimigos, não se refere somente àqueles inimigos externos.
Suas palavras se referem também a um acontecimento interior. Quando o inimigo é uma força externa nem sempre há motivos para assumirmos a culpa. Mas quando o inimigo se encontra no nosso interior e nós não conseguimos entrar em acordo com ele, os responsáveis somos nós mesmos; precisamos saber lidar com nossas sombras e fragilidades e, assim, reconciliar-nos com o inimigo interno que rejeitamos.
Reconciliar-nos com nossas fraquezas e nossos lados sombrios é um processo doloroso, mas, quando tentamos evitar essa dor e ignoramos o nosso adversário interior, acabamos gastando muita energia na ilusão de mantê-lo afastado.
Se não chegarmos a um acordo com o inimigo em nosso interior, ele se transformará em um tirano que nos dominará; aquilo que rejeitamos em nós se transforma em juiz interior e esse nos manterá confinados na prisão do nosso próprio medo e da auto-rejeição.
A cura significa também reconciliação; nosso inimigo interior só se transformará em nosso amigo e ajudante no nosso caminho de vida se nos reconciliarmos com ele.
Ao oferecer-nos um gesto de perdão em vez de um gesto de repulsão ou de condenação, tornamo-nos mais humanos. Demonstramo-nos humanos com quem mais precisa de humanidade: nós mesmos.
É o momento da compaixão para conosco mesmo.
Diante da necessidade de reconciliação com nossas sombras, limites, fragilidades e fracassos..., pode parecer estranho a afirmação final, no evangelho de hoje: “Portanto, sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito”.
Lucas, no entanto, modifica as palavras de Jesus para escrever: “Sede misericordiosos, como vosso Pai é misericordioso”. Sem dúvida, esta expressão parece mais ajustada, inclusive por todo o contexto. E tem razão, porque não se pode exigir que o ser humano seja “perfeito”; não só não está ao seu alcance, mas essa demanda pode conduzi-lo a um perfeccionismo estéril e esgotador.
Foi assim que, ao longo da história, surgiu uma cultura da perfeição; por séculos, a perfeição seduziu, modelou, dominou e controlou a existência de comunidades e sociedades inteiras.
A nossa cultura é controlada pela ideia de que o ser humano pode e deve ser “perfeito”.
Desde a nossa infância fomos impelidos a procurar a perfeição.
Anos e anos, essa ideia de “perfeição” foi modelando nossa mente e petrificando nosso coração.
Também na vida cristã, inúmeras pessoas e grupos religiosos nasceram e cresceram seguindo as pautas de formação do chamado “ideal de perfeição”, gerando muita rigidez, moralismos, culpabilidades, escrúpulos... e farisaísmo. O seguimento da pessoa de Jesus foi se esvaziando, dando lugar a um voluntarismo centrado na prática minuciosa de leis e normas (legalismo).
Esse conceito assumiu um valor central na compreensão e na orientação da nossa vida espiritual, reforçando-se a ideia de que tudo aquilo que diz respeito a Deus deve ser perfeito.
E a santidade passou a ser considerada como sinônimo de perfeição.
No entanto, transitar pelo labirinto da perfeição é desumano. Caminhar por ele é uma luta árdua e solitária, pois torna-se difícil pedir ajuda e arriscar-se a que as próprias imperfeições sejam expostas aos outros.
A expressão “atingir a perfeição” revela-se uma imprudência. A procura da perfeição não ajuda a pessoa a viver, a amar, a sonhar, a sorrir, a perdoar, a ser feliz...
Nas suas formas mais graves, a busca da perfeição é estressante, conduz ao desprezo de si mesmo, torna insuportável a relação com os outros e pode conduzir à auto-mutilação.
Quem tem sua vida centrada na busca da perfeição, aceitar o erro é uma tarefa muito humilhante e dificultosa. Longe de ser uma oportunidade, o fato de equivocar-se representa uma ameaça à sua dignidade. Para ele não basta ser bom, é preciso ser perfeito. E, embora, no segredo mais íntimo aceita que jamais será perfeito, pelo menos tenta aparentar isso diante dos outros. Este modo de proceder tem um nome – perfeccionismo – e são muitos os que caminham por seu labirinto.
Isso não é vida. Queremos habitar e transitar por lugares onde a compaixão e o cuidado possam abraçar nossas fragilidades e limites. Devemos passar de um humanismo da “auto-exaltação” para um humanismo da “auto-acolhida”.
A compaixão afirma o “eu real” contra as pretensões do “eu ideal”.
A compaixão orienta-nos para a realidade profunda da nossa fragilidade; na compaixão alcançamos a nós mesmos; a compaixão nos leva de volta à casa, revestindo-nos de uma atitude amorosa para conosco.
O tecido da vida cotidiana nos oferece muitas ocasiões para esta prática de bondade para conosco.
E a compaixão faz parte da essência de nosso ser. É a mais humana de todas as virtudes humanas. É ela que nos oferece inúmeras ocasiões para tratar-nos como amigos, em vez de nos tratar como estranhos.
Graças à compaixão, podemos nos levantar depois de cada queda, abrir-nos novamente à presença da Graça de Deus, continuar a amar tudo aquilo que dentro e fora do nosso ser se apresenta sob as vestes do humano. Deste modo, realizamos uma orientação sadia no fundo do nosso ser.
Assim, o discípulo de Jesus deve ser perfeito no Amor como o Pai celestial é perfeito no Amor. Ele ama a todos sem distinção, “fazendo nascer o sol e cair a chuva sobre maus e bons, justos e injustos”.
Neste sentido, o chamado do Evangelho a ser “perfeitos como o Pai” está em um contexto do amor incondicional e envolvente de Deus, um amor que faz com que o sol se levante para as pessoas más e boas, e que permite que a chuva caia sobre justos e pecadores. Em outras palavras, a perfeição cristã é o convite a um amor que nunca se esgota; é o convite para aprender a perdoar como Deus perdoa e a amar como Deus ama.
Alguns exegetas interpretam que, em hebraico, a expressão “perfeito” faz alusão a algo “completo”. Nesse sentido, o apelo a ser “perfeitos” deve ser entendido como um chamado a aceitar-se em toda a sua verdade. Este sentido seria totalmente aceito a partir de uma antropologia humanista, como um princípio básico de unificação e crescimento: “aceita-te com toda tua verdade, com tua luz e tua sombra, teus acertos e erros, tuas qualidades e defeitos...!”
Somos chamados a ser “completos”, aceitando nossa verdade e abrindo-nos à nossa verdadeira identidade que transcende nosso ego; só assim poderemos viver a misericórdia ou compaixão.
Na oração: A aceitação do limite nos ajuda a celebrar a vida em todas as circunstâncias e a saborear a realidade, cheia de riscos, incerta e insegura para todos, mas, ao mesmo tempo, única e irrepetível para sempre.
Longe da tirania do perfeccionismo, saberemos conviver com a rica pobreza de nossa condição humana; é a calma e o silêncio da oração que irão nos libertar da banalidade e do perfeccionismo, fazendo-nos reconciliar com as fragilidades, próprias e alheias.
- Sua vida é regida pela “pauta da perfeição” ou da “misericórdia”?
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O labirinto do perfeccionismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU