11 Agosto 2018
"O senhor nunca me falou sobre almas que morreram em pecado e vão para o inferno para cumprir sua pena pela eternidade. O senhor me falou, em vez disso, de boas almas admitidas à contemplação de Deus. Mas, e as almas ruins? Onde são punidas?", escreve Carlo Molari, padre, teólogo e ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana de Roma, em artigo publicado por Rocca, n. 9, 01-05-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um diálogo privado entre o Papa Francisco e Eugenio Scalfari, que ocorreu na terça-feira 27 de março último, e resumido pelo fundador do jornal La Repubblica na quinta-feira 29, reapresentou à opinião pública dois problemas recorrentes da teologia cristã atual: a ação criadora de Deus e a punição do mal.
Sobre a primeira questão, o breve relato da reunião, elaborado pelo Scalfari, traz entre aspas estas palavras: “A criação – está me dizendo - não se realiza da maneira descrita. O Criador, isto é, Deus nas alturas dos céus, criou todo o universo e, sobretudo, a energia que é o meio pelo qual o nosso Senhor criou a terra, as montanhas, o mar, as estrelas, as galáxias e as naturezas vivas e até mesmo as partículas e átomos e as diferentes espécies que a natureza divina trouxe à vida.
Cada espécie dura milhares ou talvez bilhões de anos, mas depois desaparece. A energia fez explodir o universo que muda de tempos em tempos. Novas espécies substituem as que desapareceram, e é o Deus criador que regula essa alternância”.
Para o segundo problema, o relato é mais detalhado: Sua Santidade, em nosso encontro anterior, o senhor me disse que a nossa espécie vai desaparecer em algum momento e Deus sempre de sua semente criativa irá criar outras espécies. O senhor nunca me falou sobre almas que morreram em pecado e vão para o inferno para cumprir sua pena pela eternidade. O senhor me falou, em vez disso, de boas almas admitidas à contemplação de Deus. Mas, e as almas ruins? Onde são punidas?
"Não são punidas, aquelas que se arrependem recebem o perdão de Deus e estão entre as fileiras de almas que o contemplam, mas aquelas que não se arrependem e, portanto, não pode ser perdoadas desaparecem. Não existe um inferno, existe o desaparecimento das almas pecadoras".
Para ser mais exato, é preciso lembrar que a Sala de imprensa do Vaticano explicou que o Papa Francisco "recebeu recentemente o fundador do jornal La Repubblica em um encontro privado por ocasião da Páscoa, porém sem conceder-lhe nenhuma entrevista. Tudo o que é relatado, hoje, pelo autor no artigo é o resultado de sua reconstrução, em que não são citadas as palavras textuais proferidas pelo Papa. Nenhumas aspas no artigo mencionado devem ser consideradas, então, como uma transcrição fiel das palavras do Santo Padre".
Por outro lado deve-se lembrar que o Papa sabe como falar com um ateu que está em busca e, dessa forma, se comunica com uma terminologia que possa ser entendida e desenvolvida de uma forma coerente, mesmo em uma perspectiva não-religiosa. Falar de ação divina em termos de energia é frequente nos diálogos atuais e corresponde, inclusive, a uma terminologia bíblica não rara. A aproximação do relato é compreensível mesmo para aqueles sem formação científica.
Quanto ao segundo problema, falar sobre o inferno em sentido analógico e simbólico, hoje é bastante comum em publicações teológicas, considerando que sobre esse argumento as propostas de solução, de um lado são mais radicais e, do outro, mais numerosas.
O próprio curador do comunicado de imprensa de onde eu tirei o texto de Scalfari em uma nota adicionada ao resumo do artigo cita uma conferência realizada na comunidade de Pallanza, em 1999, por Armido Rizzi segundo o qual o problema não diz respeito à existência do inferno, mas o seu significado: "Porque o Deus da Bíblia é um Deus justo, então ele dá aos justos a felicidade e a morte aos ímpios. Se Deus é justo, o inferno deve existir. Mas o inferno como sofrimento eterno infligido ao ímpio para que pague, não tem mais nada a ver com um Deus justo, mas com um Deus vingativo que inflige um sofrimento eterno, que, enquanto eterno, é inútil. O inferno é o morrer, o não existir mais, é o fracasso do sentido da vida, é perder a plena realização”.
Resta o fato de que o papa Francisco recordou uma opinião sobre o inferno hoje muito difundida entre os teólogos.
No diálogo como é registrado por Scalfari, o horizonte evolutivo não aparece explicitamente, mas não há dúvida de que a reflexão do Papa se desenvolve nessa perspectiva. Cada reformulação da doutrina da fé parte da convicção de que todas as expressões do Magistério e da tradição nasceram de uma experiência de fé e, portanto, contêm uma verdade de fundo, mas, ao mesmo tempo, todas também sempre têm um componente cultural provisório que precisa ser identificado e superado. O termo 'inferno' evoca uma visão geocêntrica do Universo, hoje inadmissível. O nome designa imaginários lugares subterrâneos em contraposição aos lugares terrestres e celestes.
Na visão atual do universo, falar em inferno é possível apenas em um sentido simbólico: não pode indicar um lugar na terra, mas sim uma modalidade de existência, que resulta de um processo vital não vivido de forma adequada.
Atualmente não sabemos nada sobre a condição após a morte porque a sua modalidade é para nós inconcebível, como é para o feto no útero materno a vida ao ar livre. Alguns passos culturais são necessários para continuar usando o termo tradicional, que pode ser mantido sob condições específicas. O primeiro passo é assumir o modelo evolutivo e considerar a morte como um componente essencial da jornada humana.
O segundo passo é a convicção de que podemos falhar no desenvolvimento pessoal. Nascemos incompletos e imperfeitos, chamados a crescer para atingir a plena maturidade. Esta consiste no desenvolvimento da dimensão espiritual, tal a permitir atravessar a morte física para entrar em uma nova modalidade de existência. Nesse processo, porém, podemos falhar.
Podemos viver na ilusão de já sermos perfeitos e, assim, chegar à morte física, sem a capacidade de atravessá-la como vivos.
O inferno não é um lugar, muito menos uma fornalha ardente, mas indica concretamente a possibilidade de fracasso no crescimento pessoal. Representa o esgotamento da carga vital, a incapacidade de continuar a viver. Com uma terminologia própria do Apocalipse (conscientes, porém, da diferença dos modelos culturais) poderíamos chamar esse evento de "segunda morte". No Apocalipse. O Vivente anuncia que "O vencedor não receberá o dano da segunda morte" (Ap 2, 11) e o Vidente escreve que sobre os Bem-aventurados e os santos "não tem poder a segunda morte" (Ap 20: 6).
Alguns chamam esse evento de aniquilação ou anulação do espírito. Na realidade, não se trata de uma ação que suprime o existente, mas da incapacidade de acolher a força criadora e de desenvolver novas faculdades espirituais. Com uma analogia, poderíamos dizer: é como se o feto no útero materno não desenvolvesse os pulmões na crença de que, não sendo necessários para a vida fetal, não tenham nenhum valor para a próxima fase da existência.
Em qualquer caso, a ideia tradicional do inferno como um lugar de punição pelos pecados é impraticável.
A condição humana sobre a terra está sujeita a ambiguidade: pode resultar em um cumprimento definitivo ou se exaurir em uma tentativa fracassada. A morte será, portanto, o momento de um juízo, ou melhor, de uma revelação (apocalipse). Ela vai ser a verificação de que temos vivido como "vencedores" (cf. Ap 2, 11,17), e que atingimos a estatura suficiente para nos tornar imagens definitivas de Deus
A atividade terrena não é apenas uma oportunidade de realizar feitos ou desenvolver tarefas e nem mesmo para merecer prêmios, mas sim é o espaço do nosso devir como pessoas, é o florescimento do projeto salvífico que trazemos em nós como germe, é o âmbito através do qual a força criadora assume aquela forma definitiva, à qual é reservado "um nome escrito no céu "(Lc 10,20) isto é, o nome de filhos de Deus. Toda experiência pode constituir para nós o acolhimento ou a recusa da oferta de nos tornarmos vivos para sempre. Até hoje eu pensava que não teria sido oportuno que fosse o Papa a fazer tal declaração, mas o fato de que o Bispo de Roma na qualidade de guia do povo de Deus sugira uma orientação do caminho eclesial é uma graça da qual devemos ser gratos a Deus.
Também a preocupação do departamento de imprensa para especificar que os termos usados por Scalfari não sejam exatamente aqueles do Papa é compreensível. De fato, o Papa Francisco assume uma opinião teológica e a propõe a um ateu como motivo de reflexão.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O mal, o papa Francisco e Scalfari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU