18 Setembro 2018
A demanda crescente por terras, em nível nacional e internacional, está aumentando a pressão de grandes investidores sobre territórios de comunidades tradicionais, unidades de conservação e terras indígenas. Há uma corrida mundial por terras em curso pelo menos desde 2008, que se reproduz também no Brasil por meio de projetos de investimentos produtivos e especulativos. O governo Temer vem trabalhando com a lógica de acelerar esses investimentos alimentando a pressão exercida por interesses do agronegócio, da indústria de mineração, de energia e de fundos de pensão internacionais.
“Os fundos de pensão estão menos preocupados com a produção e muito mais preocupados com o tema dos juros e da valorização da terra, ou seja, da especulação. As linhas de fronteira entre o que é um investimento produtivo e um investimento especulativo acabaram se mesclando muito”, diz Sérgio Sauer, professor da Universidade de Brasília e pesquisador de temas relacionados à Reforma Agrária, terra e território. Sauer esteve em Porto Alegre na última sexta-feira (14), participando de um debate sobre a lei 3465/2017, batizada de “Lei da Grilagem”. O encontro foi promovido pela Rede de Advogados e Advogadas Populares (Renap), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Fórum Justiça, movimentos populares e outras entidades.
Em entrevista ao Sul21, Sérgio Sauer fala sobre os interesses que estão por trás dessa lei, sobre a possibilidade dela aumentar a concentração de terras no país e aponta outras propostas que estão tramitando, como a de liberar a mineração em terras indígenas e a de transferir para o Congresso Nacional a prerrogativa de aprovar a demarcação de terras indígenas e quilombolas, que atualmente é responsabilidade do Executivo.
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul 21, 17-09-2018.
Qual o contexto que cerca a edição da Medida Provisória 759 pelo governo Temer, que ganhou o apelido de “Lei da Grilagem”. Qual a lógica que estrutura essa MP?
Eu uso o ano de 2006, quando aconteceu a Conferência Internacional da Reforma Agrária aqui em Porto Alegre, como um certo marco. A partir daí, o tema da terra voltou bastante forte na agenda política internacional e também nas discussões do mercado sobre investimentos. Em 2010, o Banco Mundial publicou um relatório sobre uma corrida mundial por terras que estaria ocorrendo, especialmente a partir de 2008. A partir daí, esse tema explodiu um nível internacional, em diferentes espaços e com objetivos diversos. Aconteceram muitas conferências acadêmicas e publicações, com uma forte expressão política no âmbito do Banco Mundial, da FAO e de outros organismos. Em 2011, criaram o PRI (Princípios de Investimento Responsável na Agricultura), que o G20 assumiu.
Obviamente, todos esses organismos, puxados pelo Banco Mundial, adotaram um discurso de que essa era uma iniciativa importante para o desenvolvimento dos países. Mas tivemos vozes críticas que advertiram que isso se tratava de um “land grabbing”, expressão que não tem uma boa tradução para o português. É a chamada estrangeirização, embora não seja exatamente isso. Fomos percebendo, especialmente a partir de 2012, 2013, a concretização de grandes investimentos, não necessariamente de países, mas às vezes de corporações e, mais recentemente – e muito fortemente -, de fundos de pensão. Esses fundos precisam ter uma parte de seu portfólio constituída por patrimônio que pode ser oferecido como garantia. A terra passou a desempenhar essa função, atraindo o interesse desses investidores em países como o Brasil, Uruguai, Argentina (muito fortemente) e também na África.
Os fundos de pensão estão menos preocupados com a produção e muito mais preocupados com o tema dos juros e da valorização da terra, ou seja, da especulação. As linhas de fronteira entre o que é um investimento produtivo e um investimento especulativo, em ações como a criação de uma fronteira agrícola para cultivar soja e exportar, acabaram se mesclando muito. Esse é, em linhas gerais, o contexto internacional em que esse debate está colocado.
No caso brasileiro, desde 2010 havia uma preocupação do então governo Lula sobre as possíveis conseqüências desses investimentos estrangeiros em temas como, por exemplo, a soberania. Há alguns colegas que não vêem muita diferença se é Blairo Maggi que tem 70 mil hectares ou uma empresa como a Bunge, pois nos dois casos seria terra privada sendo apropriada em larga escala. Mas há algumas dimensões desse processo de estrangeirização que transcendem a mera questão de quem é o proprietário da terra, como é o caso da dimensão da soberania.
Em 2010, o governo brasileiro, por meio da Advocacia Geral da União, resgatou uma lei de 1971, dos militares portanto, que estabelecia certos limites para a compra de terras por estrangeiros. Eram limites extremamente amplos, segundo os quais uma empresa ou pessoa física estrangeira não podia comprar mais que 25% da área de um município…
Até 25% podia…
Pois é…podia. Aqui no Sul, a situação é diferente, mas vale lembrar que, na região da Amazônia, nós temos municípios que são verdadeiros estados em termos de território. Nos anos 90, durante o governo Fernando Henrique, quando se eliminou da Constituição a diferença entre empresa estrangeira e empresa nacional, tanto o Incra quanto os cartórios entenderam que, se não havia mais essa distinção, tampouco havia entre proprietário nacional ou estrangeiro. Assim, de 1996 até 2010, não se fez mais o controle que a lei de 1971 estabelecia. Em todo o investimento estrangeiro, seja de empresa ou de pessoa física, quando se fazia o registro no cartório, isso deveria ser comunicado ao Cadastro Nacional de Terras, do Incra. A iniciativa do governo Lula em 2010 procurou resgatar essa necessidade.
Esse resgate estabelecia que, mesmo com o fim da distinção entre empresa estrangeira e nacional nos anos 90, a lei de 1971 continuava sendo constitucional e, portanto, os cartórios seguiam sendo obrigados a declarar o investimento estrangeiro para o Incra, que deveria ter um registrado separado para esse tipo de investimento. Isso diminuiu um pouco alguns investimentos na região do Cerrado, mas existem vários mecanismos para contornar essa exigência. Se uma empresa multinacional, por exemplo, tiver 1% de investimento nacional pode cadastrar como empresa nacional. Há ainda um sistema de laranjas que pode ser adotado. Nós temos uma dificuldade imensa em termos de cadastro e registro de terras. O Brasil tem vários cadastros mas eles são auto-declaratórios. Se perguntarmos ao Incra hoje qual é a quantidade de terras em mãos de estrangeiros, a quantidade será muito baixa, pois há muitas áreas não declaradas.
Com o processo do golpe que resultou na deposição da presidenta Dilma e a mudança de governo em 2016, esse tema voltou à tona com bastante força no debate político. Tivemos declarações de Michel Temer e de Henrique Meirelles dizendo que era muito importante liberar a venda de terras para estrangeiros porque isso traria novos investimentos. Mas há um elemento político importante aí. O ministro da Agricultura é um grande proprietário de terras, numa área de produção de grãos bastante cobiçada por investimentos estrangeiros. Essa liberação significaria, para ele, maior competição. Apesar de haver uma pressão muito forte da chamada bancada ruralista, há um desacerto importante entre eles para ser resolvido.
A nossa grande dificuldade é que não temos hoje um quadro nacional suficientemente confiável para ter uma dimensão exata do que há efetivamente hoje em termos de investimentos estrangeiros em terras brasileiras. Recentemente, a revista Carta Capital publicou uma matéria sobre os investimentos da Universidade de Harvard em terras na região de Matopiba (NR: região que abrange os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). Há vários como esse, especialmente em regiões de fronteira agrícola, porque a terra é mais barata e há uma certa disponibilidade de terras. Com a expansão dessas fronteiras, é possível comprar fazendas que, ou estão quebradas ou não foram ainda devidamente modernizadas. Isso permite comprar mais barato e fazer uma modernização ou comprar barato e vender mais caro.
Qual o problema disso? Um deles é o fato de se ter grandes áreas controladas por estrangeiros, seja empresas ou pessoas físicas. O controle por países é um pouco mais raro. Mais recentemente tem se falado muito dos chineses, mas eles têm investido mais na parte de infra-estrutura e na compra dos produtos da terra, como soja e minérios. Até onde acompanhamos, há menos investimentos chineses em terras que japoneses, por exemplo. Os japoneses, sim, estão investindo fortemente nesta área, comprando terras, construindo infra-estrutura e investindo na agroindústria. Há investimentos coreanos também, especialmente na região do Matopiba, e norte-americanos, na região de Luis Eduardo Magalhães.
Outro problema é que isso tem conseqüência para as comunidades dessas regiões. O caso envolvendo a Universidade de Harvard chama a atenção. Eles compraram áreas onde viviam comunidades tradicionais. Com isso, os conflitos envolvendo a luta pela terra se acirraram.
A MP 759 foi batizada de “Lei da Grilagem”. Poderia falar um pouco sobre as razões da escolha desse nome? Em que medida ela estimula a grilagem?
Em dezembro de 2016, Temer publicou essa medida provisória que hoje é a lei 3465/2017. Há duas razões para a escolha da palavra “grilagem” para designá-la. Ela mudou uma série de leis agrárias, inclusive a lei de 1993, e alterou o programa Terra Legal, criado pelo governo Lula como uma política de regularização fundiária na Amazônia. O limite de 1.500 hectares foi ampliado para 2.500 hectares pelo governo Temer. A segunda mudança importante é que o programa foi ampliado para o país inteiro, não se restringindo mais à região amazônica. 2.500 hectares na Amazônia é uma coisa. Agora, 2.500 hectares em um Estado como o Rio Grande do Sul é algo bem diferente. A denominação de “grilagem” vem dessas mudanças e do que elas possibilitam.
Aquilo que a gente criticava, já na lei promulgada no governo Lula, eles ampliaram. O limite passou de 1.500 para 2.500 hectares, valendo para o Brasil inteiro e não só para a Amazônia. Pela lei atual, se alguém tem 5 mil hectares, ele pode regularizar até 2.500 hectares. E a lei não diz o que ele tem que fazer com o restante da terra. Outra situação: a pessoa tem mil hectares na Amazônia e ele pode regularizar a terra vizinha dizendo que é dele. A lei foi flexibilizada de tal forma que praticamente tudo é permitido. Alguém que legalize 2.500 hectares, por exemplo, só vai pagar até 50%, não do valor de mercado, mas de uma tabela de referência que o Incra vai elaborar. Se ele pagar à vista, ainda ganha um desconto ou paga em até 20 anos. Então, há áreas, calculamos, que vão custar 2 ou 3 reais o hectare.
Outro elemento ainda está ligado ao debate sobre o marco temporal, pelo qual indígenas e quilombolas só poderiam ter a terra reconhecida se em 1988 estivessem lá. Essa nova lei ampliou a posse até 2014. Assim, alguém que ocupou uma área em 2013, tem direito à regularização.
Isso se aplica também às áreas urbanas?
A Medida Provisória 759 mexeu em 11 leis, inclusive na legislação relacionada ao Minha Casa Minha Vida e no Estatuto das Cidades. Então, ela também tem conseqüências para a regularização de posses urbanas, mas essa é uma área que entendo menos. Foram feitos três decretos (9.309, 9.310 e 9.311), um especificamente sobre áreas urbanas. Uma questão importante é que ficou a cargo dos municípios definir o que é área rural e área urbana, o que abre espaço para várias formas de flexibilização dos marcos de fronteira entre esses territórios.
Em resumo, há duas grandes críticas que fazemos a essa nova lei. A primeira diz respeito à ampliação e flexibilização do Terra Legal. A segunda se refere às mudanças na lei agrária inclusive no regramento da titulação dos lotes. Na longa luta dos movimentos sociais pela Reforma Agrária, não dá para pensar os lotes com título individual. A lei 13.001/2014 estabeleceu que seriam concessões de direito real de uso. A nova lei troca para título individual e estabelece uma carência de apenas dez anos a partir do estabelecimento do assentamento. Como a grande maioria dos assentamentos tem já mais de dez anos, teoricamente esse período de carência já terminou.
Na nossa avaliação, há dois grandes elementos por trás disso. O primeiro deles é retirar a responsabilidade do Incra sobre esses temas, utilizando o discurso da austeridade, corte de gastos, etc. Na medida em que se dá o título individualmente ao assentado, o Incra não precisa mais investir nem auxiliar o assentamento. Além disso, eles estabeleceram que, se o assentamento tem mais de 15 anos ele é automaticamente considerado consolidado e pode ser titulado, ou seja, os títulos seriam distribuídos individualmente aos assentados. Mas há ainda outra dimensão associada à crescente demanda por terras, inclusive em regiões consolidadas como Rio Grande do Sul e São Paulo. A partir do momento em que você titula, abre-se a possibilidade de essas terras irem para o mercado e serem vendidas, arrendadas, etc.
Voltamos aí à nossa conversa inicial. Qual é a intenção de acelerar o processo de titulação individual para as famílias? Permitir que haja um aquecimento e uma reorientação do mercado de terras em nível nacional. Considerando só o universo de assentamentos que poderiam ser titulados, estamos falando de algo entre 35 e 40 milhões de hectares. Cerca de 80% dos assentamentos existentes hoje no Brasil entrariam nesta condição. Alem disso, a lei estabelece que, se um assentado está num lote e ainda não recebeu a autorização do Incra, isso significa que ele está irregular. Até quatro módulos, a sua situação pode ser legalizada, desde que ele não tenha outra propriedade. Praticamente a totalidade dos lotes são abaixo de um módulo fiscal (NR: unidade de medida, em hectares, cujo valor é fixado pelo INCRA para cada município) , especialmente em estados como o Rio Grande do Sul. Na região de Ijuí, onde cresci, um módulo fiscal corresponde a 15 hectares. Os assentamentos tem isso ou menos. Se você permite a uma pessoa, que está irregular no assentamento, registrar ou legalizar até quatro módulos, abre-se a possibilidade de reconcentração dessas terras. Isso também pode ser considerado como um mecanismo de grilagem.
Há um tema, que não está diretamente ligado a essa lei, mas que envolve a disputa por terras, relacionado às terras indígenas, que vem sofrendo uma pressão muito grande de projetos de mineração, de energia e do agronegócio. Com o governo Temer, essa pressão aumentou ainda mais. Como vê essa situação?
A demanda crescente por terras, em nível nacional e internacional, vai empurrando essa pressão na direção dos parques, das unidades de conservação e das terras indígenas. O fato de existir um governo que atua com a lógica de liberar esses investimentos acaba, mesmo que indiretamente, favorecendo a invasão dessas áreas e o aumento da pressão sobre elas. Como as commodities, especialmente minérios, estavam em alta, muitas dessas terras indígenas, onde há reservas desses minérios, passaram a ser alvo dessa pressão. Há projetos no Congresso, apoiados pela bancada ruralista, propondo a liberação da mineração em terras indígenas. Alem disso, há um projeto de emenda à Constituição (PEC 215), transferindo para o Congresso Nacional a prerrogativa de aprovar a demarcação de terras indígenas e quilombolas, que atualmente é responsabilidade do Executivo. Também tivemos uma tentativa desses setores contra as demarcações de territórios quilombolas, que acabou sendo barrada no Supremo.
E temos ainda os famosos projetos de REED (Reducing Emissions from Deforestation and Forest Degradation/Redução de emissões decorrentes do desmatamento e da degradação de florestas). Há projetos envolvendo empresas estrangeiras e governos estaduais, como os do Acre e do Mato Grosso, que também estão pressionando comunidades tradicionais. Os casos que a gente conhece envolvem contratos draconianos, onde as empresas ficam com todos os direitos sobre essas áreas. E a compensação não é exatamente uma compensação milionária para se abrir mão da autonomia de territórios extensos, como é o caso de algumas terras indígenas que estão sendo pressionadas. Esse conjunto de pressões sobre as terras indígenas tem mais ou menos a mesma lógica que anima a demanda crescente por terras e os investimentos relacionados aos setores do agronegócio, energia e mineração.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Corrida por terras ameaça comunidades tradicionais e áreas indígenas. Entrevista com Sérgio Sauer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU