16 Outubro 2018
No segundo milênio, os papas não eram proclamados santos (com duas exceções, Gregório VII e Pio V, mas a distância de muito tempo, o primeiro depois de quinhentos anos, o segundo depois de cem). Somente no século XX as coisas mudaram. Nós nos perguntamos: um papa só pode ser um santo? A santidade é um corolário de seu papel? A canonização de quase todos os papas do último século e meio, equilibrando personalidades e linhas pastorais diferentes e até opostas entre si, não favorece uma verdadeira papolatria? Tudo isso os parece contrário ao espírito do Concílio Vaticano II e ao tipo de Igreja que ele prefigurou. Destina-se a uma espécie de glorificação da natureza superior do papado, de sua infalibilidade, e isso é mais eficaz quando se trata de papas recém-mortos, bem conhecidos e que suscitam emoções e reconhecimentos. Não se deveria deixar a avaliação da santidade à história com os tempos necessários, com a abertura dos arquivos, com uma reflexão para as décadas sucessivas sobre o legado que cada pontificado deixou?
O comentário é publicado pelo movimento italiano Noi Siamo Chiesa, 12-10-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Repete-se que o juízo sobre a santidade é sempre dado em relação às virtudes pessoais e não às decisões de governo, tanto de caráter teológico como pastoral ou político, que podem ser mais ou menos compartilhadas. É um argumento frágil. A personalidade de cada pontífice está sempre entrelaçada com o papel que desempenha, de modo que a distinção proposta é realmente difícil. A própria experiência confirma a forte valência "política" de cada canonização. Por exemplo, a do Papa Pacelli encalhou apenas por razões de oportunidade (a hostilidade do mundo judaico), a do Papa Sarto foi a consequência da vontade de Pio XII em usar seu modelo intransigente (em colisão com o modernismo) para a gestão de igreja, a combinação das duas canonizações do papa Roncalli e do papa Wojtyla, em 2014, foram as afirmações bastante explícitas da contemporânea validade do ensino do papa do Concílio e do papa que o próprio Concílio havia colocado de lado.
Outra combinação, ainda mais discutível, ocorreu em 2000 com a beatificação contemporânea de Pio IX e João XXIII, dois papas que não seria possível serem mais diferentes. Sempre em uma perspectiva de oportunidade política, pode-se perguntar por que nunca se falou e não se fala sobre a possível canonização do papa que condenou o "inútil massacre" da Primeira Guerra Mundial, Bento XV.
Nós nos perguntamos se não seria oportuna, justamente no momento em que está ocorrendo uma reflexão sobre a Grande Guerra, cem anos após o seu fim, descobrindo, especialmente agora, quão verdadeiramente proféticas foram as suas palavras?
Essas canonizações dos papas são eventos não-ecumênicos e estão em contradição com os próprios passos à frente do Papa Francisco nas relações com as outras Igrejas. O incômodo por essa linha do Vaticano tem sido expresso mais de uma vez e de forma mais que explícita por expoentes muito autorizados das Igrejas evangélicas. A canonização dos papas, para melhor ou para pior, afeta toda a cristandade. O papel de "primus inter pares" para o papa, tantas vezes especulado particularmente na relação com as Igrejas Ortodoxas, é fragilizado quando a prática vai em direção a uma forte afirmação do papel do bispo de Roma.
A canonização dos papas não está separada de uma reflexão geral que já fizemos em outras ocasiões sobre o sistema da "fábrica" dos beatos e dos santos: a política grandemente inflacionária no número de santos; os procedimentos secretos, caros e teologicamente ambíguos que levam à sua proclamação; o número muito pequeno de santos entre os cristãos "normais" que não sejam fundadores de ordens religiosas ou pertencentes à ordem clerical e até pais ou mães da família; as canonizações que criaram grandes perplexidades (por exemplo, Escrivà de Balaguer, os milhares de mártires na guerra civil na Espanha ...). Todo o sistema deveria ser revisado.
Quanto aos papas, pensamos que eles não deveriam ser envolvidos no processo de canonização até depois de cem anos ou mais de sua morte. Em geral, a nossa proposta é de uma moratória imediata para suspender procedimentos e proclamações por pelo menos vinte anos, de modo a poder voltar a refletir em toda a Igreja sobre seu sentido pastoral com um ânimo diferente, que talvez tenha feito novas reflexões sobre que parte da religiosidade popular que está mais envolvida na devoção aos santos. Essa interrupção serviria para entender se e quanto seria a sua contradição com a mensagem radical do Evangelho que combate toda forma de idolatria ou superstição.
Tudo isso tem como premissa uma proclamação que não compartilhamos, no momento que há uma grande atenção no pontificado de Paulo VI, até agora quase esquecido pelo papel particular tanto do pontificado anterior como do sucessivo e nos permitimos expressar os nossos pontos de vista sobre um papa que foi de grande importância na história recente da nossa Igreja.
Por muitos anos, Mons. Montini representou na cúria romana, a corrente hostil ao fascismo, aberta à cultura católico-democrata de origem francesa (Maritain, Mounier) e, portanto, diferente da rigidez pacelliana. Pelas hostilidades que havia despertado, ele foi transferido para Milão, onde, como arcebispo, teve uma experiência direta de atividades pastorais em uma metrópole e desempenhou um papel importante na atenção ao movimento sindical. Sua personalidade de pontífice deve ser situada no momento histórico em que ele se encontrou para liderar a Igreja, que durante a Guerra Fria era parte do mundo ocidental e o Vaticano era bastante italiano e eurocêntrico. Ele foi eleito papa pelos cardeais que queriam continuar o Concílio contra aqueles que queriam fechá-lo.
Ele foi fiel ao mandato recebido e deve ser atribuído ao seu mérito incontestável ter sido capaz de levá-lo a termo colaborando, com alguma prudência e evitando tensões, até aquela virada fundamental na história da Igreja. A primeira parte de seu pontificado foi aquela em que ele esteve mais presente na cena internacional, com a peregrinação à Palestina (janeiro de 1964), com o seu discurso nas Nações Unidas sobre a paz e o desarmamento (outubro de 1965), com a proclamação em 1968 do primeiro de janeiro como "Dia da Paz", também com a Östpolitik que estava em contraste com as ebulições ideológicas e políticas da contraposição Leste-Oeste. Mas principalmente com a Populorum Progressio, de 1967, ele aceitou análises e propostas das posições do terceiro mundo. Ao mesmo tempo, começou a viajar, dando início a uma nova fase no papel do pontífice romano no mundo, antes fechado ao circuito romano e ele tentou internacionalizar a Cúria e instituiu os Pontifícios Conselhos para o diálogo inter-religioso, para a unidade dos cristãos e para a justiça e a paz. Sob esse perfil, ele foi o protagonista de uma descontinuidade positiva, abrindo novos caminhos.
Em relação à gestão interna da Igreja, Paulo VI implementou a importante reforma da liturgia que havia sido solicitada pelo Concílio, excluiu os cardeais com mais de oitenta anos do conclave, limitou a função episcopal aos 75 anos e abriu uma nova etapa nas relações ecumênicas, a partir do encontro com o Patriarca Ecumênico Atenágoras em Jerusalém, com a consequente recíproca remissão das excomunhões de 1054.
Essas escolhas, coerentes com a mensagem do Concílio, entrelaçaram-se com decisões contraditórias ou fortemente criticáveis. Temos em mente a demissão do Card. Lercaro em 1968. Referimo-nos, de um lado, à instituição do Sínodo dos Bispos com poderes apenas consultivos, desconsiderando, assim, a verdadeira colegialidade que havia sido preconizada pelo Concílio e, pelo outro, à encíclica Humanae Vitae (1968). Tal intervenção unilateral de Paulo VI foi também a consequência dos limites que ele próprio impôs à competência do Concílio, advogando para si mesmo todas decisão em questão ao celibato dos sacerdotes e à moralidade sexual. Essa encíclica foi um erro, que só cabe a ele, que teve pesadas consequências na vida da Igreja. De fato, a Humanae Vitae, imediatamente contestada e não aceita pela grande maioria das pessoas cristãs, iria minar ao longo das décadas a credibilidade do magistério papal, inclusive porque seus sucessores, com um zelo digno de melhor causa, iriam fazer da fidelidade ao ensino de tal encíclica a prova de toda verdadeira ortodoxia teológica e pastoral e, consequentemente, a condição para ser admitidos a funções ministeriais e magisteriais nas dioceses, nos seminários e nas ordens religiosas.
Na última fase, aquela do declínio de seu pontificado, diante do movimento de 1968 e dos anos que se seguiram e da transformação da cultura e dos costumes, Paulo VI esteve preocupado em refrear a atuação do Concílio, temendo pela "manutenção" de Igreja. Na Itália, ele deu seu aval à campanha contra a lei do divórcio e continuou a apoiar a unidade política dos católicos. Nas últimas semanas de sua vida ele sofreu o drama de Aldo Moro. Tratando do tema do diálogo dentro da Igreja, ele então o degradou na gestão concreta do sistema eclesiástico, sujeitando-o a uma rígida interpretação em termos de obediência à autoridade.
Nesse contexto deve ser colocada a distância que ele sempre manteve em relação aos fermentos que percorreram a base da Igreja na vasta galáxia do que se costumava chamar de "catolicismo da dissidência" ou aqueles que, no entanto, em várias formas e maneiras, expressavam desconforto em relação à lentidão ou à interrupção das reformas indicadas pelo Concílio. Tal linha, demasiado cautelosa e identitária, provocou marginalizações (na Itália, a mais significativa e dolorosa foi a de Giovanni Franzoni) e afastamentos da Igreja e colocou algumas das premissas para a involução que, dos anos 1980 em diante, condicionou o possível relançamento da mensagem de evangélica depois do Concílio. Em reação a tal retrocesso, iria nascer nos anos 1990 o movimento "Noi Siamo Chiesa – We Are Church" (Nós Somos Igreja).
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As muitas dúvidas sobre a canonização do Papa Paulo VI. Por que somos contra a canonização - Instituto Humanitas Unisinos - IHU