13 Setembro 2019
A idolatria do povo hebreu, o adultério do rei Davi, as perseguições movidas por Paulo, a ingratidão do filho pródigo… O pecado do homem tem múltiplas faces, mas jamais se esgotará a misericórdia divina. Deus vai ao encontro dos pecadores e convida-nos a com Ele alegrarmo-nos pelos que retornam à casa paterna.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando o evangelho do 24º Domingo do Tempo Comum - Ciclo C (15 de setembro de 2019). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Referências bíblicas:
1ª leitura: “E o Senhor desistiu do mal que havia ameaçado fazer ao seu povo” (Êxodo 32,7-11.13-14).
Salmo: Sl. 50(51) - R/ Vou agora levantar-me, volto à casa do meu pai.
2ª leitura: “Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores” (1 Timóteo 1,12-17).
Evangelho: “Haverá no céu mais alegria por um só pecador que se converta” (Lucas 15,1-32 ou 1-10).
A Liturgia não facilita em nada ao comentarista: o tema deste capítulo 15 de Lucas já foi assunto do 4º Domingo da Páscoa, o Bom Pastor. Por isso evidenciaremos mais, hoje, as analogias com as outras leituras. Quem é de fato, no texto extraído do Êxodo, a ovelha perdida? Israel, inteiramente. E na Carta a Timóteo, quem é a ovelha perdida? O próprio Paulo, que, de filho mimado do judaísmo, como podemos ler em Filipenses 3,4-6, por exemplo, extraviou-se, movendo perseguição aos cristãos.
Notemos que os dois textos do Novo Testamento não fazem menção a nenhuma eventual cólera divina, como o faz a 1ª leitura; referem-se somente à misericórdia (que é o outro nome do amor) e à alegria. Isto mostra muito bem que a "revelação" é progressiva. Mas não passemos rápido demais por este tema da cólera de Deus: notemos corresponder ela à mesma reação que teve o filho mais velho, no evangelho, buscando responder a uma rigorosa exigência de justiça.
Para nós, é de grande valia ficar sabendo que o bem-querer de Deus para conosco origina-se em uma negação da justiça. E que, a rigor, na qualidade de escolhas contrárias à nossa criação, as nossas faltas deveriam nos conduzir à morte. Por sob o direito e a lei, esconde-se uma realidade muito mais importante e fundamental: de morte ou de vida: "Teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado." Quanto a nós, só estamos vivos em virtude da gratuidade do amor.
Na vida política, social e econômica, parte-se do princípio de que não se pode fazer uma omelete sem que se quebrem os ovos. Assim, todas as crises e reestruturações pelas quais estamos passando, vão deixando para trás milhões de desempregados e excluídos... Mas o que fazer? Dar de ombros em sinal de impotência, aguardando uma futura prosperidade que virá mais adiante? Afinal, o que é o naufrágio de uns poucos, diante do benefício para tantos outros? Não é assim mesmo que caminha a humanidade? Semeando o seu caminho de excluídos e "perdidos"?...
Mas o Cristo não ratifica absolutamente estas nossas fáceis demonstrações de resignação. Podemos imaginá-lo colocando sua mão em nosso ombro, para interromper a nossa marcha triunfal, e convidando-nos a voltar e a dirigir o nosso olhar para as nossas vítimas, para todos os que temos trespassado. Vamos deixar “no deserto”, em sua prosperidade, as noventa e nove que gozam de boa saúde e ocupemo-nos em primeiro lugar da centésima ovelha, a “que se perdeu”: é ela que é importante; é ela que exige todos os nossos cuidados.
Em seus escritos, René Girard observa que a Bíblia, seguidamente, desenterra as nossas vítimas, expondo-as aos nossos olhos. Não para nos fazer sentir culpados, mas para nos fazer reconhecer que matamos, ou que deixamos matar, pessoas justas, ou, se quisermos, nem mais nem menos culpadas do que todas as outras, a exemplo das vítimas de Pilatos ou da torre de Siloé (Lucas 13,1-5).
Sempre temos tendência a desprezar os excluídos de nossa prosperidade. Mas foi para eles que o Cristo veio ao mundo (versículos 1 e 2). E para nós, não? Sim, pois, de alguma forma, nós também estamos "perdidos".
Podemos nos comparar à ovelha perdida, à moeda extraviada ou ao filho "que estava morto e tornou a viver". Mas, mudando de posto, podemos também nos identificar com o pai desta parábola, sendo ele a imagem mesma de Deus. Mas como assim? Não seria uma ousadia, pretender fazermo-nos como Deus? Claro, é isso mesmo: o próprio Cristo é quem nos convida a isso, incessantemente. A começar por Mateus 5,43-48, passagem que termina com "deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito", sendo este o único meio de nos mostrarmos filhos semelhantes ao Pai.
Mas o que significa "ser perfeito"? É "fazer o nosso sol nascer sobre os maus e sobre os bons", é "fazer a nossa chuva cair sobre os justos e os injustos". Da mesma forma que o "servo sem compaixão", de Mateus 18,21-35, se viu condenado porque não quis se comportar como o seu mestre. Isto, afinal, é inquietante: recusando-se o homem a agir da mesma forma que Deus age, é o próprio Deus, então, que se põe a imitar o homem. Tu te recusas a perdoar assim como Eu te perdoei? Pois bem, vou fazer o mesmo que fizeste, recusando-te o meu perdão!
Este tema, que volta com muita frequência, significa que sempre podemos nos colocar fora do circuito do perdão, fora do amor. No entanto, só podemos ser cobertos pelo amor se deixamos que ele passe através de nós; este amor que, recebido de Deus, nós lhe abrimos passagem para os outros. E não há outra solução? Não, porque, no final, Deus dá o seu Amor sem condição alguma: este é o mistério da Cruz.
A parábola do filho pródigo põe em evidência isto, que podemos chamar de paciência de Deus. O pai não fez nada para fazer o filho voltar; não enviou nenhum emissário nem lhe fez chegar qualquer mensagem. Na verdade, outros textos nos falam do envio dos profetas, da insistência permanente de Deus em nos fazer retornar à nossa verdade. Mas o ponto de vista desta terceira parábola é diferente: trata-se de nos fazer tomar consciência de que Deus com certeza nos chama, mas não exerce pressão alguma sobre a nossa liberdade. Deixa-nos experimentar as consequências dos nossos erros. «Eis que hoje estou colocando diante de ti a vida e a morte (…) escolhe, pois, a vida» (Deuteronômio 30,15).
Invertendo a relação de autoridade, o pai submete-se ao filho e reparte com ele a herança. Percebe-se que é a contragosto que ele aceita esta decisão do filho. O tema de que Deus se submete ao homem é bastante conhecido. As duas pequenas parábolas que precedem à do filho pródigo mostram bem, através do pastor e da dona de casa, um Deus que se agita numa espécie de angústia, até que tenha encontrado o que havia perdido. Este é o trabalho de Deus, a obra pela qual o Verbo veio habitar o mundo a ponto de compartilhar do seu sofrimento e da sua morte.
Nos três casos em que aparece esta figura, termina-se em alegria. Será que Deus poderá estar feliz enquanto lhe faltar alguém? Será que pode Ele renunciar à alegria, aceitando que alguém se perca, sendo que faz parte d’Ele mesmo, a alegria? Certamente, não!
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Para todo pecado, misericórdia! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU