18 Mai 2018
Que a política não esteja a serviço das finanças. É a advertência do Vaticano contida no documento Oeconomicae et pecuniariae quaestiones, que critica duramente a especulação financeira.
A reportagem é de Francesco Antonio Grana, publicada em Il Fatto Quotidiano, 17-05-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O texto, aprovado pelo Papa Francisco, oferece algumas “considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro”, como diz o subtítulo, e foi elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé e pelo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral.
O próprio prefeito do ex-Santo Ofício, Dom Luis Francisco Ladaria Ferrer, ressaltou que esse documento representa uma espécie de novidade no magistério do seu dicastério. “É verdade – admitiu o arcebispo espanhol – que, sobre a moral da vida e da sexualidade, escreveu-se mais, entrava mais na atenção da Igreja.”
O Vaticano denuncia que, “diante do crescente e pervasivo poder de importantes agentes e grandes redes econômicas-financeiras, aqueles que deveriam exercer o poder político, ficam desorientados e impotentes pela supranacionalidade daqueles agentes e pela volatilidade dos capitais por eles geridos. Eles fadigam assim em responder à sua originária vocação de servidores do bem comum, transformando-se em sujeitos a serviço de interesses estranhos àquele bem”.
Por outro lado, a Santa Sé lembra “a insubstituível função social do crédito”, enfatizando que devem ser favorecidas “realidades de crédito cooperativo, o microcrédito, assim como o crédito público a serviço das famílias, das empresas, das comunidades locais e o crédito de ajuda aos países em via de desenvolvimento”.
Para o Vaticano, os derivativos favoreceram “o surgimento de bolhas especulativas, que foram importantes causas da recente crise financeira”. No documento, eles são definidos como uma verdadeira “bomba relógio, prontos a deflagrar mais cedo ou mais tarde a falta de confiabilidade econômica e a contaminação da saúde dos mercados”.
Também são postos sob acusação os “credit default swaps” (CDS), cujo mercado, “às vésperas da crise econômica de 2007, era tão imponente que representava mais ou menos o equivalente ao inteiro PIB mundial”. Para a Santa Sé, “a difusão sem adequados limites deste tipo de contratos, favoreceu o crescimento de uma finança do azar e das apostas no insucesso de outros, o que representa uma situação inaceitável do ponto de vista ético”, pois “quem age o faz em vista de um certo canibalismo econômico” e “acaba por minar aquela confiança de base sem a qual o circuito econômico terminaria por se paralisar. (...) Quando destas semelhantes apostas possam derivar substanciais danos para inteiros países e milhões de famílias, se está diante de ações extremamente imorais. Neste sentido, parece então oportuno estender as proibições, já presentes em alguns países, para esse tipo de operação, sancionando com a máxima severidade tais infrações”.
Não é a primeira vez em tempos recentes que a Santa Sé se expressa com extrema clareza sobre as questões do mundo financeiro. Isso tinha ocorrido em 2009, durante a prolongada crise econômica internacional, com a encíclica de Bento XVI Caritas in veritate. Mas é certamente uma novidade que não deve ser subestimada o fato de que, quase uma década depois desse texto de Ratzinger, dois dicastérios vaticanos quiseram recordar a dimensão ética no panorama das finanças internacionais.
“A recente crise financeira poderia ter sido uma ocasião para desenvolver uma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira, neutralizando os aspectos predatórios e especulativos, e valorizando o serviço à economia real.”
A rejeição do Vaticano é clara: “Embora muitos esforços positivos tenham sido realizados em vários níveis, sendo os mesmos reconhecidos e apreciados, não consta, porém, uma reação que tenha levado a repensar aqueles critérios obsoletos que continuam a governar o mundo. Antes, parece às vezes retornar ao auge um egoísmo míope e limitado a curto prazo que, prescindindo do bem comum, exclui dos seus horizontes a preocupação não só de criar, mas também de distribuir a riqueza e de eliminar as desigualdades, hoje tão evidentes”.
O texto publicado pelo Vaticano não é de modo algum um texto catequético banal, distantes das questões concretas da macro e também da microeconomia, mas sim um documento elaborado graças à contribuição de profissionais das altas finanças que entraram em diálogo com os dois dicastérios da Santa Sé que coordenaram sua redação.
Entre as inúmeras questões abordadas, muitas das quais são bastante técnicas, não faltam a necessidade de certificação pública para evitar um mercado financeiro intoxicado, a oportunidade de uma “biodiversidade” econômica e financeira, a necessidade de uma coordenação entre as várias autoridades nacionais reguladoras dos mercados, a importância de consultores financeiros que se comportem de modo ético, a responsabilidade social empresarial, o escândalo dos “grandes ganhos aos administradores e acionistas” (shareholders) em detrimento dos “stakeholders”, a necessidade de que a “socialização das perdas’ dos bancos “recaia sobretudo sobre aqueles que foram efetivamente responsáveis”, a crítica dos “títulos de crédito fortemente arriscados” como os subprimes na origem da crise de 2007-2008, a crítica ao “shadow banking system” e às finanças criativas.
Para o Vaticano, além disso, “o bem-estar, portanto, deve ser avaliado com critérios bem mais amplos que o Produto Interno Bruto de um país (PIB), levando em consideração também outros parâmetros, como por exemplo a segurança, a saúde, o crescimento do ‘capital humano’, a qualidade da vida social e do trabalho. E o ganho pode ser sempre buscado, mas não ‘a qualquer custo’, nem como referência totalizante da ação econômica”.
Além disso, a dívida pública “representa hoje um dos maiores obstáculos para o bom funcionamento e o crescimento das várias economias nacionais”. Portanto, “diante de tudo isso, de uma parte, os Estados individualmente são chamados a remediar com adequadas gestões do sistema público e sábias reformas estruturais, prudentes subdivisões das despesas e atentos investimentos. Em nível internacional, de outra parte, mesmo colocando cada país diante das suas inevitáveis responsabilidades, também é preciso consentir e favorecer saídas racionais das espirais da dívida, não colocando sobre os ombros dos Estados – portanto, sobre os ombros dos seus cidadãos, isto é, de milhões de famílias – as obrigações que, de fato, são insustentáveis”.
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Vaticano: "Que a política não esteja a serviço das finanças" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU