10 Outubro 2018
O cardeal Rosa Chávez, que foi um colaborador próximo de Dom Romero, narra a atualidade para o seu país do magistério do arcebispo mártir que Francisco proclamará santo no dia 14 de outubro, junto com Paulo VI.
A reportagem é de Maria Lucia Andria, publicada em Mondo e Missione, 01-10-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“A canonização de Oscar Arnulfo Romero no dia 14 de outubro? Será como um tsunami espiritual, porque se fortalecerão a fé, a devoção e a vontade de caminhar nos seus passos. As pessoas redescobriram a figura de Romero. Por muito tempo, a sua reputação foi manchada. Dizia-se que ele era comunista, um guerrilheiro. Na realidade, ninguém como ele era tão livre de qualquer ideologia. Ele acreditava apenas no Evangelho. Era um homem santo que ofereceu a sua vida a Cristo.”
Gregorio Rosa Chávez, bispo auxiliar de San Salvador, foi amigo e colaborador próximo de Dom Romero. Criado cardeal de surpresa pelo Papa Bergoglio em 2017 (o primeiro cardeal na história de El Salvador), ele conservou e relançou a herança espiritual de Romero, compartilhando plenamente a opção evangélica pelos pobres e o compromisso com a paz e a reconciliação do seu martirizado país.
É natural, portanto, ouvir dele como El Salvador está se preparando para o dia 14 de outubro, dia em que, em Roma, Francisco, o papa que veio da América Latina, proclamará santo – junto com Paulo VI – o Monseñor, como todos os seus concidadãos chamavam o arcebispo assassinado em 24 de março de 1980 enquanto celebrava a missa.
“Em El Salvador – conta Rosa Chávez – nasceu um novo sinal de devoção. No dia do seu aniversário, 15 de agosto, costuma-se presentear uma planta de alecrim aos amigos, que, em espanhol, se chama justamente ‘romero’. Assim, em todas as casas, tem uma planta de Romero, o santo do coração.”
O homicídio de Romero em El Salvador inaugurou 12 anos de guerra civil, aquele conflito que o arcebispo temia e tentara evitar de todas as formas. Ele havia denunciado profeticamente os abusos do governo autoritário, tentando em vão convencê-lo a aprovar reformas para os camponeses.
Ao mesmo tempo, ele havia exortado a oposição a não responder com violência aos abusos. Romero continua sendo ainda hoje uma testemunha eloquente do amor incondicional pelos pobres, que continua movendo e comovendo as consciências do seu povo. Os males que ele denunciava talvez tenham rostos diferentes, mas permanecem enraizados no país: as desigualdades sociais, a indigência e a violência que levam os salvadorenhos a emigrar, as “maras” (as gangues de rua) com seus jovens criminosos que mantêm grande parte do território como refém.
Justamente as gangues hoje são a nova emergência nacional. Nascidas nos guetos de Los Angeles, onde os jovens refugiados da guerra civil se refugiavam nos anos 1980, elas foram reimportadas graças às expulsões em massa da década seguinte. E, assim, pouco a pouco, se radicalizaram, tornando-se grupos criminosos; as máfias dos pobres, como as chamam.
Eminência, Dom Romero nos ensinou que a violência tem muitas facetas. A primeira é a injustiça, a segunda é a marginalização. Hoje o crime é como uma guerra. O que Romero diria a um jovem das “maras”?
Diria que a violência não se combate com violência. Em El Salvador, existem leis especiais contra as “maras” que, em vez de resolver o problema, provocaram uma escalada da violência. A situação piorou. A violência trouxe mais violência. Para não cair na armadilha mortal da brutalidade, é preciso redescobrir o valor da vida. Reabrir o caminho do diálogo. Hoje, Romero diria a esses jovens que há um futuro para eles também. A Igreja salvadorenha deseja uma lei que proteja as vítimas da violência e que ajude os “mareros” a se reinserirem na sociedade honestamente, a reconstruírem suas vidas. É um problema muito urgente, mas o caminho não é o da repressão e da violência.
El Salvador é o terceiro país mais violento do mundo. As famílias fogem da violência. O número de migrantes e de “desplazados” (deslocados) está aumentando continuamente, como não ocorria desde a guerra civil. O que Romero diria aos salvadorenhos que emigram?
Ele lhes diria que todos têm o direito de criar seus filhos de maneira digna. Esse princípio vale tanto ontem quanto hoje. Hoje, a emigração é um problema central. É um fenômeno que nasce do desejo de uma vida melhor, mas deixar o próprio país e os entes queridos traz consigo sacrifício e sofrimento. A pobreza e a violência levam os salvadorenhos a emigrar. Emigra-se para dar de comer aos filhos, porque não se tem mais uma casa, levada embora pelos grupos criminosos, ou para tirar os filhos das “maras”, que recrutam os jovens prometendo dinheiro fácil em troca da vida.
Hoje, que outros aspectos da realidade salvadorenha o olhar profético de Romero iluminaria?
O olhar de Romero é de compaixão para com as pessoas que sofrem. Para com os pobres, os marginalizados, os excluídos. Mas também para com aqueles que detêm o poder econômico, político e militar, para abrir as suas consciências em relação aos mais fracos. Hoje, ele dirigiria um olhar particular para a Igreja, para que se concentre nos pobres. Para que seja uma Igreja que caminha e sofre com as pessoas, que dá a vida pelos pobres. Para Romero, a glória de Deus é o pobre que vive. Ele gostaria de uma Igreja pobre, missionária e livre do poder. Pobre e, por isso, livre, com homens da Igreja pobres e livres.
Com essa santificação, Romero cruza as fronteiras da América Latina e se torna São Romero de todo o mundo. Que modelo de santidade é o de Romero?
Dom Romero é um defensor dos direitos humanos. Por isso, a sua figura vai além das fronteiras da Igreja Católica. Evoca valores universais como a justiça. É um modelo de santidade em busca de um mundo mais justo. Ele era um homem apaixonado por Deus, mas entendeu que não era possível amá-lo sem fazer as contas com a pobreza e as iniquidades do mundo. Muitas pessoas que confiam nele veem em Romero um modelo a seguir. Oscar Romero nos ensinou que só somos cristãos se damos a nossa vida. Essa é a lógica de Jesus. O sangue dos mártires é a semente da Igreja.
No dia 14 de outubro, na Praça de São Pedro, Dom Romero será proclamado santo junto com o Papa Montini. O que Paulo VI representava para Romero?
Montini é uma figura central no pensamento de Romero. Entre esses dois santos, há muitos pontos em comum. Paulo VI se interessou pessoalmente pela América Latina, pelos seus problemas, pelos seus conflitos. Ambos são autênticos intérpretes do Concílio Vaticano II, e o destino deles foi marcado por calúnias. Paulo VI se confrontou com os detratores de Romero: no Vaticano chegava todo tipo de difamação, e o Papa Montini servia de “para-raios”. Ele recebeu Dom Romero três vezes. Compreendeu-o e encorajou-o. Em abril de 1977, ele lhe disse: “Animo, es usted que manda!” (Ânimo, é você quem manda). Paulo VI foi um pai e um mestre para Romero, inspirou a sua obra de evangelização, a sua contínua busca pelo diálogo e a sua pastoral.
Quantos salvadorenhos irão a Roma para a canonização?
Conseguimos reservar 5.000 lugares na Praça de São Pedro. Para os salvadorenhos, a canonização do dia 14 de outubro será um momento extraordinário. É claro que nem todos os fiéis poderão participar da peregrinação. Mas todo o país se recolherá em oração. Nas paróquias, na véspera, serão celebradas vigílias de oração, à espera da missa solene. Na Itália, quando a celebração começar, serão as 2h da manhã em El Salvador. Naquela hora, haverá uma conexão de televisão para acompanhar a canonização ao vivo.
Romero será um dos padroeiros da Jornada Mundial da Juventude do Panamá em janeiro. Os jovens salvadorenhos o conhecem? Sua mensagem ainda é atual para os jovens?
Romero é um ponto de referência para todos os salvadorenhos. Na peregrinação que repetimos todos os anos, no aniversário do martírio, caminhamos mais de 150 quilômetros, da capital até Ciudad Barrios, a cidade natal de Romero. Participam centenas de jovens salvadorenhos. Essa é a demonstração de que Romero também está presente entre os jovens. Os jovens o estão redescobrindo e são devotos dele. Para eles, é um modelo, um intercessor. No seu exemplo, encontram esperança, coragem e força para mudar. E espero que continuem se interessando por ele e sigam seu ensinamento.
O que aconteceu com Romero após a morte do seu amigo jesuíta Rutilio Grande? É verdade que Romero mudou depois daquele dia?
O próprio Romero respondeu a essa pergunta e disse que houve uma evolução nele. O assassinato do Pe. Rutilio, ocorrido um mês após o início do episcopado, foi um sinal de uma nova conversão evangélica. Quando ele era bispo de uma pequena província, ele olhava para a violência de modo diferente, e a sua resposta era assistencial. Mas, quando se tornou arcebispo da capital, descobriu aquela que chamamos de injustiça estrutural e a violência institucional. Descobriu um sistema em que o poder político econômico e militar assediava os mais fracos. Foi então, naquele preciso momento histórico, que ele sentiu o chamado de Deus para denunciar as injustiças. Ele intuiu que havia chegado a um ponto sem retorno. E se pôs a caminho.
Qual é a lembrança mais bonita que o senhor guarda de Dom Romero?
Pode ser resumida em uma palavra: amizade. Dom Romero me deu um grande presente, uma amizade longa, sincera e profunda. Quando penso nele, sinto uma grande emoção ao lembrar do seu afeto. Ainda quando menino, todas as manhãs, eu acompanhava o seu programa no rádio: eu o conheci quando tinha 14 anos, e ele ainda não era bispo. Éramos da mesma Diocese de San Miguel. Eu me tornei um colaborador de confiança dele e, depois, seu amigo. Lendo o seu diário, encontra-se o meu nome. Tem também uma página dedicada à nossa amizade, e isso é um dom precioso.
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São Romero, meu amigo. Entrevista com Gregorio Rosa Chávez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU